A situação real desaconselha
declarações peremptórias de que estamos perante um «vírus chinês». Os factos
exigem uma investigação muito mais profunda e internacionalmente cooperativa.
José Goulão* | opinião
Mattia é um cidadão italiano de
38 anos de Codogno, Lombardia. Socialista e sociável, desportista que corre
maratonas, extrovertido, saudável, certamente nunca mais esquecerá os primeiros
meses de 2020. Não só por lhe ter nascido a filha, Giulia, já em Abril, mas
também porque venceu o combate que travou de 19 de Fevereiro a 25 de Março
contra o novo coronavírus SARS-CoV-2, que entretanto lhe vitimou o pai e
atingiu ao de leve a esposa, Valentina. Não ficam por aqui os episódios em redor
de Mattia: ele foi o quarto caso de COVID-19 em Itália, o «Paciente n.º 4»; mas
como não teve qualquer contacto com a China nem com os três primeiros
infectados na Lombardia, oriundos da cidade chinesa de Wuhan, foi considerado o
«Paciente italiano n.º 1». A história de Mattia é suficiente para por em causa
a versão oficial, adoptada pelos media corporativos, de que tudo terá começado
no mercado de frutos do mar e animais exóticos de Huanan, na cidade chinesa de
Wuhan. Há outros caminhos a percorrer para tentar descobrir o Paciente Zero da
pandemia.
Caso semelhante ao de Mattia
ocorreu na Coreia do Sul. Algumas semanas depois de identificados os primeiros
30 casos de COVID-19, todos eles com ligações conhecidas a Wuhan, foi detectado
o mesmo tipo de infecção pulmonar numa mulher com 61 anos que nunca teve
qualquer contacto com a China e com os primeiros diagnosticados no país. Passou
a ser a «Paciente sul-coreana n.º 1», mais um caminho que diverge do mercado de
Huanan e da narrativa do «vírus chinês», tão querida do presidente Trump e
respectiva corte.
Uma narrativa de cariz
propagandístico, sem qualquer suporte científico e que, como veremos, trava a
procura honesta e necessária do Paciente Zero da pandemia e tenta impor uma
versão oficial dos trágicos acontecimentos em curso, tão credível como as inventadas
para cobrir o assassínio do presidente John Kennedy e os atentados de 11 de
Setembro de 2001.
Constelação de focos de infecção
A pandemia do novo coronavírus
não teve, portanto, um único foco de propagação: teve vários. Pelo que o
Paciente Zero deve ser procurado a montante de todos eles, o que implica a
cooperação das autoridades sanitárias e científicas de vários países – assim
houvesse disponibilidade para isso em vez de verdades impostas por quem
distorce a realidade.
Houve vários focos e, até ao momento,
duas grandes vagas de infecção: uma antes de 25 de Janeiro, que atingiu cerca
de 25 países; e uma segunda, a partir de meados de Fevereiro, que se expandiu
para mais de cem países através do aparecimento de diferentes surtos
praticamente simultâneos.
Poderá pensar-se que a primeira
vaga teve, então, origem no mercado de frutos do mar de Huanan, em Wuhan,
China.
No entanto…
O dr. Giuseppe Remuzzi, médico
italiano, revelou num artigo publicado pela revista Lancet que em
Dezembro, ou mesmo até em Novembro, vários médicos de família da região da
Lombardia detectaram uma «pneumonia muito estranha» em circulação com os
sintomas da COVID-19 e sem terem qualquer conhecimento do que estaria a
passar-se na China mais ou menos na mesma altura.
E no dia 11 de Março, perante a
Comissão de Saúde da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, o presidente
do Centro de Controlo e Prevenção de doenças (CDC) norte-americano, Robert
Redfield, admitiu que vários casos mortais da especialmente virulenta
«temporada» de gripe comum, iniciada em Setembro, foram provocados pelo novo
coronavírus – o que foi confirmado por exames póstumos.
De acordo com informações
divulgadas pela estação de televisão CBS em 9 de Março, o surto atribuído à
gripe comum nos Estados Unidos no segundo semestre de 2019 provocou 34 milhões
de infectados, 350 mil internados e 20 mil mortes. Quantas terão sido
provocadas pelo novo coronavírus e não diagnosticadas como tal, tendo em conta
a admissão de Redfield?
A partir destes dados não é
ousado recuar umas boas semanas na linha do tempo em busca do Paciente Zero,
uma vez que o primeiro caso em Wuhan foi declarado em 1 de Janeiro de 2020,
embora houvesse sinais da doença em Dezembro, ou mesmo em Novembro, segundo o
jornal britânico Guardian.
