A pandemia introduziu
perturbações sociais profundas, com consequências imprevisíveis e preocupantes
a nível do emprego e das relações de trabalho, e atirou para a ribalta a
questão do teletrabalho.
Fernando Sequeira* | opinião »
Num artigo do jornal Expresso de
21 de Março último, titulavam: «Estamos preparados para o teletrabalho? A
pandemia COVID-19 pôs Portugal em trabalho remoto forçado. Para os
especialistas pode ser o princípio de uma nova era.» (sublinhado meu).
Trata-se de um título
profundamente preocupante e que nos dá a ideia das pretensões do grande capital
em desequilibrar ainda mais em seu favor o quadro das relações de trabalho,
cavalgando de forma completamente oportunista a desestruturação resultante da
pandemia do COVID-19.
Esta pandemia, ao introduzir
perturbações muito profundas nas sociedades, com consequências imprevisíveis e
preocupantes, designadamente a nível do emprego e da relações de trabalho,
atirou para a ribalta a questão do teletrabalho, e muitos fazedores de opinião,
veiculando os interesses do capital, começam a eleger esta forma de organização
do trabalho como o futuro.
Trata-se de uma completa ilusão e
mentira, mas o mais grave é que muitas camadas da população acreditam que
inevitavelmente assim será.
O que pretende o capital com a
expansão do teletrabalho?
Em síntese, pretende aumentar a
exploração, agora sob o «manto diáfano» da suposta melhoria da qualidade de
vida e da conciliação do trabalho com a vida familiar. E como? Nomeadamente,
por via do aumento do tempo de trabalho, da perda paulatina (ou não) do vínculo
jurídico à empresa, transformando a prazo o assalariado em trabalhador por
conta própria, com todos os riscos que tal acarreta, e pela transferência de
custos gerais da empresa (custos de ocupação de espaço, eletricidade, água,
seguros e outros custos gerais) para o trabalhador.
Sobre os limites materiais e
organizacionais do teletrabalho
No Dicionário da Língua
Portuguesa Contemporânea o léxico teletrabalho é definido como:
«Atividade remunerada desenvolvida no domicílio com recurso a meios
informáticos e de telecomunicações».
Em linha com este, o Código do
Trabalho define-o assim: «Considera-se teletrabalho a prestação laboral
realizada em subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do
recurso a tecnologias de informação e comunicação».
Retomemos as duas definições de
teletrabalho e destaquemos delas dois traços dominantes: um, a situação de
trabalho no domicílio (ou o trabalho fora da empresa), portanto do trabalho individual
isolado, e o outro, o instrumento de trabalho dominante, ou seja, o computador
(meios informáticos e de telecomunicações ou tecnologias de informação e
comunicação).
Sobre as sociedades enquanto
construção coletiva
A longa caminhada de centenas de
milhar de anos do Homem, desde o Homo habilis até ao homem moderno,
foi, é e continuará a ser um longo caminho coletivo, mas nunca um percurso
individual.
Foi o trabalho coletivo que
permitiu o crescimento incessante e crescente das forças produtivas ao longo
dos milénios, desde a descoberta do fogo e da roda até ao projeto e construção
de estações orbitais.
Não desvalorizando minimamente o
caráter ímpar de algumas personalidades que marcaram a História, estas só
chegaram aonde chegaram porque viveram em sociedades que foram acumulando
historicamente saberes e experiências herdadas e enriquecidas ao longo de
gerações e gerações.
De facto, aquilo que se designa
por escola, e que foi permitindo a evolução, só foi possível porque escorada no
trabalho coletivo, e as sociedades, tais como as conhecemos, são
indiscutivelmente fruto dessa construção coletiva.
Por outro lado, o teletrabalho
constitui também uma tendência anti-histórica.
E anti-histórica, porque a
evolução das sociedades no-lo ensina, pelo menos relativamente à transformação
material, pelo menos desde o Mundo Antigo, desde os artesãos isolados ou em
grupo, passando pela manufacturas dos séculos XVIII e XIX e chegando à grande
indústria moderna, com cada vez maiores coletivos de trabalhadores.
Mesmo no comércio o fenómeno é
idêntico, com o enorme salto que vai desde a pequena tenda, de matriz
greco-romana, até à grande superfície comercial.
A proletarização dos
trabalhadores, quaisquer que sejam as suas qualificações, é um processo
irreversível que o teletrabalho não faz desaparecer. O que faz é reduzir o grau
da consciência de classe do teletrabalhador, que, embora continuando
assalariado, pensa que o não é, ou que o é em reduzido grau.
Trabalho, teletrabalho e meios de
produção
Relativamente aos meios de
produção (objetos de trabalho e instrumentos de trabalho) e às formas de
organização dos processos de produção, distribuição e comercialização da enorme
diversidade de bens de consumo corrente e duradouro (e não esquecendo que para
chegar a estes é necessário, a montante, produzir bens de equipamento e
intermédios), eles são cada vez mais poderosos e especializados, exigindo uma
cada vez melhor organização e melhores tecnologias verticais e horizontais,
designadamente tecnologias da informação e da comunicação (TIC).
Por exemplo, na indústria
transformadora são sempre necessários uma vasta gama de máquinas, equipamentos
e dispositivos e poderosas infra-estruturas (por exemplo, edifícios) para
produzir tais bens.
