Bom dia, este é o seu Expresso
Curto
Escravos de um deus menor
Jorge Araújo | Expresso
O sol não morre todos os dias da
mesma maneira. Nem à mesma hora. Às vezes, vende cara a sua luz, esperneia
as réstias do seu brilho. Outras vezes, cavalga apressadamente para a linha
do horizonte e desaparece sem deixar rasto como se tivesse vergonha da sua
própria luz.
Foi isso que aconteceu anteontem,
no município espanhol de San Leonardo de Yague. O sol morreu ao princípio
da tarde, mas o mundo continuou a girar à sua volta como se nada tivesse
acontecido.
É triste viver num mundo em que o
sol não é notícia quando morre.
O sol morreu quando, debruçado
sobre uma janela de um terceiro andar, uma criança de apenas oito anos gritou a pedir ajuda. Dizia
que lhe doía a boca e o estômago. Estava sozinha em casa porque os pais
tinham ido trabalhar. Saíram por volta das cinco e meia da madrugada e só
regressariam ao cair da noite.
Regressaram mais cedo porque um
vizinho alertou a Guardia Civil. O casal, na casa dos trinta anos, foi acusado
de abandono de menores, mas ficou em liberdade. E o menor continuou à guarda dos pais.
Esta é mais uma notícia dos
tempos estranhos em que vivemos. Tempos de crise sanitária, económica e social.
Tempos em que o medo parece ter medo do próprio medo.
Já não é apenas o vírus que nos
preocupa. É como vamos sobreviver ao vírus. Há cada vez mais desempregados,
cada vez mais pessoas apavoradas com a possibilidade de perder o emprego. O
ganha pão, o sustento dos filhos.
E que, por isso, talvez possam
não hesitar um segundo em deixar uma criança de oito anos sozinha em casa. Uma criança em
casa para os adultos irem trabalhar. Parece que tudo mudou para que tudo
ficasse na mesma. Ou ligeiramente pior, como escreve o escritor Michel
Houellebecq, num artigo publicado na próxima edição da revista do Expresso.
Com ou sem covid-19, continuamos
escravos de um Deus menor. Acorrentados ao dinheiro. E, enquanto um pai tiver
de deixar um filho sozinho em casa para ir trabalhar, o sol vai ter
vergonha da sua própria luz.
OUTRAS NOTÍCIAS
NOVO BANCO. De cada vez que ouço
falar em “Novo Banco”, levo as mãos aos bolsos. Mas chego sempre atrasado
porque há uma voz que me segreda ao ouvido “isto é um assalto”. Os contribuintes
portugueses continuam alegremente a pagar os erros dos banqueiros e este buraco
parece não ter fundo.
Por isso, é natural que o
parlamento tenha querido saber os contornos deste nebuloso acordo. Foram
pedidos documentos mas agora os deputados do Bloco de Esquerda descobriram a falta
de dois documentos secretos que fazem parte do contrato de venda da
instituição.
Num requerimento aprovado por
unanimidade, os deputados da Comissão de Orçamento de Finanças concordaram em
pedir as peças contratuais em falta. A ver vamos que surpresas o futuro
nos reserva.
NOVO BANCO II. O antigo ministro
das Finanças deu uma entrevista ao podcast Política com Palavra do Partido
Socialista. E quem esperava que desse o braço a torcer em relação ao Novo
Banco, pode bem tirar o cavalinho da chuva.
“Poderíamos fazer sempre qualquer coisa diferente (no Novo Banco ). Se eu me arrependi de alguma coisa que tenha feito? A resposta é fácil e é não”, disse o antigo governante.
“Poderíamos fazer sempre qualquer coisa diferente (no Novo Banco ). Se eu me arrependi de alguma coisa que tenha feito? A resposta é fácil e é não”, disse o antigo governante.
COVID-19. Depois de na
véspera termos aberto as garrafas de champanhe para celebrar a escolha de
lisboa para palco da final four da Liga dos Campeões ontem veio do balde de
água fria.
Portugal está na lista negra de vários países europeus que mostram cartão vermelho aos cidadãos portugueses na fronteira. O Governo não gostou e agora admite fechar as suas fronteiras a quem não deixe entrar portugueses. É a chamada lei da reciprocidade.
BRASIL. Continua a apertar-se o
cerco à volta de Jair Bolsonaro. Fabricio Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente do
Brasil, foi preso em São Paulo por suspeita de envolvimento num esquema
de corrupção.
É amigo da família há mais de trinta anos e há quase um que era procurado pela polícia. Bolsonaro considera que está a ser alvo de uma perseguição com o único objetivo de o afastar do poder.
TRUMP. É um livro que mais parece
uma bomba-relógio. Ainda nem sequer foi publicado e já está a provocar ondas
de choque.
”A sala onde tudo aconteceu” é o livro de memórias de John Bolton, o antigo Conselheiro de Segurança dos Estados Unidos, que faz duras critícas ao atual inquilino da Casa Branca. Trump quer impedir a publicação do livro, prevista para 23 de Junho, porque considera que o seu antigo aliado violou a lei.
CALOR. O verão está à porta. O solstício de verão terá lugar às 22h44 de sábado,
marcando o início da estação no hemisfério norte. As temperaturas vão
começar a subir, assim como a tentação de disfrutar da praia.
Mas atenção: ainda não foi descoberta nenhuma vacina nem nenhum medicamento capaz de fazer frente ao coronavírus. E o vírus não escolhe idades.
Mas atenção: ainda não foi descoberta nenhuma vacina nem nenhum medicamento capaz de fazer frente ao coronavírus. E o vírus não escolhe idades.
