Tabu que proibia Estados de
gastar caiu. Para evitar, a todo custo, que se examinem as causas da tragédia,
os ultrarricos e corporações buscam saídas “tecnológicas”. Vale tudo – exceto
contestar a supremacia dos mercados sobre as sociedades…
Evgeny Morozov | Outras Palavras | Tradução
de Simone Paz
Em questão de semanas, o
coronavírus deu um apagão na economia mundial e mandou o
capitalismo para a unidade de cuidados intensivos. Muitos pensadores têm
manifestado sua esperança de que isso nos leve a um sistema económico mais
humano; outros alertam que a pandemia anuncia um futuro sombrio de vigilância estatal tecno-totalitária.
Os clichés datados, tirados das
páginas do romance 1984, deixaram de ser guias confiáveis do que está por vir. O capitalismo de hoje é mais forte — e mais
estranho — do que seus detratores imaginam. Seus inúmeros problemas não só
apresentam novos caminhos para o lucro, como também aumentam sua legitimidade —
já que, nas condições atuais, a única solução dependerá de pessoas como Bill
Gates e Elon Musk. Quanto piores as crises, mais fortes são seus anticorpos:
não é desse jeito que o capitalismo não acaba.
Entretanto, os críticos do
sistema estão corretos em ver o covid-19 como uma confirmação de suas
advertências. O vírus revelou a falência dos dogmas neoliberais de privatização
e desregulamentação — mostrando o que acontece quando os hospitais são
administrados com fins lucrativos e a austeridade reduz os serviços públicos. Mas o capitalismo
não sobrevive apenas pelo neoliberalismo: este último só desempenha o papel do
policial malvado, insistindo, com as palavras do mantra de Margaret Thatcher,
em que “não há alternativa”.
Nesta novela, o policial bonzinho
é a ideologia do “solucionismo”, que transcendeu suas origens no Vale do
Silício e agora faz a cabeça das elites dominantes. Em sua versão mais simples,
sustenta que como não há alternativas (ou tempo, ou dinheiro), o melhor que
podemos fazer é colocar curativos digitais sobre os danos. Os solucionistas
implantam tecnologia para evitar a política; defendem medidas “pós-ideológicas”
que mantêm girando as engrenagens do capitalismo global.
Após décadas de políticas
neoliberais, o solucionismo virou a resposta padrão para muitos problemas
políticos. Por exemplo, por que um governo investiria na reconstrução dos
arruinados sistemas de transporte público, tendo a opção de simplesmente usar Big
Data para criar incentivos personalizados para cada passageiro, a fim de
desencorajá-los a fazer viagens em horários de pico? Como o arquiteto de um
desses programas em Chicago disse, há alguns anos: “soluções desde o ponto de
vista da oferta, como a construção de mais linhas de transporte público… são
muito caras”. Em vez disso, “o que estamos fazendo é procurar formas da
tecnologia de dados administrar a demanda… ajudando os cidadãos a compreender
qual o melhor horário para se deslocar”.
As duas ideologias têm uma
relação bastante íntima. O neoliberalismo aspira a reformular o mundo de acordo
com os manuais elaborados durante a Guerra Fria: mais concorrência e menos
solidariedade, mais destruição criativa e menos planeamento estatal, mais
dependência dos mercados e menos bem-estar social. O fim do comunismo facilitou
essa tarefa — mas a ascensão da tecnologia digital acabou virando um novo
obstáculo.
Mas como? Embora a tecnologia de
dados e a inteligência artificial não favoreçam atividades para além do
mercado, elas tornam mais fácil imaginar um mundo pós-neoliberal — onde a
produção seria automatizada e a tecnologia serviria de base para sistemas de
Saúde e Educação universais, para todos: um mundo em que a abundância seria
compartilhada, e não apropriada.
É exatamente neste ponto que o
solucionismo aparece. Se o neoliberalismo é uma ideologia proativa, o
solucionismo é reativo: ele desarma, desativa e descarta toda alternativa
política. O neoliberalismo encolhe os orçamentos públicos; o solucionismo
encolhe a imaginação coletiva. O maior objetivo do solucionismo é convencer o
público de que a forma legítima de uso das tecnologias digitais é perturbar e
revolucionar tudo — com exceção da instituição central da vida moderna: o
mercado.
Atualmente, o mundo está
fascinado pela tecnologia solucionista — desde um aplicativo polaco, que exige
que os pacientes com coronavírus tirem selfies regularmente para provar que
estão dentro de casa, até o app chinês de avaliação da saúde em cores e códigos,
que rastreia quem pode sair de casa. Governos têm procurado companhias como a
Amazon e a Palantir para obter infraestrutura e modelagem de dados, enquanto
Google e Apple unem suas forças para habilitar soluções de “preservação da
privacidade” no rastreamento de dados. Assim que os países entrarem na fase de
recuperação, o setor de tecnologia emprestará com alegria seus conhecimentos
tecnocráticos para a faxina. A Itália já colocou Vittorio Colao, ex-CEO da Vodafone, como o responsável para
liderar sua força-tarefa pós-crise.
