domingo, 26 de abril de 2020

Solucionismo, nova aposta das elites globais


Tabu que proibia Estados de gastar caiu. Para evitar, a todo custo, que se examinem as causas da tragédia, os ultrarricos e corporações buscam saídas “tecnológicas”. Vale tudo – exceto contestar a supremacia dos mercados sobre as sociedades…

Evgeny Morozov | Outras Palavras | Tradução de Simone Paz

Em questão de semanas, o coronavírus deu um apagão na economia mundial e mandou o capitalismo para a unidade de cuidados intensivos. Muitos pensadores têm manifestado sua esperança de que isso nos leve a um sistema económico mais humano; outros alertam que a pandemia anuncia um futuro sombrio de vigilância estatal tecno-totalitária.

Os clichés datados, tirados das páginas do romance 1984, deixaram de ser guias confiáveis do que está por vir. O capitalismo de hoje é mais forte — e mais estranho — do que seus detratores imaginam. Seus inúmeros problemas não só apresentam novos caminhos para o lucro, como também aumentam sua legitimidade — já que, nas condições atuais, a única solução dependerá de pessoas como Bill Gates e Elon Musk. Quanto piores as crises, mais fortes são seus anticorpos: não é desse jeito que o capitalismo não acaba.

Entretanto, os críticos do sistema estão corretos em ver o covid-19 como uma confirmação de suas advertências. O vírus revelou a falência dos dogmas neoliberais de privatização e desregulamentação — mostrando o que acontece quando os hospitais são administrados com fins lucrativos e a austeridade reduz os serviços públicos. Mas o capitalismo não sobrevive apenas pelo neoliberalismo: este último só desempenha o papel do policial malvado, insistindo, com as palavras do mantra de Margaret Thatcher, em que “não há alternativa”.

Nesta novela, o policial bonzinho é a ideologia do “solucionismo”, que transcendeu suas origens no Vale do Silício e agora faz a cabeça das elites dominantes. Em sua versão mais simples, sustenta que como não há alternativas (ou tempo, ou dinheiro), o melhor que podemos fazer é colocar curativos digitais sobre os danos. Os solucionistas implantam tecnologia para evitar a política; defendem medidas “pós-ideológicas” que mantêm girando as engrenagens do capitalismo global.


Após décadas de políticas neoliberais, o solucionismo virou a resposta padrão para muitos problemas políticos. Por exemplo, por que um governo investiria na reconstrução dos arruinados sistemas de transporte público, tendo a opção de simplesmente usar Big Data para criar incentivos personalizados para cada passageiro, a fim de desencorajá-los a fazer viagens em horários de pico? Como o arquiteto de um desses programas em Chicago disse, há alguns anos: “soluções desde o ponto de vista da oferta, como a construção de mais linhas de transporte público… são muito caras”. Em vez disso, “o que estamos fazendo é procurar formas da tecnologia de dados administrar a demanda… ajudando os cidadãos a compreender qual o melhor horário para se deslocar”.

As duas ideologias têm uma relação bastante íntima. O neoliberalismo aspira a reformular o mundo de acordo com os manuais elaborados durante a Guerra Fria: mais concorrência e menos solidariedade, mais destruição criativa e menos planeamento estatal, mais dependência dos mercados e menos bem-estar social. O fim do comunismo facilitou essa tarefa — mas a ascensão da tecnologia digital acabou virando um novo obstáculo.

Mas como? Embora a tecnologia de dados e a inteligência artificial não favoreçam atividades para além do mercado, elas tornam mais fácil imaginar um mundo pós-neoliberal — onde a produção seria automatizada e a tecnologia serviria de base para sistemas de Saúde e Educação universais, para todos: um mundo em que a abundância seria compartilhada, e não apropriada.

É exatamente neste ponto que o solucionismo aparece. Se o neoliberalismo é uma ideologia proativa, o solucionismo é reativo: ele desarma, desativa e descarta toda alternativa política. O neoliberalismo encolhe os orçamentos públicos; o solucionismo encolhe a imaginação coletiva. O maior objetivo do solucionismo é convencer o público de que a forma legítima de uso das tecnologias digitais é perturbar e revolucionar tudo — com exceção da instituição central da vida moderna: o mercado.

Atualmente, o mundo está fascinado pela tecnologia solucionista — desde um aplicativo polaco, que exige que os pacientes com coronavírus tirem selfies regularmente para provar que estão dentro de casa, até o app chinês de avaliação da saúde em cores e códigos, que rastreia quem pode sair de casa. Governos têm procurado companhias como a Amazon e a Palantir para obter infraestrutura e modelagem de dados, enquanto Google e Apple unem suas forças para habilitar soluções de “preservação da privacidade” no rastreamento de dados. Assim que os países entrarem na fase de recuperação, o setor de tecnologia emprestará com alegria seus conhecimentos tecnocráticos para a faxina. A Itália já colocou Vittorio Colao, ex-CEO da Vodafone, como o responsável para liderar sua força-tarefa pós-crise.

