O que se passa neste momento já
não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles
são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política.
Isabel do Carmo* | Público |
opinião
Não
há raças, há racismo, tão evidente desde sempre nos EUA e presente em Portugal. E já que
alguma direita fala em “cultura marxista”, vale então a pena analisá-lo à luz
da luta de classes, embora a sua expressão social e cultural deva incluir esta
análise, mas ir além dela. Tal
como escreveu Pacheco Pereira neste jornal, os autores daquela expressão
são uns “senhoritos” ignorantes, que nunca leram Marx, nem Engels, nem Gramsci.
Falam do que não sabem. Diga-se de passagem que nós, colocados mais à esquerda,
não andamos a fazer análises marxistas, mas apenas a situarmo-nos politicamente
no que resta de uma social-democracia do após II Guerra Mundial, baseada na
compensação da desigualdade através da gratuidade universal de alguns serviços
públicos, sustentados pelos impostos pagos por quem os pode pagar.
Acabou de partir, mas já com cem
anos, o escritor francês que escreveu a definição do racismo mais adoptada. Foi
Albert Memmi, nascido na comunidade judaica pobre de Tunes. A língua materna
foi o árabe, mas depois estudou numa escola rabínica e na Aliança Israelita
Universal, prosseguiu em francês em Tunes, depois na Argélia e finalmente na
Sorbonne. Foi sempre colono pobre e estudante pobre. Este cruzamento de
origens, de culturas e de classes numa só pessoa pode ser simbólico da
complexidade da questão. O seu livro Le racisme, editado pela
Gallimard em 1982, está esgotado. Felizmente que uma larga bibliografia actual,
ligada à investigação histórica e às polémicas e movimentos actuais, tem dado
muita informação sobre o tema.
A primeira das razões do racismo
está expressa na definição de Memmi de 1964 e que ainda consta na Encyclopaedia
Universalis: “O racismo é a valorização, generalizada e definitiva, de
diferenças reais ou imaginárias, para proveito do acusador e para detrimento da
sua vítima, a fim de justificar os seus privilégios e a sua agressão.” Embora
os teóricos considerem que o racismo só existe a partir do século XVIII, a
verdade é que foi nessa data que foi teorizado, mas existe desde que povos
foram colonizados e dominados por outros povos e, particularmente no que nos
diz respeito, às
grandes potências colonizadoras europeias e americanas desde que, a
partir do século XV, a acumulação de capital se fez à custa do comércio
triangular – captura de escravos na costa africana, deslocação de cerca de 12
milhões de africanos para a América, aplicação do trabalho escravo nesse
continente ao sul e ao norte, viagem dos produtos para a Europa para serem
comercializados.
É claro aqui quem eram os
explorados e quem eram os exploradores. Questões de classe, pois. As
grandes fortunas europeias fizeram-se dirigidas por escravocratas, que
comandavam este triângulo. As portuguesas, as espanholas, as inglesas, as
alemãs, as francesas, as holandesas e até as dinamarquesas. Os explorados eram
os africanos de pele pigmentada. Os exploradores não eram os pobres marinheiros
de pele clara, embarcados a fugir da miséria, da fome, da aridez da terra de
tantas zonas de Portugal. Foram eles os que tiveram coragem para se fazer ao
mar, foram eles que descobriram o que de facto estava por descobrir, os
caminhos por mar para outras terras, onde viviam outras pessoas. Foram eles,
como Fernão Magalhães e todos os que morreram pelo caminho, que ousaram encarar
o desconhecido.
Os aproveitadores estavam em terra. Esses , os
marinheiros, não são os “culpados”, tal como não são os “brancos” pobres que
por aqui iam ficando na Europa, embora acabassem por beneficiar de migalhas. A
linha de divisão passa entre explorados e exploradores, entre classes. A
“culpa” não é dos portugueses em geral, mas de uma dúzia de genealogias
hereditárias que tiveram sempre o poder e contaram uma história de fadas a
sucessivas gerações, a história do Império. Mas acontece que os explorados, os
africanos e afrodescendentes, vieram de zonas próximas do equador, tinham pele
pigmentada para sobreviver, tal como os nórdicos da Europa tiveram que perder a
pigmentação para obter vitamina D. Foi há pouco tempo, segundo alguns investigadores
só há “brancos” há cerca de 10.000 anos. Mas a verdade é que os explorados
tinham uma marca, a cor da pele e algumas feições. Essas diferenças serviram os
teóricos do racismo do século XVIII. Mas a realidade já existia, provam-no as
palavras iluminadas do Padre António Vieira, de Bartolomeu de las Casas e as
crónicas de Zurrara, em plena época escravocrata.
