“Ó
tempo volta para trás, traz-me tudo o que eu perdi
tem
pena e dá-me a vida, a vida que eu já vivi,
ó tempo volta para trás, mata as minhas esperanças vãs,
vê que até o próprio sol volta todas as manhãs.” (António Mourão, 1965)
ó tempo volta para trás, mata as minhas esperanças vãs,
vê que até o próprio sol volta todas as manhãs.” (António Mourão, 1965)
De
quando em vez elaboram-se visões ou planos estratégicos para Portugal. António
Costa Silva apresentou, recentemente, mais um. Foi com gosto e diversão que li
um documento que, julgava eu, seria árido e, sobretudo, desprovido de humor.
Logo
a introdução proporciona uma mescla de emoções que anima a continuação da
leitura. Através de um estilo cosmopolita com recurso a estrangeirismos (day-after; hinterland e cluster)
somos impelidos à compaixão pela historicidade dos dilemas estratégicos de
Portugal e ao nervosismo causado pela pandemia da COVID. Em simultâneo, de
forma grácil, o autor serena-nos asseverando que acederemos a um “volume de
recursos financeiros significativos” (pg.4), entusiasmando-nos com a
possibilidade de “ensaiar um novo ciclo geopolítico na [nossa] história”(!)
(por mar e terra!) através da reconversão industrial e da reindustrialização.
(Re)industrializar
com a clarividência estratégica da táctica cotonete: Atlântico – Ibéria/Europa.
Para quê optar? Dá para os dois lados.
O
texto prossegue com erudição literata e cinéfila. Nele encontram-se citações de
Krugman e Polanyi, alusões a Kubrick, referências a Roosevelt e a Obama, com aflorações
de Hegel, Kant, Hobbes e até, pasme-se, Marx. Enlevada pela narrativa
maravilhei-me com as imagens dos modelos de desenvolvimento económico-social
dos sistemas de matrioskas invertidas e do donut, imaginei
Portugal a aplicar a experiência Norueguesa e acedi ao apelo explícito,
duplamente realizado, para “pensar fora das ortodoxias de direita e de esquerda
e encontrar um equilíbrio virtuoso entre Estado e Mercado” (pg. 51). Li com
agrado as críticas ao modelo neoliberal tradicional e não pude deixar de sorrir
quando encontrei a expressão “eletrificação da economia” (pg.58) porque me
ocorreu, de súbito, a conhecida frase de V.I. Ulyanov: “o comunismo é o poder
soviético mais a electrificação de todo o país”.
De facto é uma economia
electrizante que António Costa Silva propõe!
Infelizmente o texto termina de
forma abrupta e, sem preparação ou conforto, caí na dura realidade. Já a tarde
se esvanecia, o café estava frio e, apesar dos bons momentos de solitário gozo
intelectual, pareceu-me que, afinal, a dita visão estratégica para 2020-2030
consubstancia apenas um exercício de provocação amiga ao Primeiro-ministro e
Secretário-Geral do PS. Não há dúvida que Costa Silva tem um humor refinado.
Um sábio filósofo disse certa vez
que não se podem forçar os factos a adaptarem-se a esquemas de compêndios e
explicou que a realidade surpreende quem dela se exclui para aplicar meras
formulações teóricas. Nisto, que é (quase) óbvio, parece encontrar-se muita da
história desde o 25 de Abril e as profundas causas estruturais dos alegados
dilemas estratégicos de Portugal: Francisco Sarsfield Cabral chamou-lhe “capitalismo
sem capital”.
O dilema português fruto do
paradoxo do “capitalismo sem capital” tem surgido diversas vezes ao longo da
nossa história democrática. A opção política habitual tem sido a de fornecer
capital ao capitalismo, ou seja, injetar dinheiro nos sectores privados da
economia (banca e empresas) para engrandecer o sector de produção e o sector
financeiro, para manter e valorizar os empregos e, em suma, para desenvolver o
país através do apoio às suas forças produtivas, garantidas (pensava-se)
através dos empresários. Volvidos quase 50 anos de abril, Portugal continua sem
capital, os direitos laborais degradaram-se, a função pública minguou e, agora,
muitos sectores estratégicos para a soberania nacional estão na posse de mãos
estrangeiras. Pergunta-se: o que fazer?
