Preso, perseguido e à beira de um
colapso mental, ele resiste. Os EUA praticam tortura e aliados ocidentais
apoiam — para dar exemplo. Não é só sua vida que está em risco: também o futuro
do jornalismo e do direito à dissidência
Andrew Fowler | em entrevista a John
Kendall Hawkins, no CounterPunch |
Outras Palavras | Tradução: Simone Paz
Andrew Fowler é um jornalista
investigativo australiano muito premiado, ex-repórter dos programas Foreign
Correspondent e Four Corners, da ABC, e autor de “O homem mais
perigoso do mundo: Julian Assange e a luta do WikiLeaks pela Liberdade” [The Most Dangerous Man in the World: Julian Assange and
WikiLeaks’ Fight for Freedom — sem edição em português]. Esta é uma edição
atualizada de seu relato de 2011 sobre a ascensão e a prisão política de
Assange. Grande parte desse relato explicava como Assange moveu-se de forma
aparentemente inevitável em direção a um posicionamento contra o imperialismo
norte-americano. Ele foi um tônico para a indiferença expressa por tantos
estadunidenses nas traumáticas consequências do 11 de setembro e da ascensão do
estado de vigilância. O personagem Alan Shore (James Spader), do seriado Boston
Legal, fez um bom resumo:
Esta versão atualizada discute a
tortura que Assange vem sofrendo na prisão de Belmarsh, na Grã-Bretanha. Aqui, um filme urgente
e necessário sobre o assunto.
Seu livro inclui, também, as
últimas notícias sobre a espionagem abrangente que a UC Global mantinha de
Assange e seus visitantes na embaixada do Equador em Londres, no último ano em
que ele recebia “asilo” lá. A UC Global é uma empresa de segurança espanhola
que foi contratada para proteger a embaixada. Desde então, descobriu-se que
estava repassando dados para a inteligência americana, provavelmente a CIA.
Fowler sugere tal conexão na versão atualizada de seu livro, citando duas
violações de dados (hacking) de Assange a servidores do governo dos EUA; ele
descreve que, para cada uma dessas violações, a CIA enlouqueceu, como se
tivesse sido atingida por um inimigo estrangeiro. No último (novo) capítulo do
livro, “The Casino”, Fowler descreve como a CIA ficou ultrajada quando Assange
publicou suas ferramentas de hacking, conhecidas como Vault 7, no Wikileaks:
“Sean Roche, o vice-diretor de inovação digital da CIA, lembra a reação dentro
da CIA. Disse que recebeu uma ligação de outro diretor, que estava sem fôlego:
‘Era o equivalente a um Pearl Harbor digital’”.
A seguir, minha última entrevista
com o autor:
*Observação: após a publicação
dos documentos do Pentágono, Daniel Ellsberg foi classificado “o homem mais
perigoso do mundo”.
Qual é o estado de saúde de
Julian, atualmente?
Parece bastante claro que há uma
tentativa dos governos britânico e estadunidense de destruir Assange, seja
levando-o ao suicídio ou a um colapso psicológico. Há muitos anos, ele tem uma
doença pulmonar que não foi tratada da maneira adequada, e está claramente
sofrendo de grande estresse. Na sua última aparição no tribunal, por meio de um
link de vídeo, fazia longas pausas entre suas palavras, mesmo ao falar seu
próprio nome.
Quando Chelsea Manning foi presa
na [base militar de] Quantico, ela passava 23 horas por dia em confinamento
solitário e, à noite, era despida. Como podemos comparar com o tratamento a
Julian em Belmarsh? O tratamento de Manning foi entendido como uma tentativa de
coagi-la a delatar outras pessoas, incluindo, provavelmente, Assange. O que
você vê no propósito final do tratamento de Assange? E como isso se iguala à
tortura?