De fato, podemos observar duas vertentes diferentes do solucionismo, nas respostas dos governos à pandemia: os “solucionistas progressistas” acreditam que a exposição oportuna às informações corretas, por meio de aplicativos, fará as pessoas se comportarem em favor do interesse público. Essa é a lógica do nudging (“cotovelada”), que moldou a desastrosa resposta inicial do Reino Unido frente à crise. Os “solucionistas punitivistas”, pelo contrário, querem usar a vasta infraestrutura de vigilância do capitalismo digital para restringir nossas atividades diárias e punir quaisquer transgressões.

No momento, já estamos há um mês debatendo como essas tecnologias podem ameaçar nossa privacidade — mas esse não é o pior perigo para nossas democracias. O verdadeiro risco é que essa crise consagre o kit de ferramentas solucionista como a opção padrão de abordagem de todos os outros problemas existenciais — desde a desigualdade até as mudanças climáticas. Afinal de contas, é muito mais fácil utilizar a tecnologia solucionista para influenciar o comportamento humano individualmente do que fazer perguntas políticas complexas sobre a raiz dos problemas que geraram tais crises.

Mas as respostas solucionistas para esta situação de catástrofe só farão com que diminua nossa imaginação pública — tornando ainda mais difícil imaginar um mundo sem os gigantes da tecnologia no domínio de nossa infraestrutura política e social.

No momento, somos todos solucionistas. Quando nossas vidas estão em risco, promessas abstratas de emancipação política são bem menos tranquilizadoras do que a promessa de um aplicativo que informa quando é seguro sair de casa. A verdadeira questão é se ainda seremos solucionistas no pós-pandemia.

A resiliência do solucionismo e neoliberalismo não se baseia em suas ideias subjacentes sejam supostamente boas, mas sim no fato tais ideias terem reformulado profundamente as instituições, incluindo os governos. O pior ainda está por vir: a pandemia vai fortalecer o Estado solucionista, assim como os atentados do 11 de setembro fortaleceram o estado de vigilância, criando uma desculpa para preencher o vácuo político com práticas antidemocráticas, desta vez, em nome da inovação — e não apenas da segurança.

Uma das funções do estado solucionista é desencorajar programadores, hackers e aspirantes a empreendedores a experimentar formas alternativas de organização social. Que o futuro seja das startups não é um fato natural, mas um resultado político. Nessa perspectiva, empreendimentos baseados em tecnologia mais subversivos, que poderiam impulsionar economias solidárias, não baseadas no mercado, morrem no estágio de protótipo. Há uma razão por trás do fato de não termos visto surgir nenhuma outra Wikipedia nos últimos vinte anos.

Uma política “pós-solucionista” deveria começar acabando com o binário artificial entre a ágil startup e o ineficiente governo que limita nossos horizontes políticos. A questão não deveria ser qual ideologia — social-democracia ou neoliberalismo — consegue aproveitar e domesticar melhor as forças da concorrência, mas sim: de que instituições precisamos para aproveitar as novas formas de coordenação social e inovação oferecidas pelas tecnologias digitais.

O debate atual sobre qual a resposta tecnológica correta para o covid-19 parece sufocado precisamente porque não temos nenhuma política pós-solucionista à vista. Ele gira em torno das compensações entre privacidade e saúde pública, por um lado, e em torno da necessidade de promover a inovação por startups, por outro. Por que não existem outras opções? Será que não é porque nós mesmos deixamos que as plataformas digitais e operadoras de telecomunicações tratassem todo o nosso universo digital como se fosse seu feudo.

Eles o executam com apenas um objetivo em mente: manter a micro-segmentação da publicidade e o fluxo dos micro-pagamentos. Como resultado, pouco se pensou na construção de tecnologias digitais que produzissem insights em nível macro sobre o comportamento coletivo de não-consumidores. As plataformas digitais atuais são locais de consumo individualizado, não de assistência nem de solidariedade mútuas.

Embora possam ser usadas com fins não-comerciais, as plataformas digitais de hoje são péssima base para uma ordem política aberta a outros atores que não sejam consumidores, startups ou empreendedores. Se não reivindicarmos plataformas digitais para uma vida democrática mais vibrante, seremos condenados por décadas a chegar à infeliz escolha entre solucionistas “progressistas” e “punitivistas”.

E, como resultado, é nossa democracia que vai sofrer. A festa do solucionismo desencadeada pelo covid-19 revelou a extrema dependência que as democracias reais têm no exercício do poder privado, não democrático, das plataformas tecnológicas. Nossa primeira meta deve ser a de traçar um caminho pós-solucionista, que nos dê soberania pública sobre as plataformas digitais.

Caso contrário, nos queixarmos sobre a resposta autoritária, porém eficaz, da China ao Covid-19 não será só patético, como também hipócrita: existem muitas formas de tecno-autoritarismo para o futuro — e a versão neoliberal não parece tão mais atraente do que a alternativa.

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