A proposta de Costa Silva bordeja
a candura quando parece pretender negar a realidade histórica ao (re)elaborar à
luz da COVID-19 aquilo que tem sido (desde há muito) o projeto de suposta
“salvação” da economia (nacional?):
De acordo com a denominada
economia de mercado o capital não tem pátria, pelo que é permitido fugir para
paraísos fiscais enquanto se mantém uma política de baixos salários – o que tem
acontecido em Portugal: “Portugal é o terceiro país com mais riqueza em paraísos fiscais”;
“Cerca de 9 mil milhões saíram de Portugal para paraísos fiscais
em 2018” e “Portugal perde quase 600 milhões de euros de receita de IRC
para offshores” o que se conjuga com “Portugueses recebem salários mais baixos do que em 2010” e “Portugal ainda tem um dos salários mínimos mais baixos da UE”.
Historicamente a opção pela via
da (re)construção de um capital nacional, (alegadamente) sustentáculo de um
putativo capitalismo dito português, por via da “devolução” das empresas ao
sector privado não parece ter garantido, nem a manutenção, nem o
desenvolvimento de importantes empresas nacionais. Recorda-se o caso da SOREFAME, progressivamente retalhada e sujeita a
“inovadoras” soluções de gestão (no caso lean management) que levou à perda de
mão-de-obra qualificada e especializada com evidentes prejuízos para o país.
Pese embora o (conveniente) “esquecimento” destes casos, a actualidade tornou a
demonstrar o fracasso “estratégico” do modelo privatístico de desenvolvimento
nacional – PT; NOVO BANCO; CTT; EDP, etc – que além da “socialização de custos”
(alguns ainda em curso) tem contribuído para a destruição e a alienação do
capital empresarial português com acrescido prejuízo para a população: “Preços da luz dispararam 40% numa década”; os “preços das
telecomunicações são mais elevados em Portugal que na restante União Europeia”
e cartelização (incluindo) nas distribuidoras afetas à indústria alimentar.
Necessariamente dentro do
enquadramento institucional actual não parece fazer sentido apelar à imaginação
quando Costa Silva afirma que “os traços do modelo a implementar, [são] baseados
na experiencia da Noruega”. A Noruega não está na União Europeia. Embora
possamos compreender o encanto pela experiência norueguesa, sobretudo vindo de
quem defende uma economia de mercado mista baseada em “blended-finance” (fundos
de financiamento público – privados) não parece ser realista (nem pragmático
como o próprio designa) estribar um plano sustentado na crença de uma mudança
radical do comportamento dos “capitalistas” portugueses ou, tampouco, na
dissolução do povo (como sugeriria Brecht), sobretudo quando a riqueza
nacional, os direitos sócio-laborais e a força sindical na Noruega não são, de
todo, comparáveis com a realidade portuguesa (entre outras diferenças
importantes).
Um traço distintivo entre o atual
plano de recuperação de Costa Silva e os anteriores em que se propunha a
(re)industrialização do país é o reconhecimento, de facto, que “ as visões
liberais extremistas que prevaleceram no passado conduziram o país à perda de
grande parte da indústria (…) Há décadas atrás Portugal pescava a maior parte
do peixe que consumia; hoje importa mais de 70%. Tinha uma indústria de
construção naval e metalomecânica que era referência no mundo (…)”
(pg.75), porém, surpreendentemente, Costa Silva não tira qualquer nova ilação
sobre as causas estruturais e conjunturais que conduziram a este ponto de
situação – pelo contrário (!) justifica a insuficiência de desenvolvimento com
os mesmos pressupostos (baixa produtividade, falta de qualificação dos
trabalhadores e dos gestores, insuficiente implementação e destreza do
“digital”, falta de investimento e excessiva fiscalidade para as empresas) tão
usados pelo neoliberalismo que alegadamente critica, enquanto afirma que
deveremos “[tirar] partido das condições favoráveis do nosso mercado
laboral” (pg.37).
Na verdade, a tónica
“neo-pós-moderna” deste “neo-pós” plano de recuperação estratégica parece
consistir na proposta nacional de um capitalismo à la séc. XVI
(mercantil) com ferramentas tecnológicas do séc. XXI. É proposto que fomentemos
um “doux commerce” com clusters e hubs, um pouco à semelhança
das hansas feudais (os clusters) e dos interpostos comerciais (os hubs) das
antigas cidades-estado com o objetivo de reconfiguração da participação
nacional no sistema capitalista europeu e mundial, através da catálise de uma
putativa indústria 5.0. – “… tecnologias digitais, inteligência
artificial, impressão 3D, Big Data, as máquinas que aprendem, a robótica
avançada (…) para desenhar e criar produtos com alto valor
acrescentado e competitivos” (pg.74).
