sábado, 11 de abril de 2020

POR ONDE ANDA O PACIENTE ZERO?


A situação real desaconselha declarações peremptórias de que estamos perante um «vírus chinês». Os factos exigem uma investigação muito mais profunda e internacionalmente cooperativa.

José Goulão* | opinião

Mattia é um cidadão italiano de 38 anos de Codogno, Lombardia. Socialista e sociável, desportista que corre maratonas, extrovertido, saudável, certamente nunca mais esquecerá os primeiros meses de 2020. Não só por lhe ter nascido a filha, Giulia, já em Abril, mas também porque venceu o combate que travou de 19 de Fevereiro a 25 de Março contra o novo coronavírus SARS-CoV-2, que entretanto lhe vitimou o pai e atingiu ao de leve a esposa, Valentina. Não ficam por aqui os episódios em redor de Mattia: ele foi o quarto caso de COVID-19 em Itália, o «Paciente n.º 4»; mas como não teve qualquer contacto com a China nem com os três primeiros infectados na Lombardia, oriundos da cidade chinesa de Wuhan, foi considerado o «Paciente italiano n.º 1». A história de Mattia é suficiente para por em causa a versão oficial, adoptada pelos media corporativos, de que tudo terá começado no mercado de frutos do mar e animais exóticos de Huanan, na cidade chinesa de Wuhan. Há outros caminhos a percorrer para tentar descobrir o Paciente Zero da pandemia.

Caso semelhante ao de Mattia ocorreu na Coreia do Sul. Algumas semanas depois de identificados os primeiros 30 casos de COVID-19, todos eles com ligações conhecidas a Wuhan, foi detectado o mesmo tipo de infecção pulmonar numa mulher com 61 anos que nunca teve qualquer contacto com a China e com os primeiros diagnosticados no país. Passou a ser a «Paciente sul-coreana n.º 1», mais um caminho que diverge do mercado de Huanan e da narrativa do «vírus chinês», tão querida do presidente Trump e respectiva corte.

Uma narrativa de cariz propagandístico, sem qualquer suporte científico e que, como veremos, trava a procura honesta e necessária do Paciente Zero da pandemia e tenta impor uma versão oficial dos trágicos acontecimentos em curso, tão credível como as inventadas para cobrir o assassínio do presidente John Kennedy e os atentados de 11 de Setembro de 2001.


Constelação de focos de infecção

A pandemia do novo coronavírus não teve, portanto, um único foco de propagação: teve vários. Pelo que o Paciente Zero deve ser procurado a montante de todos eles, o que implica a cooperação das autoridades sanitárias e científicas de vários países – assim houvesse disponibilidade para isso em vez de verdades impostas por quem distorce a realidade.

Houve vários focos e, até ao momento, duas grandes vagas de infecção: uma antes de 25 de Janeiro, que atingiu cerca de 25 países; e uma segunda, a partir de meados de Fevereiro, que se expandiu para mais de cem países através do aparecimento de diferentes surtos praticamente simultâneos.

Poderá pensar-se que a primeira vaga teve, então, origem no mercado de frutos do mar de Huanan, em Wuhan, China.

No entanto…

O dr. Giuseppe Remuzzi, médico italiano, revelou num artigo publicado pela revista Lancet que em Dezembro, ou mesmo até em Novembro, vários médicos de família da região da Lombardia detectaram uma «pneumonia muito estranha» em circulação com os sintomas da COVID-19 e sem terem qualquer conhecimento do que estaria a passar-se na China mais ou menos na mesma altura.

E no dia 11 de Março, perante a Comissão de Saúde da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, o presidente do Centro de Controlo e Prevenção de doenças (CDC) norte-americano, Robert Redfield, admitiu que vários casos mortais da especialmente virulenta «temporada» de gripe comum, iniciada em Setembro, foram provocados pelo novo coronavírus – o que foi confirmado por exames póstumos.

De acordo com informações divulgadas pela estação de televisão CBS em 9 de Março, o surto atribuído à gripe comum nos Estados Unidos no segundo semestre de 2019 provocou 34 milhões de infectados, 350 mil internados e 20 mil mortes. Quantas terão sido provocadas pelo novo coronavírus e não diagnosticadas como tal, tendo em conta a admissão de Redfield?

A partir destes dados não é ousado recuar umas boas semanas na linha do tempo em busca do Paciente Zero, uma vez que o primeiro caso em Wuhan foi declarado em 1 de Janeiro de 2020, embora houvesse sinais da doença em Dezembro, ou mesmo em Novembro, segundo o jornal britânico Guardian.

