sexta-feira, 10 de julho de 2020

Portugal | Decisões concertadas


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

O nosso olhar em plena pandemia muda todos os dias. O fardo carrega-se pesado perante as opções, pequenas e gigantes, tomadas por cada um de nós na adaptação aos dias que vivemos sob o jugo dum desconfinamento temerário.

Sem fim à vista. Dias limpos são aqueles em que o optimismo carrega o fardo e este quase se faz leve. Dias pesados são alguns outros, torturas reprogramadas por más condutas de minúcia ou desastrosos comportamentos colectivos. O nosso ânimo, ao dispor do alcance fatal do desastre económico, movimenta-se na corda bamba ou no arame, tremido e desequilibrado, entre o número diminuto de mortalidade e o quase permanente 1% de crescimento diário de casos. Nestes dias, entre os chavões-sinónimo do #vaificartudobem e do #covidlivesmatter, há sempre uma visão optimista ou decepcionada em confronto epidémico.

Também por isso, surpreende pelo timing a decisão concertada entre Marcelo e Costa que deu por terminados os encontros regulares no Infarmed, mantidos entre políticos, especialistas em saúde pública, conselheiros de Estado, sindicatos e patrões. Remeter a informação sobre a evolução da pandemia para os boletins diários da Direcção-Geral da Saúde, no momento em que se sente que a curva do planalto não evolui para queda ou ravina, é um alto acordo de Estado cujo nível de secretismo ultrapassa a transcendência. A surpresa de todos os partidos perante a decisão dá bem nota do desconforto de terem de esperar (se excepcionarmos o debate sobre o estado na nação) até final de Setembro para confrontar o primeiro-ministro presencialmente sobre o que politicamente está a ser feito no combate à pandemia. Isto, num contexto em que ninguém pode assegurar com rigor o dia de amanhã. Se o presidente da República considera que se fechou um ciclo, que novo ciclo se abriu? Impõe-se que o Parlamento receba toda a informação, rigorosa e atempadamente.

Os timings movimentam-se de forma misteriosa durante a covid-19. Apesar do exotismo da facilidade com que Rui Rio prescinde da presença de António Costa nos debates quinzenais no Parlamento, a cultura de confronto não se extingue e parece ter migrado para o PS. A opinião própria pode ser um bem escasso dentro das estruturas partidárias e basta um assomo de coragem para enterrar ministros em "slots" de candidatos à sucessão. António Costa é tão consensual que se transformou num paradigma de inamovibilidade. Não é necessária a chancela de Carlos César para concluirmos que os eventuais candidatos à sucessão no partido terão de esperar. Mas a incomodidade de tantos socialistas perante a opinião própria de Pedro Nuno Santos relativamente ao tão maltratado dossier das eleições presidenciais dá bem nota de como o PS se prepara para apoiar mais uma decisão concertada entre Marcelo e Costa. O PS prepara-se para se fingir de morto em Janeiro.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

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