O objetivo final do tratamento dado
a Assange é dar um aviso aos demais. Particularmente, outros jornalistas. É o
equivalente moderno da crucificação, de colocar cabeças de inimigos em estacas
ou dos enforcamentos públicos. A tortura de Assange envolve duas grandes
questões: ser confinado a três quartos em um único prédio por 7 anos e, depois,
torná-lo incapaz de sair de lá, por medo da prisão e extradição para a Suécia —
que vinha cumprindo o papel secreto de permitir que Assange fosse extraditado
para os EUA. Como o relator da ONU sobre tortura, Nils Meltzer, escreveu: ele
nunca havia visto, nas duas décadas que passou investigando crimes de guerra,
união de tantas nações poderosas contra um único indivíduo. É uma prova da
força mental de Assange, ter resistido a tudo.
Não foi feito nenhum esforço
pelos suecos para “interrogar” Assange depois que ele foi retirado da embaixada
equatoriana, o que sugere que seu propósito nada mais era do que um pretexto
para a transferência — como Assange e seus defensores declararam. Você crê que
existia alguma forma de anular a acusação de suspensão da fiança, dada a
probabilidade de conluio intergovernamental? Quais as suas reflexões sobre isso?
Não há nenhuma alegação pendente
para Assange responder na Suécia. Sempre foram apenas alegações, não acusações.
É importante compreender que, se os promotores suecos tivessem acusado Assange,
eles teriam que revelar aos seus advogados as provas das “ofensas” em que essas
acusações se baseavam. E as evidências não eram apenas escassas, mas apontavam
para uma conspiração. Assim, foi possível manter Assange na embaixada, enquanto
o Ministério Público do Reino Unido trabalhava para conseguir que ele fosse
extraditado para a Suécia. Parecem não existir dúvidas de que o plano sempre
foi usar a Suécia como uma prisão para Assange enquanto os EUA pediam sua
extradição. É possível que ele leve seu caso ao Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos, mas a decisão do Brexit torna esta área extremamente obscura.
Você poderia nos dar mais
detalhes sobre a UC Global, a empresa espanhola trazida à Embaixada do Equador
para espionar Assange? O que mais sabemos sobre os dados que eles coletaram?
Houve alguma conexão mais definitiva com a CIA? Foi colocado em prática algum
esforço adicional para anular o processo de extradição com base exclusivamente
neste fato? (Ele nunca poderia esperar um julgamento justo nos Estados Unidos
se tal vigilância e enquadramento fossem feitos.)
A UC Global não só gravou
centenas de conversas dentro da embaixada do Equador, mas também fotografou e registrou os telefones [e] suas
localizações identificando números IMEI, passaportes e outros documentos de
todos aqueles que visitaram Assange na embaixada entre 2015 e 2018. No meu
entendimento, o caso, atualmente em execução em Madrid, contra o ex-CEO da UC
Global, David Morales, que é acusado de espionar ilegalmente Assange e seus
advogados (um ato especificamente ilegal na Europa) será usado pela equipe
jurídica de Assange para argumentar que a extradição para os EUA deve ser
descartada. Eu entendo que se qualquer material recolhido espionando Assange e
seus advogados for usado, ou mesmo conhecido, por aqueles envolvidos na
acusação dos Estados Unidos, as acusações devem ser retiradas. Não houve
nenhuma conexão definitiva com a CIA. O mais perto que cheguei de estabelecer
um nexo, foi com os confidentes do Departamento de Estado e da Casa Branca.
O livro de Snowden, Eterna Vigilância, foi um dos melhores que li em muito
tempo. Você pode argumentar que suas revelações são igualmente, se não mais
significativas, do que as que Assange oferece por meio do Wikileaks. Qual sua
posição sobre a diferença de valores, se houver, entre o Wikileaks e as
revelações de Snowden?
As principais diferenças são: Assange
é um receptor de informações que, como jornalista, publica-as. Snowden é uma
fonte. Quando se trata de quantificar os diferentes valores de seu trabalho,
Assange principalmente forneceu informações e análises, enquanto Snowden expôs
sistemas de coleta de inteligência. Na relação fonte-jornalista, ambos precisam
um do outro. Ambos expuseram as atividades de uma máquina de fazer guerra. Sem
Assange, é improvável que tivéssemos Snowden. Foi o WikiLeaks que trouxe a
público, em uma escala verdadeiramente massiva, um mundo secreto de horror e
decepção que até então estava em grande parte escondido. Snowden nos trouxe o
argumento de que não eram apenas os governos estrangeiros que estavam sendo
espionados, mas os próprios americanos. Ambos cumpriram um papel importante e
às vezes sobreposto, ao revelar a verdade sobre o mundo em que vivemos.