China, Itália, Estados Unidos… Pode admitir-se que pelo menos em Novembro circulavam focos simultâneos de um novo coronavírus em três países de três continentes e muito distantes entre si.

O caso dos Jogos Mundiais Militares

A situação real desaconselha, portanto, uma declaração tão peremptória de que estamos perante um «vírus chinês». Os factos exigem uma investigação muito mais profunda e internacionalmente cooperativa.

Foi perante a insistência de Trump e do seu secretário de Estado, Michael Pompeo, em carregarem na tecla xenófoba que a China agitou as águas em estilo de balão de ensaio. Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Zhao Lijian, levantou a hipótese de o vírus ter sido levado para Wuhan pela representação dos Estados Unidos nos Jogos Mundiais Militares realizados naquela cidade entre 18 e 27 de Outubro. E convidou as autoridades norte-americanas a prestar esclarecimentos sobre as circunstâncias que envolveram a representação militar-desportiva.

Na verdade, o episódio da participação norte-americana nos jogos militares de Wuhan merece ser observado com alguma atenção.

A delegação, constituída por cerca de 300 membros, preparou-se nas imediações de Fort Detrick, no Maryland, que alberga os mais importantes laboratórios de guerra biológica dos Estados Unidos e nos quais se realizam investigações sobre o ébola, coronavírus e antraz. Estes laboratórios, de acordo com o New York Times, foram encerrados em Julho de 2019 por terem sido detectadas «falhas de segurança» pelo CDC, organismo presidido pelo atrás citado Robert Redfield.

Já em Wuhan, a representação norte-americana ficou alojada no Oriental Hotel, localizado a 300 metros do mercado de frutos do mar Huanan. Em 25 de Outubro, cinco membros da delegação foram assistidos num hospital de doenças infecciosas da cidade depois de terem manifestado problemas respiratórios acompanhados de febres elevadas. As autoridades chinesas certamente não levantarão problemas em facultar os processos dos cinco pacientes às autoridades sanitárias e científicas norte-americanas que estejam dispostas a procurar seriamente o Paciente Zero da pandemia.

Posteriormente, 42 trabalhadores do Oriental Hotel de Wuhan, onde estiveram os soldados-atletas norte-americanos, vieram a ser diagnosticados com COVID-19: foi o núcleo original da cidade e teve contacto com o primeiro grupo de sete pessoas associado ao mercado de Huanan.

Na sequência destes factos, um estudo publicado na revista Lancet revela que 13 dos 41 primeiros casos de COVID-19 diagnosticados em Wuhan não tiveram qualquer associação com o mercado.

Daniel Lucey, especialista em doenças infecciosas da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, revelou à revista Science, depois de estudar o processo de deflagração do surto de Wuhan, que a primeira infecção deve ter sido originada em Novembro «ou mesmo antes».

As circunstâncias demonstram, portanto, que em Wuhan não houve apenas um foco de infecção. Mais uma contradição da tese da passagem do vírus de um morcego ou um pangolim para um ser humano no mercado de Huanan.

Reza a crónica desses dias que a delegação dos Estados Unidos aos Jogos Mundiais Militares fez mais turismo do que desporto. Treinou pouco e as performances desportivas deixaram muito a desejar: oito medalhas, nenhuma de ouro e 35.º lugar entre as nações participantes. Uma posição medíocre para uma potência que costuma servir-se das competições desportivas internacionais para projectar a imagem do seu poderio global. Nenhum representante norte-americano, masculino ou feminino, subiu ao pódio em modalidades como o atletismo e a natação. «Atletas de molho de soja» – assim ficaram conhecidos, segundo a imprensa chinesa.

A sucessão de factos e acontecimentos revela, portanto, que existiram focos de infecção independentes de COVID-19 em Itália, nos Estados Unidos e até mais do que um em Wuhan.

Há outras particularidades a registar: a estirpe de coronavírus de Wuhan não é a mesma de Itália, sendo esta idêntica à dominante nos Estados Unidos. Aliás, as variedades que circulam em países vizinhos da China, incluindo o próprio território chinês de Taiwan, não são as mesmas de Wuhan; mesmo na China continental, em regiões afastadas desta cidade, surgiram bolsas de uma estirpe diferente.

E o primeiro-ministro australiano assegura que a esmagadora maioria dos infectados no seu país, mais de 80%, resulta de contágios com origem nos Estados Unidos.

Na procura do Paciente Zero devemos usar «ciência e cooperação», defende Geng Shuang, outro porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros. «É uma questão científica, é preciso ouvir opiniões científicas e profissionais».

