domingo, 16 de agosto de 2020

Portugal | Não passarão


José Soeiro | Expresso | opinião

1. As ameaças de que foram vítimas três deputadas e vários ativistas antirracistas são um crime. Como crime devem ser tratadas. A lei portuguesa já prevê os mecanismos legais para perseguir e reprimir os criminosos que recorrem à ameaça e à coação. Agora, cabe às instituições funcionarem exemplarmente: avaliar as ameaças feitas, investigar os seus autores, deter quem põe em perigo a segurança pública. Não pode haver nenhuma complacência.

2. Complacência foi o que houve, contudo, com a banalização do discurso de ódio e com a tentativa de normalizar a extrema-direita em Portugal. Não nos esqueçamos do episódio em que a TVI acolheu candidamente num programa da manhã Mário Machado, o nazi envolvido no assassinato ao pontapé de Alcindo Monteiro. Do palco dado pelo Correio da Manhã – e não só – a Ventura. Das tentativas recentes de um investigador de validar acriticamente as teses do Chega, usando o selo académico, mesmo que para isso tenha sido preciso atropelar os mais elementares protocolos do campo. Ou, mais recentemente, das declarações de Rui Rio, que admitiu uma eventual aliança com a extrema-direita, dependendo do modo como esta evoluísse. A indulgência política e mediática ajuda a criar o ambiente de à-vontade e o sentimento de impunidade com que atuam os racistas, mesmo que disfarçados, e o terrorismo da extrema-direita em geral.

3. O crime de intimidação contra estes dez combatentes pelos direitos humanos surge num contexto. Há uns meses, as inscrições racistas à porta de escolas, do SOS Racimo, do Centro Português de Refugiados ou no mural de José Carvalho. A ridícula manifestação de Ventura. A parada de um bando neonazi, de rosto tapado e tochas, frente à sede do SOS Racismo, divulgada pelos próprios nas redes sociais. O assassinato de Bruno Candé em plena luz do dia, crime que o alegado homicida terá feito acompanhar de um “preto do caralho, vai para a tua terra!”, afinal de contas uma versão em vernáculo do que disse Ventura quando propôs que uma deputada portuguesa fosse “devolvida ao seu país de origem”. É tudo parte do ambiente de ódio que os criminosos, sejam os de gravata ou os de cabeça rapada, querem criar.

4. Para combater o ódio e os crimes racistas da extrema-direita já temos boas leis escritas. Falta-nos é trabalhar nas leis na prática, no combate à impunidade e à indiferença. Das instituições exige-se esse compromisso assumidamente antirracista. Às polícias cabe investigar e agir, extirpando do seu seio criminosos que perfilhem valores fascistas que violam a Constituição e demarcando-se de qualquer instrumentalização pela extrema-direita. Às políticas cabe romper sem hesitações as lógicas que reproduzem os padrões coloniais e ter, nos vários campos que vão do trabalho à educação, do desporto à cultura ou à habitação, medidas decididas para combater as desigualdades que têm no racismo estrutural um dos seus pilares.

5. A solidariedade para com todas as vítimas das ameaças e dos crimes da extrema-direita é um dever de todos. E convoca-nos para atitudes concretas que vão além das palavras.

Imagem: Daniel Rocha, Público

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