Já em 1684, François Bernier
definira quatro “raças”, Lineu em 1758 manteve quatro, mas substituiu os lapões
pelos americanos e, em 1775, Johann Blumenbach, naturalista alemão, cheio de
boas intenções humanistas, coleccionador de crânios, achou que o mais belo era
o de uma escrava caucasiana e partiu daí a invenção caucasiana, que ainda hoje
é oficial e administrativa, apesar de todos os desmentidos dos estudos
genéticos, da UNESCO declarar em 1950 que não há raças humanas e a
multiplicidade de estudos do genoma desde 2000 mostrar que somos todos uma
mistura de origens, felizmente. Se não, já uma parte da humanidade tinha
sucumbido a doenças raras. No entanto, a marca ficou.
À escravatura seguiu-se o
colonialismo, para Portugal com trabalho forçado até 1974. Nos EUA, mesmo após
a abolição, a marca foi ficando como sinal de classes, a baixa. Não venham
pensamentos primários dizer que há afrodescendentes que são ricos e ilustrados,
e vide o casal Obama, e que há brancos pobres. Há. Mas quando se vai
ver os estudos que aplicam grandes amostras e estatísticas válidas a maior
percentagem de pobres são afrodescendentes, a maior percentagem sem cobertura
médica são também eles e os chamados “latinos”. E a
maior percentagem de vítimas da covid-19 são eles. E há diferenças nas
universidades conforme o seu ranking e até conforme o objecto das teses.
Felizmente, dos EUA vem o pior e o melhor, porque todos estes estudos têm
origem nesse país. Curiosamente, os afrodescendentes têm alguma marca à vista,
mas têm muito mais marca “branca”. É que os sucessivos escravocratas,
exploradores, fazendeiros, não levavam consigo mulheres. Foi também de violação
e submissão que se fez esta população.
Mas eis que levanta a cabeça, porque
Floyd já não conseguiu levantar a dele (quanto ao
nosso imigrante assassinado no aeroporto, estamos quietinhos, mas é
paralelo). Juntam-se jovens “brancos” e a
revolta alastra por 147 cidades dos EUA. Há
polícias a pedir perdão de joelhos. Há tropa que não quer ser enviada para
os Estados em revolta (é uma longa história o envio da tropa federal para os
Estados nos tempos das grandes revoltas). O Capitólio é enfrentado pela
multidão.
Houvesse agora nos EUA uma
vanguarda e um programa alternativo que defendesse a liberdade, e aí sim,
podiam tremer os “senhoritos”. A história é lenta, mas um dia há-de vir. E
parece vir por aí.
O que se passa neste momento já
não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles
são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política. Contra as
leis racistas que este Presidente foi recuperar depois de Obama ter acabado com
elas. Contra o sindicato dos polícias que fala nos comícios a apoiar o
Presidente.
É a revolta contra o sistema?
Recuperando Marx, o que ele profetizou foi que o socialismo a caminho do
comunismo se viria a dar numa sociedade desenvolvida e industrializada,
alfabetizada. Infelizmente, por acasos políticos, a revolução deu-se num país
de muitos camponeses e poucos operários, sem instrução. E correu mal. Houvesse
agora nos EUA uma vanguarda e um programa alternativo que defendesse a
liberdade, e aí sim, podiam tremer os “senhoritos”. A história é lenta, mas um
dia há-de vir. E parece vir por aí. Para nos animar, neste tempo em que se
agravam as desigualdades.
*Médica; professora da Faculdade
de Medicina de Lisboa; activista política
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