De fato, podemos observar duas
vertentes diferentes do solucionismo, nas respostas dos governos à pandemia: os
“solucionistas progressistas” acreditam que a exposição oportuna às informações
corretas, por meio de aplicativos, fará as pessoas se comportarem em favor do
interesse público. Essa é a lógica do nudging (“cotovelada”), que moldou a desastrosa
resposta inicial do Reino Unido frente à crise. Os “solucionistas
punitivistas”, pelo contrário, querem usar a vasta infraestrutura de vigilância
do capitalismo digital para restringir nossas atividades diárias e punir
quaisquer transgressões.
No momento, já estamos há um mês
debatendo como essas tecnologias podem ameaçar nossa privacidade — mas esse não
é o pior perigo para nossas democracias. O verdadeiro risco é que essa crise
consagre o kit de ferramentas solucionista como a opção padrão de abordagem de
todos os outros problemas existenciais — desde a desigualdade até as mudanças
climáticas. Afinal de contas, é muito mais fácil utilizar a tecnologia
solucionista para influenciar o comportamento humano individualmente do que
fazer perguntas políticas complexas sobre a raiz dos problemas que geraram tais
crises.
Mas as respostas solucionistas
para esta situação de catástrofe só farão com que diminua nossa imaginação
pública — tornando ainda mais difícil imaginar um mundo sem os gigantes da
tecnologia no domínio de nossa infraestrutura política e social.
No momento, somos todos
solucionistas. Quando nossas vidas estão em risco, promessas abstratas de
emancipação política são bem menos tranquilizadoras do que a promessa de um
aplicativo que informa quando é seguro sair de casa. A verdadeira questão é se
ainda seremos solucionistas no pós-pandemia.
A resiliência do solucionismo e
neoliberalismo não se baseia em suas ideias subjacentes sejam supostamente
boas, mas sim no fato tais ideias terem reformulado profundamente as
instituições, incluindo os governos. O pior ainda está por vir: a pandemia vai
fortalecer o Estado solucionista, assim como os atentados do 11 de setembro fortaleceram o estado de
vigilância, criando uma desculpa para preencher o vácuo político com
práticas antidemocráticas, desta vez, em nome da inovação — e não apenas da
segurança.
Uma das funções do estado
solucionista é desencorajar programadores, hackers e aspirantes a
empreendedores a experimentar formas alternativas de organização social. Que o
futuro seja das startups não é um fato natural, mas um resultado político.
Nessa perspectiva, empreendimentos baseados em tecnologia mais subversivos, que
poderiam impulsionar economias solidárias, não baseadas no mercado, morrem no
estágio de protótipo. Há uma razão por trás do fato de não termos visto surgir
nenhuma outra Wikipedia nos últimos vinte anos.
Uma política “pós-solucionista”
deveria começar acabando com o binário artificial entre a ágil startup e o
ineficiente governo que limita nossos horizontes políticos. A questão não
deveria ser qual ideologia — social-democracia ou neoliberalismo — consegue
aproveitar e domesticar melhor as forças da concorrência, mas sim: de que
instituições precisamos para aproveitar as novas formas de coordenação social e
inovação oferecidas pelas tecnologias digitais.
O debate atual sobre qual a
resposta tecnológica correta para o covid-19 parece sufocado precisamente
porque não temos nenhuma política pós-solucionista à vista. Ele gira em torno
das compensações entre privacidade e saúde pública, por um lado, e em torno da
necessidade de promover a inovação por startups, por outro. Por que não existem
outras opções? Será que não é porque nós mesmos deixamos que as plataformas
digitais e operadoras de telecomunicações tratassem todo o nosso universo
digital como se fosse seu feudo.
Eles o executam com apenas um
objetivo em mente: manter a micro-segmentação da publicidade e o fluxo dos
micro-pagamentos. Como resultado, pouco se pensou na construção de tecnologias
digitais que produzissem insights em nível macro sobre o comportamento coletivo
de não-consumidores. As plataformas digitais atuais são locais de consumo
individualizado, não de assistência nem de solidariedade mútuas.
Embora possam ser usadas com fins
não-comerciais, as plataformas digitais de hoje são péssima base para uma ordem
política aberta a outros atores que não sejam consumidores, startups ou
empreendedores. Se não reivindicarmos plataformas digitais para uma vida
democrática mais vibrante, seremos condenados por décadas a chegar à infeliz
escolha entre solucionistas “progressistas” e “punitivistas”.
E, como resultado, é nossa
democracia que vai sofrer. A festa do solucionismo desencadeada pelo covid-19
revelou a extrema dependência que as democracias reais têm no exercício do
poder privado, não democrático, das plataformas tecnológicas. Nossa primeira
meta deve ser a de traçar um caminho pós-solucionista, que nos dê soberania
pública sobre as plataformas digitais.
Caso contrário, nos queixarmos
sobre a resposta autoritária, porém eficaz, da China ao Covid-19 não será só
patético, como também hipócrita: existem muitas formas de tecno-autoritarismo
para o futuro — e a versão neoliberal não parece tão mais atraente do que a
alternativa.
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