«Esta
semana, o bilionário Elon Musk replicou à acusação de envolvimento
estado-unidense no golpe contra o governo de Evo Morales, na Bolívia, com
admissão pública: «Fazemos golpes onde nos apetecer». E é verdade. Até nos EUA.»
Se
há coisa em que os EUA são mesmo os melhores do mundo, é na ciência do golpe de
Estado. Palaciano ou militar, putsch ou revolução colorida, anti-terrorista ou
humanitário, o que é certo é que nos últimos 75 anos não houve uma única
administração americana que não tivesse orquestrado algures no mundo uma
operação golpista de algum tipo ou feitio. O que impede um inquilino da Casa
Branca de usar na própria casa toda essa experiência internacional, essa
inteira ciência mil vezes testada, esses quase infinitos recursos militares,
financeiros e tecnológicos? Esta semana, o bilionário Elon Musk replicou à
acusação de envolvimento estado-unidense no golpe contra o governo de Evo
Morales, na Bolívia, com admissão pública: «Fazemos golpes onde nos apetecer».
E é verdade. Até nos EUA.
Se
a ideia de um golpe de Estado nos EUA, seguido da instauração de uma ditadura
presidencial, parecer uma ideia longínqua, é avisado reler a surpresa com que
Isabel Allende descreve o golpe de 73: «Achávamos que golpes militares eram
coisas que aconteciam nas Repúblicas das Bananas, algures na América Central.
Nunca aconteceria no Chile. E depois aconteceu». O próprio Joe Biden, nomeado
presidencial do Partido Democrata, admitiu que a perspectiva de Trump ocupar a
Casa Branca pela via golpista é o seu «maior pesadelo». Seria, aliás, um
pesadelo recorrente. Há 20 anos, o Supremo Tribunal travou a recontagem dos
votos da Florida que condenariam a eleição de George W. Bush. O Partido
Democrata revelou-se impotente, ou desinteressado, em impedir a usurpação da
sala oval.
Quando
Trump, na semana passada, mobilizou, milhares de paramilitares não
identificados para reprimir os protestos anti-racistas nas ruas de Portland, no
Óregon, estava a ensaiar um golpe de Estado. Fê-lo contra a vontade expressa
desse Estado, do executivo da cidade e dos seus congressistas, tomando
cuidadosamente o pulso à reacção democrata. Fê-lo testando as agências federais
em que confia: como o Departamento de Segurança Interna (DHS na siga inglesa),
os US Marshals, o ICE, o BORTAC e a Guarda Costeira. Fê-lo exercendo um nível
de repressão extrajudicial a que a União Americana pelas Liberdades Civis
chamou de «crise constitucional». Fê-lo prometendo fazê-lo a breve trecho
noutras cidades governadas pelos democratas como Nova Iorque, Filadélfia,
Detroit, Baltimore, Albuquerque, Cleveand e Oakland. A situação é tão tensa que
Tom Ridge, antigo director do DHS durante os mandatos de W. Bush e portanto insuspeito
de excesso de zelo democrata, disse ao Post que a agência «não foi criada para
ser a milícia pessoal do presidente». Em declarações à mesma publicação, Paul
Rosenzweig e Michael Chertoff, outros dois antigos dirigentes do DHS,
caracterizaram a intervenção como «inconstitucional» «problemática» e
«alarmante».
Os
ensaios de Trump para um eventual golpe são vendidos à classe dominante como
uma solução eficaz para as expectáveis explosões sociais que se avizinham. A
suspensão dos despejos caducou no dia 25 e, só no fim de Junho, 12 milhões de
pessoas não conseguiram pagar a renda da casa. Todas as semanas, mais 1,4
milhões de trabalhadores juntam-se aos 30 milhões de desempregados. Apesar
disso, esta segunda-feira, os republicanos anunciaram no Senado que planeiam
cortar o apoio extraordinário aos desempregados de 600 para 200 dólares por
semana. O horizonte de milhões de trabalhadores é a miséria e o desamparo.
A
guerra civil de que, no séc. XIX, os confederados saíram derrotados, nunca
sarou. Trump sabe-o. Procura habilmente reencenar a batalha pela «liberdade dos
Estados» sob o signo da pandemia, intervindo agora em nome da preservação da
liberdade, não de escravizar, mas de reabrir empresas e escolas sem máscaras,
de reprimir protestos ou de ignorar eleições. Há 160 anos o governo interveio
no Sul. Agora fá-lo-á no Norte. Se aos Musks lhes apetecer, claro.
*Este
artigo foi publicado no “Avante!” nº 2435, 30.07.2020
*Em O Diário.info
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