sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O negócio do hidrogénio


Quando, finalmente, poderia haver uma sensível e notória baixa regulatória nas tarifas, poderá instalar-se um novo ciclo de financiamento aos privados a propósito do hidrogénio e da transição  em geral.

Demétrio Alves | AbrilAbril | opinião

O governo aprovou e fez publicar no dia 14 de agosto 2020 a Estratégia Nacional para o Hidrogénio EN-H2 (RCM 63/2020).

Muito antes, no início de 2020, já o ministro e o secretário de Estado não tinham dúvidas sobre os aspetos essenciais, o que é singular para uma equipa que está há cerca de ano e meio para ter uma estratégia clara quanto às redes de distribuição de electricidade1.

Dada a importância da matéria, surgiu uma acesa polémica técnica, económica e política, que seria normal não fora a desproporcionada reação do governo e, em particular, do secretário de Estado.

As organizações sociais, económicas, científicas, políticas, designadamente as locais e os governos, devem reflectir sobre o aprovisionamento energético sustentável no futuro. Contudo, o fundamentalismo polarizado em subjetividades, crenças, interesses privados e modas politicamente correctas, são muito maus numa questão estratégica.

O secretário de Estado veio tentar fundamentar as suas posições em declarações públicas de Timmermans2, dizendo que aquele comissário europeu teria falado em investimentos de 400 mil milhões de euros até 2030, portanto, sendo a previsão portuguesa situada em 1,7 a 2,2% do total (7 a 9 mil milhões), concluindo que a «estratégia portuguesa está plenamente ancorada na estratégia europeia». Só que as contas não podem ser feitas com base em simples extrapolação aritmética, além de partirem de pressuposto errado.

A Comissão Europeia (CE) apresentou, em 7 de julho passado, uma «visão» para promover o hidrogénio renovável, estimando que os investimentos poderiam vir a atingir «entre 180 e 470 mil milhões de euros até 2050»! O que é muito diferente. O governo português, sem qualquer fundamentação credível, tomou como boa referência o cenário máximo, ultrapassando-o mesmo em alguns parâmetros, como o de empregos potenciais gerados.

Apesar do empolamento europeu, em países com a dimensão da Alemanha, e França fala-se em investimentos de uma ordem de grandeza proporcionalmente menor. Em França, por exemplo, aponta-se para 24 mil milhões de investimento e 9 mil milhões de ajuda pública. Apenas três vezes mais do que em Portugal. Será que o país se pode equiparar, em termos económicos, financeiros, energéticos e tecnológicos, àqueles gigantes europeus com 10 ou 15 vezes mais PIB, só porque o governo diz que o país está na «vanguarda» e que «lidera a transição energética»?

Do que não haverá dúvida é do enorme interesse que tais anúncios suscitaram nas corporações industriais, energéticas e financeiras. Trata-se de um potencial negócio politicamente correcto e financiável em boa parte com dinheiro público.

A comprovar a atenção dos investidores privados no negócio anunciado pelo governo, estão notícias recentes (25 a 27 de julho) sobre a criação de um megaconsórcio que integra a EDP, Galp e REN, para avançar com uma central de produção de hidrogénio verde em Sines.

Pelo menos por duas vezes nos últimos 50 anos – na década de 1970 e na década de 1990 – houve discussões empolgantes sobre a substituição de hidrocarbonetos por hidrogénio. Contudo, isso não aconteceu, devido a vários factores objectivos.

Além da habitual evocação sobre «os interesses das petrolíferas», haverá que ponderar nos enormes custos imputáveis ao desmantelamento e substituição da vastíssima infraestrutura mundial de combustíveis fósseis numa fase em que ainda faltará muito tempo para o esgotamento. Tal destruição não é fácil e rápida porque a energia é indispensável, não apenas nos países industrializados da Europa, nos EUA, na China, onde as novas tecnologias são aplicáveis e lucrativas, mas, também, na África, na Ásia, nas Américas do Sul e Central, onde é necessária energia, ponto. Em muitas destas vastas regiões não se trata de dar mais um salto qualitativo na qualidade de vida e na amigabilidade quanto às questões climáticas, mas, sim de conseguir que a vida se sobreponha à morte.