Mas mais. Para alimentar a
indústria transformadora é necessário ter a montante uma indústria extrativa. E
é uma evidência, que qualquer mina, pedreira ou areeiro não «cabem» no
domicílio de um qualquer teletrabalhador.
E como é possível, no domínio da
construção de edifícios e da engenharia civil (construção de grandes
infra-estruturas tais como: estradas, portos, aeroportos, vias de caminhos de
ferro, barragens, pontes, etc.) concretizar as empreitadas, senão “in situ”?
E no domínio do saneamento básico
(recolha de resíduos, tratamento de águas residuais, etc.) são exigidas grandes
infra-estruturas.
Poderão as pescas, a aquacultura
e a apanha de bivalves, que têm sempre lugar na Natureza, seja no mar, seja em
rias, lagunas ou lagos, ser metidas dentro do domicílio do teletrabalhador?
Assim também na agricultura,
mesmo na familiar, na qual é sempre necessário a existência de significativas
áreas de solo arável, máquinas agrícolas e infra-estruturas, e isto a
multiplicar por dezenas de milhar de unidades agrícolas.
E de facto, também estas não
«cabem» dentro do domicílio, pois que não estamos a falar de brincar à
agricultura biológica na varanda, mas sim de alimentar com produtos agrícolas
milhões e milhões de seres humanos.
E a pecuária? É uma evidência a
necessidade de criarmos gado de diversas espécies, o qual precisa de campos
para pastar.
E o mesmo se passa com a floresta
e os seus múltiplos usos.
Mas, dir-se-á, isto são
atividades da esfera produtiva, envolvendo somente cerca de 30% da população
ativa.
Já com os serviços, então,
porventura aí poderemos ter teletrabalho em grande escala?
Não de todo, exceto de forma
residual e muito especializada.
Vejamos então porquê.
Comecemos pelo transporte
coletivo de passageiros (comboios, metropolitanos, autocarros, barcos, táxis):
será possível domiciliar estas atividades que envolvem dezenas de milhar de
trabalhadores e por vezes poderosos meios materiais? Evidentemente que não.
E o transporte de mercadorias,
seja por navio, seja por comboio, seja por camião, seja por avião, será também
possível domiciliá-lo? Evidentemente que não.
E o comércio, seja por grosso,
seja retalhista, não exige grandes superfícies comerciais, ou lojas de comércio
tradicional, ou mercados e feiras e a montante deles grandes armazéns?
Então como se compaginará toda
esta materialidade com o teletrabalho? Evidentemente que se não compagina.
E a restauração não necessita de
restaurantes?
E a hotelaria? Como é possível
atender e instalar os clientes senão em unidades hoteleiras?
E já agora, como se concretizarão
as «pouco» importantes funções de Estado, como a saúde, a educação, a cultura,
os diferentes apoios sociais, a segurança e a defesa, senão nos hospitais,
escolas, universidades e institutos, teatros, quartéis de bombeiros, esquadras
de polícia e postos da GNR?
Finalmente o fornecimento de
eletricidade, sem o qual as sociedades modernas deixariam simplesmente de
funcionar.
Pois que até o computador e
a internet, que são a base do teletrabalho, só funcionam com eletricidade.
E esta é produzida em grandes
centrais hidroelétricas, térmicas ou em parques eólicos e fotovoltaicos.
E então o que é que resta para o
teletrabalho?
Desmontada, pelo menos em parte,
a tese de que agora vamos quase todos para o teletrabalho, há que escorar a
luta ideológica contra este novo e insidioso meio de instrumentalização e
exploração dos trabalhadores.
Por outro lado, não podemos nem
devemos confundir uma situação de normalidade social e económica, com a que se
vive atualmente, caracterizada por uma enorme e súbita desestruturação da sociedade.
Evidentemente, que nas atuais
circunstâncias de confinamento e distanciamento social, o teletrabalho, para um
número significativo, mas reduzido em termos relativos, é legítimo e
obrigatório.
E então o que resta para o
teletrabalho?
Primeiro: Em circunstâncias de
normalidade económica, o teletrabalho, por não corresponder a nenhuma
necessidade objetiva das sociedades, e ainda menos aos interesses dos
trabalhadores, deverá ficar reduzido a uma dimensão residual.
Segundo: ao invés, é adequado
relativamente ao exercício de determinadas profissões o recurso ao
teletrabalho: projetistas de arquitetura e engenharias, especialistas de TIC,
criativos de publicidade, consultores de organização e gestão, advogados, etc.
Numa outra perspetiva, é
absolutamente natural o trabalho isolado, como em atividades culturais em que o
indivíduo, isoladamente considerado, está no centro de processos criativos,
tais como escritores, pintores, poetas, compositores musicais, etc.
À laia de contraponto: a invenção
da informática corresponde a mais um enorme salto no desenvolvimento das forças
produtivas, cujo permitiu aumentar fortemente a produtividade das economias,
seja através da criação de novos processos de comunicação, seja na otimização
de praticamente todas as tecnologias verticais, algumas já milenares.
E a informática, embora dando-lhe
a base, não é minimamente responsável pelo teletrabalho, para além do
objetivamente necessário.
O responsável tem nome e chama-se
capitalismo.
*O autor escreve ao abrigo do
Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)
*AbrilAbril
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