No submundo dos morcegos

Onde estaria então o morcego – ou o pangolim – responsável por ter passado o vírus ao Paciente Zero, nos termos da tese tão cara a Trump e ao mainstream?

Penetrando um pouco no universo aterrador das armas de extermínio massivo não tardamos a perceber que as mentes perversas da guerra biológica têm uma preferência especial pelos morcegos.

Por exemplo, o Programa de Empenhamento Biológico Cooperativo (CBEP) da Agência para a Redução das Ameaças de Defesa dos Estados Unidos (DTRA) tem como objectivo procurar patógenos com importância militar em morcegos.

Em 2019 foi publicado um estudo financiado pelo governo dos Estados Unidos, através do Pentágono, sobre novas linhagens de coronavírus de morcegos. Incidiu sobre os coronavírus existentes em populações que circulam entre a China e o Casaquistão.

O Washington Post explicou aos seus leitores que o interesse do Pentágono em investir no potencial dos morcegos para espalhar doenças é suscitado pelo facto de «os russos fazerem o mesmo». Por isso, revela a revista Vice News, «os Estados Unidos gastaram milhões de dólares nos últimos anos a financiar pesquisas sobre morcegos, os vírus mortais de que podem ser hospedeiros – incluindo coronavírus – e como esses patógenos são transmitidos a humanos».

No topo norte-americano desta azáfama contaminadora está a DARPA – Agência de Projectos de Pesquisa avançada de Defesa – através dos seus 25 laboratórios de guerra biológica espalhados pelo mundo, sobretudo em países da antiga União Soviética – 11 dos quais na Ucrânia.

Foi na cidade ucraniana de Kharkiv, onde se situa um desses laboratórios, que em Janeiro de 2016, em apenas dois dias, 20 soldados ucranianos morreram de vírus da gripe e 200 foram hospitalizados. Dois meses depois foram registados, através da Ucrânia, 364 casos mortais provocados pela gripe suína H1N1. De notar que este vírus é idêntico ao da «gripe espanhola» de 1918-19 recentemente «ressuscitado» em laboratório por cientistas norte-americanos a partir de restos mortais de uma vítima recolhidos no Alasca.

Num trabalho de fundo recentemente publicado a jornalista Whitney Webb testemunha que em 2018 a DARPA gastou milhões de dólares em estudos realizados em laboratórios de países vizinhos da China e que resultaram na descoberta de novos coronavírus. Dez milhões de dólares foram destinados a «um projecto para identificar os mecanismos complexos da transição de um vírus de morcegos para seres humanos».

Cenários estratégicos desta actividade febril são os laboratórios que funcionam em Fort Detrick – o Instituto de Pesquisas Infecciosas do Exército (USAMRIID) e o Centro Nacional de Análise e Contramedidas de Defesa (NBACC) – precisamente as instalações encerradas pelo CDC em Julho e nas imediações das quais se preparou a equipa norte-americana enviada aos Jogos Militares Mundiais. Entre as 16 prioridades que se investigam nestas instalações está a caracterização de patógenos clássicos, emergentes e geneticamente modificados; e o estudo de patógenos mortais, incluindo ébola, antraz e coronavírus, no âmbito da ligação entre os morcegos e as armas biológicas.

Nada permite dizer que existe uma relação de causa e efeito entre o frenesim investigativo do terror biológico e o vírus que infectou o cidadão italiano Mattia, os trabalhadores do Oriental Hotel em Wuhan ou os frequentadores do mercado de frutos do mar e animais exóticos de Huanan. Quando a corporativa CNN, porém, cita agora agentes da inteligência norte-americana que teriam advertido para a circulação de um surto viral em Wuhan na segunda metade de Novembro é legítimo deduzir que os espiões saberiam até mais do que as próprias autoridades de Pequim.

O académico chinês Zhong Nanshan afirma, por seu lado, que «o surto foi identificado pela primeira vez na China mas isso não significa forçosamente que se tenha originado na China».

Por todas as razões e mais estas seria fulcral, em nome da saúde dos habitantes do planeta, descobrir o Paciente Zero desta pandemia que nos aterroriza; e também identificar as origens das três outras epidemias das quatro que já atingiram a China nos vinte anos incompletos que tem o século XXI.

Cooperação e Investigação precisam-se. Mas há quem as não permita ao mesmo tempo que manipula a realidade de maneira arrogante. Uma atitude que incita à reflexão, sobretudo quando estão milhões de vidas humanas em jogo.

*José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

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