FUTEBOL. A Premier Ligue está de
volta e hoje é dia de um duelo português. O Tottenham, orientado por José
Mourinho, vai medir forças com o Manchester United, do maestro Bruno Fernando.
O embate está marcado para as 20:15 e pode ser visto na SportTV2.
Ainda no futebol, destaque para
este Sporting do Rúben Amorin. Ontem, os leões venceram em casa o Tondela
por dois a zero. Dos três grandes é a única equipa que ainda não perdeu neste
arranque do campeonato pós covid-19.
ADEUS. O seu nome certamente não
lhe diz muito. Mas se disser o título de uma canção, o caso muda de figura.
Durante a IIº Guerra Mundial, foi a voz da esperança do povo britânico. “We wiil
meet again”, a música que lhe deu fama, foi recentemente recuperada durante
a crise provocada pela Covid-19.
Vera Lynn morreu aos 103 anos,
mas poderá viver para sempre. Mal soube da notícia, Boris Johnson escreveu no twitter que “a sua voz
viverá para erguer os corações das gerações vindouras”.
O QUE ANDO A LER
A professora Olga fez anos esta
semana. E 90 não é uma idade qualquer. Foi a primeira das muitas professoras
que cruzaram o meu caminho.
Passados todos estes anos,o seu
nome continua tatuado na minha memória. Foi ela quem me ensinou os primeiros
números. As primeiras letras. A unir palavras como quem olha as estrelas.
Há coisas que o tempo não apaga.
Por isso, nesta data especial, gratidão é a palavra.
A minha primeira professora vive
há muito nos Açores. Não a vejo desde os meus oito anos, quando deixei a Ilha
do Sal e a escola primária do Monte de Curral.
Mas o tempo não é todo igual.
Lembro-me como se fosse hoje da professora Olga, naquela sala-de-aulas, onde o
calor teimava em bater à janela. O corpo pequeno a saltitar de um canto para o
outro. A voz que não precisava subir para ser ouvida.
À primeira vista, dava ares de
dura. Mas a sua linguagem era a do carinho.E, naquela idade, como em todas
as outras, o carinho é bem de primeira necessidade.
Há coisas que não se agradecem. Há
coisas que não se esquecem.
Às vezes, ponho-me a pensar na
imaginação dela. Tento pôr-me na sua pele. O que pensaria que aquele miúdo
rebelde e de pestanas do tamanho do mundo viesse a ser quando se fizesse
grande? Certamente, estava longe de imaginar quanto ler e escrever seriam a minha
vida. Tão-pouco quanto me ensinou a olhar o mundo.
Nestes dias, ainda às voltas com
uma mudança de casa, caixotes sem conta pesados de livros, dei por mim a pensar quais
seriam os livros que, se pudesse, ofereceria à professora Olga, no seu aniversário.
Escolheria três: “Ébano” de
Ryszard Kapuscinski, “A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera e “
Siddartha”, de Hermann Hesse.
Parabéns professora Olga!
O QUE ANDO A OUVIR
A primeira vez que fui à Guiné
Bissau era jornalista do semanário “ O Independente” e Paulo Portas o meu
diretor.
Foi em Novembro de 1990, dez anos
após o golpe de estado que afastou Luís Cabral do poder. E assinou a certidão
de óbito da ideia de um mesmo partido estar à frente de dois países. A minha
missão era escrever um perfil do presidente Nino Vieira.
Ainda me lembro do bafo de calor
que me engoliu mal se abriram as portas do avião. E da preciosa ajuda que tive
do então delegado da Lusa, Eduardo Lobão. Não fiquei mais do que três dias e,
na sexta-feira seguinte, assinei um artigo cujo título era “Sinhozinho
Nino”, numa alusão a uma novela brasileira, que muito tinha dado que falar.
Como é óbvio, o retratado não
gostou nada do que leu. Ao jeito de ditador, mandou prender um dos seus
assessores, cujo único crime era ser suspeito de ter falado comigo. Durante
anos, fui persona non grata na Guiné Bissau.
Depois deste episódio, voltei
vezes sem conta a Bissau. A cada regresso, a estranha sensação de estar a
pisar um país que poderia ser o meu. Vi a história acontecer à frente dos meus
olhos, ganhei alguns amigos para a vida. Um deles é o poeta e jornalista Tony
Tcheka. Recordo, com saudade, as tardes passadas em sua casa, juntamente com a
sua então mulher, a portuguesa mais guineense que conheci, uma anfitriã notável,
infelizmente já falecida.
Um dos últimos artigos que
assinei sobre esta antiga colónia portuguesa começava assim: “A
Guiné-Bissau não é um Estado. É um estado de espírito”. Hoje, escreveria o
mesmo. O que pensar de um país cujo futuro é eternamente adiado, refém de
políticos gananciosos e de militares aventureiros. De um país preso nas
teias do narcotráfico.
A cada regresso, a cada viagem, a
mesma banda sonora. Na bagagem, levava sempre José Carlos Schwarz, um dos maiores compositores
guineenses. Conhecio-o no Mindelo, em Cabo Verde , durante um concerto do seu grupo Cobiana Jazz.
E nunca mais o perdi de vista. Hoje, escrevo a ouvi-lo.
Infelizmente, José Carlos
Schwarz morreu cedo. Demasiado cedo. Tinha apenas 28 anos quando foi vítima de
uma acidente de aviação, em Havana, Cuba. Ainda hoje, deve dar voltas no
túmulo só de imaginar o que
aconteceu ao país que tanto amava e pelo qual tanto lutou.
Tenha um resto de bom dia.
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