China, Itália, Estados Unidos…
Pode admitir-se que pelo menos em Novembro circulavam focos simultâneos de um
novo coronavírus em três países de três continentes e muito distantes entre si.
O caso dos Jogos Mundiais
Militares
A situação real desaconselha,
portanto, uma declaração tão peremptória de que estamos perante um «vírus
chinês». Os factos exigem uma investigação muito mais profunda e
internacionalmente cooperativa.
Foi perante a insistência de
Trump e do seu secretário de Estado, Michael Pompeo, em carregarem na tecla
xenófoba que a China agitou as águas em estilo de balão de ensaio. Um porta-voz
do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Zhao Lijian, levantou a hipótese de o
vírus ter sido levado para Wuhan pela representação dos Estados Unidos nos
Jogos Mundiais Militares realizados naquela cidade entre 18 e 27 de Outubro. E
convidou as autoridades norte-americanas a prestar esclarecimentos sobre as
circunstâncias que envolveram a representação militar-desportiva.
Na verdade, o episódio da
participação norte-americana nos jogos militares de Wuhan merece ser observado
com alguma atenção.
A delegação, constituída por
cerca de 300 membros, preparou-se nas imediações de Fort Detrick, no Maryland,
que alberga os mais importantes laboratórios de guerra biológica dos Estados
Unidos e nos quais se realizam investigações sobre o ébola, coronavírus e
antraz. Estes laboratórios, de acordo com o New York Times, foram encerrados em
Julho de 2019 por terem sido detectadas «falhas de segurança» pelo CDC,
organismo presidido pelo atrás citado Robert Redfield.
Já em Wuhan, a representação
norte-americana ficou alojada no Oriental Hotel, localizado a 300 metros do
mercado de frutos do mar Huanan. Em 25 de Outubro, cinco membros da delegação
foram assistidos num hospital de doenças infecciosas da cidade depois de terem
manifestado problemas respiratórios acompanhados de febres elevadas. As
autoridades chinesas certamente não levantarão problemas em facultar os
processos dos cinco pacientes às autoridades sanitárias e científicas
norte-americanas que estejam dispostas a procurar seriamente o Paciente Zero da
pandemia.
Posteriormente, 42 trabalhadores
do Oriental Hotel de Wuhan, onde estiveram os soldados-atletas
norte-americanos, vieram a ser diagnosticados com COVID-19: foi o núcleo
original da cidade e teve contacto com o primeiro grupo de sete pessoas
associado ao mercado de Huanan.
Na sequência destes factos, um
estudo publicado na revista Lancet revela que 13 dos 41 primeiros
casos de COVID-19 diagnosticados em Wuhan não tiveram qualquer associação com o
mercado.
Daniel Lucey, especialista em
doenças infecciosas da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, revelou
à revista Science, depois de estudar o processo de deflagração do surto de
Wuhan, que a primeira infecção deve ter sido originada em Novembro «ou mesmo
antes».
As circunstâncias demonstram,
portanto, que em Wuhan não houve apenas um foco de infecção. Mais uma
contradição da tese da passagem do vírus de um morcego ou um pangolim para um
ser humano no mercado de Huanan.
Reza a crónica desses dias que a
delegação dos Estados Unidos aos Jogos Mundiais Militares fez mais turismo do
que desporto. Treinou pouco e as performances desportivas deixaram muito a
desejar: oito medalhas, nenhuma de ouro e 35.º lugar entre as nações
participantes. Uma posição medíocre para uma potência que costuma servir-se das
competições desportivas internacionais para projectar a imagem do seu poderio
global. Nenhum representante norte-americano, masculino ou feminino, subiu ao
pódio em modalidades como o atletismo e a natação. «Atletas de molho de soja» –
assim ficaram conhecidos, segundo a imprensa chinesa.
A sucessão de factos e
acontecimentos revela, portanto, que existiram focos de infecção independentes
de COVID-19 em Itália, nos Estados Unidos e até mais do que um em Wuhan.
Há outras particularidades a
registar: a estirpe de coronavírus de Wuhan não é a mesma de Itália, sendo esta
idêntica à dominante nos Estados Unidos. Aliás, as variedades que circulam em
países vizinhos da China, incluindo o próprio território chinês de Taiwan, não
são as mesmas de Wuhan; mesmo na China continental, em regiões afastadas desta
cidade, surgiram bolsas de uma estirpe diferente.
E o primeiro-ministro australiano
assegura que a esmagadora maioria dos infectados no seu país, mais de 80%,
resulta de contágios com origem nos Estados Unidos.
Na procura do Paciente Zero
devemos usar «ciência e cooperação», defende Geng Shuang, outro porta-voz do
Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros. «É uma questão científica, é
preciso ouvir opiniões científicas e profissionais».
