Um pequeno vírus pode ajudar-nos a dar um grande passo à frente para fundar uma nova civilização planetária
ecologista, baseada na harmonia com a natureza. Ou, então, podemos continuar
vivendo a fantasia do domínio sobre o planeta e continuar avançando até à próxima pandemia. E, por último, até a extinção", escreve Vandana Shiva,
física, ecofeminista, ativista ambiental, defensora da soberania alimentar e
fundadora do Movimento Navdanya, em artigo publicado por El Salto, 11-04-2020.
A tradução é do Cepat.
Vandana Shiva*
Um pequeno vírus confinou o
mundo, parou a economia global, levou embora a vida de milhares e o sustento de
milhões de pessoas. Que lições podemos aprender,
graças ao coronavírus, sobre a nossa espécie humana, os paradigmas económicos e
tecnológicos dominantes e a terra?
A primeira coisa é que o
confinamento nos recorda é que a terra é para todas as espécies e que quando
abrimos espaço e liberamos as ruas de carros, a poluição se reduz. Os elefantes
podem ter acesso às áreas residenciais de Dehradun e se banhar no Ganges, no
ghat de Har Ki Pauri, em Haridwar. Um leopardo vagueia livremente em
Chandigarh, a cidade projetada por Le Corbusier.
A segunda lição é que esta
pandemia não é um desastre natural, assim como os fenómenos climáticos extremos
também não são. As epidemias emergentes, assim como a mudança climática, são
antropogénicas, ou seja, causadas pelas atividades humanas.
Os cientistas nos avisam que ao
invadir os ecossistemas florestais, destruir os habitats de muitas espécies e
manipular as plantas e os animais para obter lucro económico, fomentamos o
surgimento de novas doenças. Ao longo dos últimos 50 anos, apareceram 300 novos
patógenos. Está escancaradamente documentado que 70% dos patógenos que afetam o
ser humano, entre os quais estão o HIV, o ebola, a gripe, a síndrome
respiratória do Oriente Médio (MERS, na sigla em inglês) e a síndrome
respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês) surgem quando os
ecossistemas florestais são invadidos e os vírus se transferem de animais para
pessoas. Quando se amontoam animais em fazendas industriais para maximizar os
lucros, afloram novas doenças como a gripe suína e a aviária.
A avareza humana, que não
respeita os direitos de outras espécies, nem os direitos dos membros de nossa
mesma espécie, é a raiz desta pandemia e das pandemias que a seguirão. Uma
economia global baseada na ilusão do crescimento ilimitado se traduz em um
apetite insaciável pelos recursos planetários, o que, como consequência, se
traduz em uma ilimitada transgressão dos limites do planeta, dos ecossistemas e
das espécies.
Os prognósticos dos cientistas
estabelecem que se não frearmos esta guerra antropogénica contra a terra e as
espécies que a habitam, em cem anos teremos destruído as condições que permitem
aos humanos viver e prosperar. Nossa extinção será uma a mais entre as 200 que
ocorrem diariamente. Iremos nos converter em uma espécie em risco de extinção
pela avareza, arrogância e irresponsabilidade humanas.
Todas as emergências que na
atualidade colocam em risco vidas têm sua origem na visão mecanicista,
militarista e antropogénica dos humanos como seres à margem da natureza, como
amos e senhores da terra que podem dominar, manipular e controlar outras espécies
como fontes de lucro. Também têm sua origem em um modelo económico que
considera os limites ecológicos e éticos como obstáculos que devem ser
superados para aumentar o crescimento dos lucros empresariais.
Nesse modelo, não cabem os
direitos da Mãe Terra, os direitos de outras espécies, os direitos humanos, nem
os das gerações futuras. Durante esta crise e a recuperação após o
confinamento, precisamos aprender a proteger a terra, seu clima, os direitos e
os habitats das diferentes espécies, os direitos dos povos indígenas, das
mulheres, dos agricultores e agricultoras e dos trabalhadores e trabalhadoras.
Temos que romper com a economia
do lucro e o crescimento ilimitado que nos levou a uma crise de sobrevivência.
Temos que aprender de uma vez por todas que somos membros da família planetária
e que a verdadeira economia é a economia dos cuidados: o cuidado do planeta e o
cuidado mútuo.
Para prevenir futuras pandemias,
carestias e a perspectiva de nos tornarmos sociedades em que a vida humana não
tenha valor, temos que romper com o sistema económico global que está gerando a
mudança climática, a extinção de muitas espécies e a propagação de doenças
mortais. O retorno ao local abre espaço para que as diferentes espécies, as
diferentes culturas e as variadas economias locais se desenvolvam.
Temos que reduzir de maneira
consciente nossa pegada ecológica para deixar recursos e espaço disponíveis
para outras espécies, para o restante dos seres humanos e para as gerações
futuras. A emergência sanitária e o confinamento demonstraram que quando há
vontade política, é possível reverter o processo de globalização. Façamos com
que esta reversão seja permanente e voltemos à produção local e de proximidade,
em consonância com os princípios do swadeshi (autossuficiência) que Gandhi
promulgava, ou seja, o restabelecimento da económica doméstica.
Nossa experiência no [movimento]
Navdanya nos ensinou, ao longo de três décadas, que os sistemas de produção de
policultivos locais e ecológicos são capazes de prover alimento à população sem
empobrecer o solo, poluir a água e danificar a biodiversidade.
A riqueza da biodiversidade são
as matas, os cultivos, os alimentos que consumimos, a microbiota intestinal, um
fio condutor que comunica o planeta e suas diferentes espécies, também os seres
humanos, por meio da saúde, não da doença.
Um pequeno vírus pode nos ajudar
a dar um grande passo à frente para fundar uma nova civilização planetária
ecologista, baseada na harmonia com a natureza. Ou, então, podemos continuar
vivendo a fantasia do domínio sobre o planeta e continuar avançando até a
próxima pandemia. E, por último, até a extinção.
A terra seguirá, connosco ou sem
nós.
*Fonte: IHU On Line | Publicado em
Pravda.ru
Sem comentários:
Enviar um comentário