Em essência trata-se de um
oxímoro pois consiste numa tentativa de reinício do modo de produção (reboot como
o autor preferiria) através um capitalismo do tipo inaugural, dentro de um
estado-nação, inserido na União Europeia – é um contrassenso histórico. Acresce
que para além deste (re)início não é possível vislumbrar percurso alternativo
ao da já conhecida evolução capitalista nacional (e mundial) – o da progressiva
concentração e centralização de capital, com alienação empresarial nacional,
uma vez que ao Estado se reserva o papel (já) costumeiro de mansa retirada: “quando
a economia portuguesa for mais saudável e as empresas estiverem capitalizadas,
é importante o Estado ter uma estratégia de retirada, porque o seu papel não
deve ser o de substituir-se às empresas, mas pelo contrário criar condições
para elas poderem operar, crescer e competir” (pg.53).
Ainda o plano de recuperação económica
e social não está em curso e já a história se repetiu: “Startup portuguesa BinaryEdge, que esteve na origem da
descoberta de falha que expôs a Microsoft, foi adquirida pela norte-americana
Coalition”.
O que diria Hegel?
Esta visão de um
micro-capitalismo “num só país” com vagas alusões a um “estado social” é
manifestamente insuficiente para o desenvolvimento nacional. Esperar-se-ia que
um plano de recuperação económica e social tivesse a capacidade de
reconhecer a indispensabilidade dos trabalhadores e a importância estratégica
de um sector público forte, para além da capacidade estatal para financiar o
sector privado (este último em permanente histórica aflição).
Uma vez que o autor alude tantas
vezes à Noruega seria expectável que propusesse a necessidade de uma lei
laboral que garantisse a proteção salarial dos trabalhadores, um enquadramento
que incentivasse a contratação coletiva em todas as áreas de atividade
económica e que previsse o efetivo reforço de meios no sector público nos quais
se incluem os funcionários públicos de diversas profissões. Sim, ao sector
público – aquele que garantiu o funcionamento do país em plena pandemia
COVID-19. Mas não! Aos “desgraçados” dos trabalhadores promete-se
requalificação, qualificação e formação para lhes exigir (novamente) que se
readequem, desta vez, a estes tempos “neo-pós” do 5.0.
Apenas para contraste sobre o
sector público apresenta-se o seguinte gráfico no qual se poderá constatar que
a Noruega (modelo utilizado por Costa Silva) tem, à proporção, o dobro de
funcionários públicos que Portugal – note-se: bem acima da média dos países da
OCDE – e que os tem vindo a aumentar desde 2007
Figura
retirada de: Government at a Glance 2019 (OCDE)
O
humor de Costa Silva reside, a par com a criatividade que subjaz à tentativa de
“nova síntese criativa entre as diferentes teorias económicas” (pg.53), no
facto desta visão estratégica colidir com a proposta da agenda para a década
apresentada pelo PS e sufragada pelo eleitorado.
A
provocação bem-humorada testará a determinação do Partido Socialista em
resistir ao deslumbramento vivenciado aquando das políticas cavaquistas com os
fundos comunitários, que resultaram, sobretudo, na proliferação de autoestradas
e num fabuloso novo parque automóvel nacional. Com efeito, o refinamento do humor
constata-se na sugestão de o PS poder tornar-se, agora, “um leal gestor do
capitalismo” quando, contemporaneamente, o que parece impor-se é que «não se
trata agora de meter o [capitalismo] na gaveta, mas de salvar a democracia».
Nota:
À hora que escrevo ainda não se vislumbra acordo na Cimeira Europeia quanto aos
possíveis apoios comunitários – os denominados “frugais” insistem em contrapartidas. A
concretizar-se o que parece expectável grande parte do “Plano Estratégico”
sairá gorado porquanto este pretendia-se como um ‘justificativo’ para o
facto de que Portugal iria ter “acesso ao maior pacote financeiro da União
Europeia desde a sua adesão” (pg.33). Não parece …
Será
que afinal, como em tempos alguém vaticinou, os Estados Unidos da Europa são
mesmo impossíveis?
Por
opção do autor, este artigo respeita o AO90
*Republicado em Plataforma Cascais
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