domingo, 24 de maio de 2020

Portugal | MARIA VIVE NA OBRA LEGITIMADA POR VIDA PERMANENTE


Maria Velho da Costa faleceu, aos 81 anos. Ocorreu ao princípio da noite de ontem. Em Notícias ao Minuto podemos ler: “A escritora portuguesa Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2002, morreu hoje, aos 81 anos, disse à agência Lusa a realizadora Margarida Gil, amiga da família”.

Na homenagem singela mas merecida recorremos ao poema de Maria, Revolução e Mulheres, retirado de “O Pensador”. Consideramos que além das letras constantes a estatura de Maria dispensa mais palavras. Ler Maria será a melhor homenagem a prestar-lhe. Saber de Maria também, pois ela vive na sua obra, legitimada por vida permanente.

Em “O Pensador”, uma gota do oceano que é Maria:

Maria de Fátima Velho da Costa (1938) é uma escritora portuguesa, célebre por ser uma das autoras da obra "Novas Cartas Portuguesas (1972)" que desafiou a ditadura de Salazar. Desempenhou vários cargos na cultura e escreveu também roteiros para cinema. Entre suas obras destacam-se "Maina Mendes" (1969), "Irene ou o Contrato Social" (2000) e "Myra" (2008).

Revolução e Mulheres

Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de verem o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aí os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.

Maria Velho da Costa

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