#Publicado em português do Brasil
Invisível para muitos, a maior
tragédia sanitária da história brasileira virou uma macabra estatística. A
ilusão da volta ao normal, dizem antropólogos, sociólogos e psicólogos, esconde
uma espécie de negação coletiva.
Há mais de três meses, em 19 de
maio, o Brasil registrou pela primeira vez mais de mil mortos em 24 horas em
decorrência da covid-19. Desde então, a situação epidemiológica do país, que já
soma oficialmente mais de 113 mil óbitos pela pandemia, estabilizou-se em
um trágico
platô.
Se a situação sanitária parece
longe de estar sob controle, por outro lado os discursos são de retomada de
economia: há
dois meses as atividades vêm sendo gradualmente reiniciadas em todo o
território nacional, o isolamento social se afrouxa, e está sendo discutida a
reabertura das escolas.
Para o antropólogo, cientista
social e historiador Claudio Bertolli Filho, professor da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e autor do livro História da Saúde Pública no Brasil, o
país vive um cenário de "banalização da morte”.
Ele entende que isso é decorrente
de uma dimensão política — a maneira como o governo federal conduziu e conduz a
situação —, de uma aceitação
social — o discurso de que "demos azar" ou de que quem tem
comorbidades iria "acabar morrendo mesmo” —, e por fim, de aspectos
culturais.
"O presidente Jair Bolsonaro
é fruto da sociedade brasileira, que, historicamente, banalizou a morte, desde
aquele papo que ‘bandido bom é bandido morto'", diz Bertolli Filho à
DW Brasil. "Há ainda uma tendência de nossa cultura, para sobrevivermos
psicologicamente, a enfrentar o momento pandêmico negando as mortes,
mostrando-nos imunes a elas."
"É quando rejeito pensar que
aquele que morreu é parecido comigo e eventualmente poderia ser eu próprio.
Quem morreu é ‘o outro', o ‘da periferia', o que ‘tinha comorbidades', o que
‘não seguiu as normas sanitárias'", exemplifica o acadêmico.
Já para o historiador e sociólogo
Mauro Iasi, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor
de Política, Estado e Ideologia, a sequência diária de mortes, transformadas em
estatística, acaba naturalizando-as à população.
"Quando nos vemos diante de
um número elevado de mortes, como em um acidente, por exemplo, isso nos choca
pela quebra desta aparente casualidade. No caso da pandemia, o ritmo diário das
mortes, sua matematização pelas estatísticas, tende a devolver o fenômeno para
o campo da casualidade, naturalizando-o", argumenta ele.
Iasi exemplifica citando as
mortes provocadas anualmente pela ação da Polícia Militar no Brasil — 5.804 em
2019. "A rotinização do fato faz com que se banalize o fenômeno, como
parte da vida e, portanto, abrindo espaço para sua negação."
Pesquisador do Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (USP), o jornalista, economista e
cientista político Bruno Paes Manso compara a sensação transmitida pelas mortes
do coronavírus àquela em relação as vítimas de homicídio no país.
"Os grupos que morrem são
vistos como aqueles que, de alguma forma, tinham justificativa para morrer. No
caso dos homicídios, são as pessoas ‘que procuraram seu próprio destino'. [Para
a opinião pública] a vítima é culpada da morte: são negros, pobres, moradores
de periferia, suspeitos de serem traficantes", comenta. "Existe uma
certa ilusão de que as mortes se restringem a determinados grupos vistos pelas
pessoas como aqueles que ‘podem morrer'. Isso gera não a banalização, mas uma
tolerância a esse tipo de ocorrência."
Ele acredita em uma lógica um
tanto parecida nos óbitos decorrentes do coronavírus. Na racionalização, aponta
o pesquisador, a opinião geral é de que a doença não atingiria os próximos, mas
sim aqueles vistos como "o outro": o idoso, aquele com comorbidades,
os de alguma forma mais vulneráveis. Este raciocínio é balizado pelo que ocorre
nas principais cidades — em geral, os distritos com maior número de mortos
estão localizados nas periferias.
Desamparo
"O medo da morte iminente
que vem junto com a pandemia mobiliza tanto conteúdos de medo e de desamparo,
quanto uma espécie de negação coletiva, já que não existe nenhuma figura real
de autoridade, nem na ciência, nem na política, que dê conta de ‘funcionar'
como figuras paternas ou maternas que possam cuidar ou proteger contra a
morte", analisa a psicóloga Nancy Ramacciotti de Oliveira-Monteiro,
professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Até porque, em
todo o mundo, por enquanto, ninguém sabe ainda como vencer essa ameaça comum a
todos os seres humanos, com exceção da esperada chegada de vacinas."
Ela lembra que o fato de essas
mortes serem divulgadas diariamente por meio de estatísticas numéricas também
dificulta a "identificação" por parte da população. Isso só não
ocorre, pontua a professora, quando as mortes chegam a círculos próximos ou
vitimizam alguma celebridade.
Para o psicólogo Ronaldo Pilati,
professor da Universidade de Brasília (UnB), o fenômeno não pode ser chamado de
"banalização", mas sim de "minimização". Ao recordar da
comoção que houve no Brasil quando a Itália registrava cerca de mil mortes em
um dia, por exemplo, ele ressalta que era um momento em que os brasileiros
estavam "mais atentos e conectados à questão", já que o mês de março
foi quando diversas medidas de quarentena e isolamento social foram
implementadas de fato.
"Com o passar do tempo e a
maneira ineficiente com que o Brasil enfrentou a pandemia, houve uma mudança de
comportamento", observa. "Não houve enfrentamento coordenado [da
questão] e isso confirmou a expectativa de desamparo que o brasileiro tem
quando depende do Estado para a resolução de problemas."
No livro Death Without
Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil, a antropóloga americana Nancy
Scheper-Hughes relata como mães brasileiras de favelas com altos índices de
mortalidade infantil acabam lidando com os óbitos de seus filhos. Para a
pesquisadora, a impotência faz com que essas mulheres acabem se conformando com
a partida daqueles "mais fracos", exercendo uma espécie de triagem para
favorecer os bebês mais saudáveis, com mais "talento para viver".
Professor da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), o antropólogo e sociólogo Marko Monteiro
concorda que essa sensação é decorrente da desigualdade social brasileira.
"Convivemos com a morte historicamente, desde a formação do país, a
maneira violenta como foi construída a nação. Nossas ações cotidianas são
permeadas por violência”, resume. "A banalização é consequência disso: os
números mostram que quem está morrendo mais são as pessoas de áreas
periféricas, negras, sem acesso… São os fatores modificáveis."
"Então temos mecanismos
sociais e psicológicos para conviver com essas mortes, que muitos consideram
inevitáveis. É a clássica atitude do ‘eu não sou coveiro', do ‘e daí?'… Por que
isso ressoa em muita gente? Porque há a ideia de as mortes eram inevitáveis,
que essas pessoas morreriam de qualquer jeito", afirma.
Edison Veiga | Deutsche Welle
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