Assange e Snowden parecem ter
tido suas diferenças ao longo dos anos. Snowden descreve em seu livro como
escolheu seu apelido: “O nome final que escolhi para minha correspondência foi
‘Verax’, latim para ‘falante da verdade’, na esperança de propor uma
alternativa ao modelo de um hacker chamado ‘Mendax’ (‘falador de mentiras’) — o
pseudônimo do jovem que cresceu para se tornar o Julian Assange do WikiLeaks.” (p.193) Havia tensões entre eles, e Snowden não confiava
plenamente em Assange (temendo que um furo desses, em vez de um sistema de
revelações processado de forma jornalística, fecharia espaço para argumentos de whistleblowers no
futuro). Sua primeira escolha foi o The New York Times, mas a supressão
que fizeram do artigo pré-eleitoral de James Risen de 2004 no Stellar Wind
[programa de vigilância eletrônica da Agência de Segurança Nacional dos EUA] o
enfureceu, e ele acabou indo com Greenwald e outros. Snowden sugere diferenças
de caráter entre os dois, mas, por outro lado, Assange realmente irritou o
governo dos Estados Unidos quando enviou uma mulher para resgatar Snowden de
Hong Kong. Alguns até pensamos que Obama iria derrubar o Bolivia One com o
presidente Evo Morales a bordo, por achar que Snowden estava junto.
Em Eterna Vigilância,
Snowden diz que decidiu não usar o WikiLeaks por causa de uma mudança na
política de publicação do material não editado, ou “puro”, como ele prefere
chamá-lo. Não sei por que ele diz isso, já que a política da WikiLeaks é
redigir [Aqui está a explicação de Snowden]. O WikiLeaks colocou
todos os documentos do Iraque/Afeganistão/Cablegate online, sem editar, mas
somente depois que David Leigh, do Guardian, já havia publicado a senha — e o
material já estava na internet. Eu nunca falei sobre isso com Assange, mas há
outro Mendax. Na década de 1920, o escritor australiano de ficção científica
Erle Cox’a Mendax foi um inventor excêntrico. Mendax fazia experimentos com
“transmissão de matéria” “invisibilidade” e “extração de ouro da água do mar”.
Há um atrito entre os dois, sem dúvida. Snowden ainda peca pelo sigilo e
Assange pelo lado da publicação, que é, provavelmente, a diferença entre um ex-agente
de inteligência e um jornalista.
A covid-19 surge como o coringa
do baralho, cara a cara com a extradição de Assange para os EUA. Se ele não
contrair a doença na prisão, sua extradição no próximo ano pode ser
problemática — tribunais, protestos, circo. Como você acha que o vírus afetará
os procedimentos legais? Você acha que ele ficará em melhor posição sob um
Departamento de Justiça americano de Joe Biden? Ou pior, dada a percepção de
ameaça aos democratas que ele representa? Você vê alguma maneira de sua defesa
explorar a desonestidade da invasão e espionagem realizadas pelo Partido
Democrata e pela Rússia?
Não tenho certeza de como a covid
possa impactar, para além de desacelerar o processo — o que, por si só, já é
extremamente problemático para Assange. Ele já está preso, ou em prisão
domiciliar (incluindo a embaixada), há nove anos. Não sei do que mais precisa
para o governo do Reino Unido tomar vergonha e recusar o pedido de extradição,
mas a nova acusação certamente transforma o processo político em uma farsa.
Agora, os EUA querem prender novamente Assange envolvendo-o em uma nova
acusação, porque a primeira, provavelmente, fracassaria. Nos últimos anos, o
governo do Reino Unido possivelmente teve a chance de rejeitar esse
comportamento enganoso ou incompetente dos EUA, mas, atualmente, a Grã-Bretanha
é uma força gasta no cenário mundial, e os EUA podem fazer o que bem quiserem.