No submundo dos morcegos
Onde estaria então o morcego – ou
o pangolim – responsável por ter passado o vírus ao Paciente Zero, nos termos
da tese tão cara a Trump e ao mainstream?
Penetrando um pouco no universo
aterrador das armas de extermínio massivo não tardamos a perceber que as mentes
perversas da guerra biológica têm uma preferência especial pelos morcegos.
Por exemplo, o Programa de
Empenhamento Biológico Cooperativo (CBEP) da Agência para a Redução das Ameaças
de Defesa dos Estados Unidos (DTRA) tem como objectivo procurar patógenos com
importância militar em morcegos.
Em 2019 foi publicado um estudo
financiado pelo governo dos Estados Unidos, através do Pentágono, sobre novas
linhagens de coronavírus de morcegos. Incidiu sobre os coronavírus existentes
em populações que circulam entre a China e o Casaquistão.
O Washington Post explicou
aos seus leitores que o interesse do Pentágono em investir no potencial dos
morcegos para espalhar doenças é suscitado pelo facto de «os russos fazerem o
mesmo». Por isso, revela a revista Vice News, «os Estados Unidos gastaram
milhões de dólares nos últimos anos a financiar pesquisas sobre morcegos, os
vírus mortais de que podem ser hospedeiros – incluindo coronavírus – e como
esses patógenos são transmitidos a humanos».
No topo norte-americano desta
azáfama contaminadora está a DARPA – Agência de Projectos de Pesquisa avançada
de Defesa – através dos seus 25 laboratórios de guerra biológica espalhados
pelo mundo, sobretudo em países da antiga União Soviética – 11 dos quais na
Ucrânia.
Foi na cidade ucraniana de
Kharkiv, onde se situa um desses laboratórios, que em Janeiro de 2016, em
apenas dois dias, 20 soldados ucranianos morreram de vírus da gripe e 200 foram
hospitalizados. Dois meses depois foram registados, através da Ucrânia, 364
casos mortais provocados pela gripe suína H1N1. De notar que este vírus é
idêntico ao da «gripe espanhola» de 1918-19 recentemente «ressuscitado» em
laboratório por cientistas norte-americanos a partir de restos mortais de uma
vítima recolhidos no Alasca.
Num trabalho de fundo
recentemente publicado a jornalista Whitney Webb testemunha que em 2018 a DARPA
gastou milhões de dólares em estudos realizados em laboratórios de países
vizinhos da China e que resultaram na descoberta de novos coronavírus. Dez
milhões de dólares foram destinados a «um projecto para identificar os
mecanismos complexos da transição de um vírus de morcegos para seres humanos».
Cenários estratégicos desta
actividade febril são os laboratórios que funcionam em Fort Detrick – o
Instituto de Pesquisas Infecciosas do Exército (USAMRIID) e o Centro Nacional
de Análise e Contramedidas de Defesa (NBACC) – precisamente as instalações
encerradas pelo CDC em Julho e nas imediações das quais se preparou a equipa
norte-americana enviada aos Jogos Militares Mundiais. Entre as 16 prioridades
que se investigam nestas instalações está a caracterização de patógenos
clássicos, emergentes e geneticamente modificados; e o estudo de patógenos
mortais, incluindo ébola, antraz e coronavírus, no âmbito da ligação entre os
morcegos e as armas biológicas.
Nada permite dizer que existe uma
relação de causa e efeito entre o frenesim investigativo do terror biológico e
o vírus que infectou o cidadão italiano Mattia, os trabalhadores do Oriental
Hotel em Wuhan ou os frequentadores do mercado de frutos do mar e animais
exóticos de Huanan. Quando a corporativa CNN, porém, cita agora agentes da
inteligência norte-americana que teriam advertido para a circulação de um surto
viral em Wuhan na segunda metade de Novembro é legítimo deduzir que os espiões
saberiam até mais do que as próprias autoridades de Pequim.
O académico chinês Zhong Nanshan
afirma, por seu lado, que «o surto foi identificado pela primeira vez na China
mas isso não significa forçosamente que se tenha originado na China».
Por todas as razões e mais estas
seria fulcral, em nome da saúde dos habitantes do planeta, descobrir o Paciente
Zero desta pandemia que nos aterroriza; e também identificar as origens das
três outras epidemias das quatro que já atingiram a China nos vinte anos
incompletos que tem o século XXI.
Cooperação e Investigação
precisam-se. Mas há quem as não permita ao mesmo tempo que manipula a realidade
de maneira arrogante. Uma atitude que incita à reflexão, sobretudo quando estão
milhões de vidas humanas em jogo.
*José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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