sexta-feira, 19 de junho de 2020

SOL, VIDA? CURTA QUE QUE NOS PARIU!


Bom dia, este é o seu Expresso Curto

Escravos de um deus menor

Jorge Araújo | Expresso

O sol não morre todos os dias da mesma maneira. Nem à mesma hora. Às vezes, vende cara a sua luz, esperneia as réstias do seu brilho. Outras vezes, cavalga apressadamente para a linha do horizonte e desaparece sem deixar rasto como se tivesse vergonha da sua própria luz.

Foi isso que aconteceu anteontem, no município espanhol de San Leonardo de Yague. O sol morreu ao princípio da tarde, mas o mundo continuou a girar à sua volta como se nada tivesse acontecido.

É triste viver num mundo em que o sol não é notícia quando morre.

O sol morreu quando, debruçado sobre uma janela de um terceiro andar, uma criança de apenas oito anos gritou a pedir ajuda. Dizia que lhe doía a boca e o estômago. Estava sozinha em casa porque os pais tinham ido trabalhar. Saíram por volta das cinco e meia da madrugada e só regressariam ao cair da noite.

Regressaram mais cedo porque um vizinho alertou a Guardia Civil. O casal, na casa dos trinta anos, foi acusado de abandono de menores, mas ficou em liberdade. E o menor continuou à guarda dos pais.

Esta é mais uma notícia dos tempos estranhos em que vivemos. Tempos de crise sanitária, económica e social. Tempos em que o medo parece ter medo do próprio medo.

Já não é apenas o vírus que nos preocupa. É como vamos sobreviver ao vírus. Há cada vez mais desempregados, cada vez mais pessoas apavoradas com a possibilidade de perder o emprego. O ganha pão, o sustento dos filhos.

E que, por isso, talvez possam não hesitar um segundo em deixar uma criança de oito anos sozinha em casa. Uma criança em casa para os adultos irem trabalhar. Parece que tudo mudou para que tudo ficasse na mesma. Ou ligeiramente pior, como escreve o escritor Michel Houellebecq, num artigo publicado na próxima edição da revista do Expresso.

Com ou sem covid-19, continuamos escravos de um Deus menor. Acorrentados ao dinheiro. E, enquanto um pai tiver de deixar um filho sozinho em casa para ir trabalhar, o sol vai ter vergonha da sua própria luz.

OUTRAS NOTÍCIAS

NOVO BANCO. De cada vez que ouço falar em “Novo Banco”, levo as mãos aos bolsos. Mas chego sempre atrasado porque há uma voz que me segreda ao ouvido “isto é um assalto”. Os contribuintes portugueses continuam alegremente a pagar os erros dos banqueiros e este buraco parece não ter fundo.

Por isso, é natural que o parlamento tenha querido saber os contornos deste nebuloso acordo. Foram pedidos documentos mas agora os deputados do Bloco de Esquerda descobriram a falta de dois documentos secretos que fazem parte do contrato de venda da instituição.

Num requerimento aprovado por unanimidade, os deputados da Comissão de Orçamento de Finanças concordaram em pedir as peças contratuais em falta. A ver vamos que surpresas o futuro nos reserva.

NOVO BANCO II. O antigo ministro das Finanças deu uma entrevista ao podcast Política com Palavra do Partido Socialista. E quem esperava que desse o braço a torcer em relação ao Novo Banco, pode bem tirar o cavalinho da chuva.

“Poderíamos fazer sempre qualquer coisa diferente (no Novo Banco ). Se eu me arrependi de alguma coisa que tenha feito? A resposta é fácil e é não”, disse o antigo governante.

COVID-19. Depois de na véspera termos aberto as garrafas de champanhe para celebrar a escolha de lisboa para palco da final four da Liga dos Campeões ontem veio do balde de água fria.

Portugal está na lista negra de vários países europeus que mostram cartão vermelho aos cidadãos portugueses na fronteira. O Governo não gostou e agora admite fechar as suas fronteiras a quem não deixe entrar portugueses. É a chamada lei da reciprocidade.

BRASIL. Continua a apertar-se o cerco à volta de Jair Bolsonaro. Fabricio Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente do Brasil, foi preso em São Paulo por suspeita de envolvimento num esquema de corrupção.

É amigo da família há mais de trinta anos e há quase um que era procurado pela polícia. Bolsonaro considera que está a ser alvo de uma perseguição com o único objetivo de o afastar do poder.

TRUMP. É um livro que mais parece uma bomba-relógio. Ainda nem sequer foi publicado e já está a provocar ondas de choque.

”A sala onde tudo aconteceu” é o livro de memórias de John Bolton, o antigo Conselheiro de Segurança dos Estados Unidos, que faz duras critícas ao atual inquilino da Casa Branca. Trump quer impedir a publicação do livro, prevista para 23 de Junho, porque considera que o seu antigo aliado violou a lei.

CALOR. O verão está à porta. O solstício de verão terá lugar às 22h44 de sábado, marcando o início da estação no hemisfério norte. As temperaturas vão começar a subir, assim como a tentação de disfrutar da praia.

Mas atenção: ainda não foi descoberta nenhuma vacina nem nenhum medicamento capaz de fazer frente ao coronavírus. E o vírus não escolhe idades.