Quanto ao Departamento de Justiça
sob Biden… ele já chamou Assange de “terrorista de alta-tecnologia” e disse
recentemente que, embora seja favorável à liberdade de imprensa, ela não deve
comprometer a segurança nacional dos EUA. Então, não há muita esperança.
Uma esperança que Assange tem é o
possível perdão de Snowden. Isso corrobora com o argumento de Trump sobre a
existência de um “estado profundo”, onde as agências de inteligência estariam
fora de controle, e envolvidas na fabricação do conluio russo. [Aqui temos
Snowden referenciando seu trabalho para o “Estado Profundo“]. O trabalho de Assange expôs atrocidades
da CIA (o que apoia a posição de Trump), mas o WikiLeaks também revelou
evidências de crimes de guerra cometidos pelos militares dos EUA, instituição
muito admirada pelos seus principais apoiadores. Temo que um perdão de Snowden,
que eu pessoalmente acredito que seria muito bem-vindo, só isolaria ainda mais
Assange.
Se Assange cair, você vê um
futuro para o jornalismo no mundo — considerando a autodenominada liderança dos
EUA nesta área, por meio da sagrada primeira emenda, mas com jornais globais
cada vez menores? The Guardian, Washington Post e o The New York Times
continuam sendo os únicos documentos de registro disponíveis em todos os
terminais internacionais do mundo — com as vendas caindo, e uma briga sobre o
que é notícia real e o que não é (uma guerra para determinar quem vai controlar
a narrativa), como você vê a luta pelo jornalismo que virá?
Se Assange cair, sofreremos um
terceiro efeito dominó. Primeiro, o poder crescente do governo executivo;
segundo, a destruição do [frequente] poder de compensação da grande mídia,
incluindo as emissoras públicas que extraem seu poder político de suas
audiências (e, portanto, até certo ponto são independentes). A internet acabou
com os orçamentos da mídia, o que enfraqueceu seu ambiente de modo geral e deu
poderes aos governos para atacar e cortar as emissoras públicas. Assange, que
usou a internet como uma arma para o jornalismo, forneceu uma maneira de
revigorar as velhas estruturas da mídia — envolver os leitores e desafiar a
autoridade do governo executivo. Disponibilizou uma maneira de democratizar o
jornalismo. É a razão pela qual ele é uma ameaça à hegemonia das nações
dominadas pelos 5 olhos dos EUA — que, até recentemente, em um mundo unipolar,
política e estrategicamente, governavam supremos.
Às vezes fico maravilhado com o
efeito que os australianos tiveram sobre o jornalismo e até mesmo sobre
questões constitucionais dos EUA. No início, Assange parecia ter declarado
guerra ao Departamento de Justiça e, depois, ao Departamento de Estado
dos Estados Unidos; John Pilger, em sua entrevista com o “trapaceiro”
da CIA, Duane Clarridge, expôs toda a arrogância da política externa americana;
e a Fox News reduziu tanto o nível da conversa política nos Estados Unidos que
pode estar rumo a um destino como aquele retratado em Idiocracia. Quais
seus pensamentos sobre isso?
Há uma estranha contradição na
Austrália. Os australianos são muito conservadores e cautelosos, mas parte da
identidade nacional está ligada à noção de antiautoritarismo, que remonta ao
passado da nação de condenados. A degradação de uma maioria pobre, transportada
do Reino Unido e da Irlanda para a Austrália há dois séculos, devido a crimes
muitas vezes menores, criou uma base de antagonismo contra as “elites” dominantes.
Essa longa história de dissidência na Austrália produziu jornalistas notáveis
como Pilger e Assange, Wilfred Burchett e Philip Knightly. Não consigo pensar
em nenhuma maneira melhor de explicar como Assange e Murdoch se tornaram duas
das figuras mais influentes da mídia global no século passado. Murdoch subiu ao
poder como uma figura anti-establishment no Reino Unido e Assange fez o mesmo
em uma base global.
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