FUTEBOL. A Premier Ligue está de volta e hoje é dia de um duelo português. O Tottenham, orientado por José Mourinho, vai medir forças com o Manchester United, do maestro Bruno Fernando. O embate está marcado para as 20:15 e pode ser visto na SportTV2.

Ainda no futebol, destaque para este Sporting do Rúben Amorin. Ontem, os leões venceram em casa o Tondela por dois a zero. Dos três grandes é a única equipa que ainda não perdeu neste arranque do campeonato pós covid-19.

ADEUS. O seu nome certamente não lhe diz muito. Mas se disser o título de uma canção, o caso muda de figura. Durante a IIº Guerra Mundial, foi a voz da esperança do povo britânico. “We wiil meet again”, a música que lhe deu fama, foi recentemente recuperada durante a crise provocada pela Covid-19.

Vera Lynn morreu aos 103 anos, mas poderá viver para sempre. Mal soube da notícia, Boris Johnson escreveu no twitter que “a sua voz viverá para erguer os corações das gerações vindouras”.

O QUE ANDO A LER

A professora Olga fez anos esta semana. E 90 não é uma idade qualquer. Foi a primeira das muitas professoras que cruzaram o meu caminho.

Passados todos estes anos,o seu nome continua tatuado na minha memória. Foi ela quem me ensinou os primeiros números. As primeiras letras. A unir palavras como quem olha as estrelas.

Há coisas que o tempo não apaga. Por isso, nesta data especial, gratidão é a palavra.

A minha primeira professora vive há muito nos Açores. Não a vejo desde os meus oito anos, quando deixei a Ilha do Sal e a escola primária do Monte de Curral.

Mas o tempo não é todo igual. Lembro-me como se fosse hoje da professora Olga, naquela sala-de-aulas, onde o calor teimava em bater à janela. O corpo pequeno a saltitar de um canto para o outro. A voz que não precisava subir para ser ouvida.

À primeira vista, dava ares de dura. Mas a sua linguagem era a do carinho.E, naquela idade, como em todas as outras, o carinho é bem de primeira necessidade.

Há coisas que não se agradecem. Há coisas que não se esquecem.

Às vezes, ponho-me a pensar na imaginação dela. Tento pôr-me na sua pele. O que pensaria que aquele miúdo rebelde e de pestanas do tamanho do mundo viesse a ser quando se fizesse grande? Certamente, estava longe de imaginar quanto ler e escrever seriam a minha vida. Tão-pouco quanto me ensinou a olhar o mundo.

Nestes dias, ainda às voltas com uma mudança de casa, caixotes sem conta pesados de livros, dei por mim a pensar quais seriam os livros que, se pudesse, ofereceria à professora Olga, no seu aniversário.

Escolheria três: “Ébano” de Ryszard Kapuscinski, “A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera e “ Siddartha”, de Hermann Hesse.
Parabéns professora Olga!

O QUE ANDO A OUVIR

A primeira vez que fui à Guiné Bissau era jornalista do semanário “ O Independente” e Paulo Portas o meu diretor.

Foi em Novembro de 1990, dez anos após o golpe de estado que afastou Luís Cabral do poder. E assinou a certidão de óbito da ideia de um mesmo partido estar à frente de dois países. A minha missão era escrever um perfil do presidente Nino Vieira.

Ainda me lembro do bafo de calor que me engoliu mal se abriram as portas do avião. E da preciosa ajuda que tive do então delegado da Lusa, Eduardo Lobão. Não fiquei mais do que três dias e, na sexta-feira seguinte, assinei um artigo cujo título era “Sinhozinho Nino”, numa alusão a uma novela brasileira, que muito tinha dado que falar.

Como é óbvio, o retratado não gostou nada do que leu. Ao jeito de ditador, mandou prender um dos seus assessores, cujo único crime era ser suspeito de ter falado comigo. Durante anos, fui persona non grata na Guiné Bissau.

Depois deste episódio, voltei vezes sem conta a Bissau. A cada regresso, a estranha sensação de estar a pisar um país que poderia ser o meu. Vi a história acontecer à frente dos meus olhos, ganhei alguns amigos para a vida. Um deles é o poeta e jornalista Tony Tcheka. Recordo, com saudade, as tardes passadas em sua casa, juntamente com a sua então mulher, a portuguesa mais guineense que conheci, uma anfitriã notável, infelizmente já falecida.

Um dos últimos artigos que assinei sobre esta antiga colónia portuguesa começava assim: “A Guiné-Bissau não é um Estado. É um estado de espírito”. Hoje, escreveria o mesmo. O que pensar de um país cujo futuro é eternamente adiado, refém de políticos gananciosos e de militares aventureiros. De um país preso nas teias do narcotráfico.

A cada regresso, a cada viagem, a mesma banda sonora. Na bagagem, levava sempre José Carlos Schwarz, um dos maiores compositores guineenses. Conhecio-o no Mindelo, em Cabo Verde, durante um concerto do seu grupo Cobiana Jazz. E nunca mais o perdi de vista. Hoje, escrevo a ouvi-lo.

Infelizmente, José Carlos Schwarz morreu cedo. Demasiado cedo. Tinha apenas 28 anos quando foi vítima de uma acidente de aviação, em Havana, Cuba. Ainda hoje, deve dar voltas no túmulo só de imaginar o que aconteceu ao país que tanto amava e pelo qual tanto lutou.

Tenha um resto de bom dia.

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