As grandes petrolíferas, gasistas, carboníferas e elétricas, não estão preocupadas com o tipo de energia primária que exploram. Aquilo em que estão concentradas é no lucro. Se fizerem melhores negócios com o sol e o hidrogénio, adaptam-se e mudam de ramo. Até porque o ciclo levará décadas.

O hidrogénio, um gás muito reativo e com elevada fugacidade, que quase não existe livre na natureza, tem diversas desvantagens quantificáveis: exige enormes cuidados na sua manipulação por ser perigoso, armazena muito menos energia num dado volume do que os combustíveis fósseis e, fundamental, não é um combustível primário, ou seja, tem que ser produzido através de processos que implicam consumo de diversas matérias primas e consumo de energia. Nesses ciclos gasta-se muito dinheiro, muitos recursos (minerais e água), e dissipa-se rendimento.

A EN-H2 surge, no fundamental, correlacionada com o facto de Portugal ter assumido o objetivo de atingir a Neutralidade Carbónica até 2050, tendo, nesse sentido, desenvolvido o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050), apresentado no final de 2018, assumido como antecipação/draft do Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC 2030).

Num contexto político-social europeu que hipervaloriza a descarbonização, tudo depende da capacidade de produzir hidrogénio barato, em larga escala, não libertando CO2 para a atmosfera durante o processo. E isso é difícil, desde que se ponha de lado a electricidade de proveniência nuclear.

A «descoberta» da via fotovoltaica, por si ou em mix com a eólica, para produzir a eletricidade com a qual, depois, através da eletrólise da água, se produz o hidrogénio, surgiu com a onda de leilões para atribuição de novas potências fotovoltaicas que, desde 2018, grassaram em vários continentes, fazendo descer os preços propostos. Isto, porque as tecnologias produtivas têm vindo a baixar de preço na actual fase de expansão e por outras razões muito voláteis num mercado grossista cheio de falhas e contradições. Veremos o que se passa quando os metais necessários e o solo começarem a escassear.

O governo português, fascinado com a «solução», vangloria-se com o «record mundial» atingido em 20193, dando a entender que Portugal está numa mirífica vanguarda. Há, porém, várias dúvidas e alçapões a que é necessário ter em conta: muito dificilmente o preço da electricidade de origem fotovoltaica paga os custos se for inferior a 3 cts/kWh e, noutra perspetiva, a pressão sobre o solo (ordenamento e preços) e sobre o recurso água, irá determinar escaladas apreciáveis. Será que, daqui a algum tempo, o lóbi das renováveis não virá exigir «reequilíbrios contratuais»?

Depois, considerar que, mesmo a este hipotético baixo preço, estaríamos a substituir uma energia (metano/gás natural) que custa 1€/kg, por outra (hidrogénio) que custaria 4 a 5 €/kg, tendo, aliás, um poder calorifico inferior ao do metano.

Como esperam, a União Europeia (UE) e o governo português, resolver o imbróglio? Simples: aumentam o «preço simbólico» do carbono, onerando o gás natural (que poderia passar para o dobro ou o triplo) e, por outro lado, entrariam no já conhecido caminho da subsidiação pública aos investidores privados, realizada através de receitas fiscais e/ou do acrescido esforço dos consumidores de electricidade e gás natural, num referencial em que uns, a maioria, se sacrifica, e outros, uma minoria, vêem lucros e rendas engrossarem.
A UE já terá reservado milhares de milhões de euros para a estratégia e, por cá, prevê-se que o Fundo Ambiental assuma um papel financiador relevantíssimo.

De facto, segundo a perspetiva governamental, com o decréscimo das necessidades financeiras no Sector Energético Nacional (SEN) por desaparecimento, a prazo curto e médio, de alguns custos relevantes do sistema eléctrico (Contratos de Aquisição de Energia/CAE, Custos de Manutenção de Energia Contratual/CMEC, Dívida Tarifária, feed-in tariffs), isto na eletricidade, torna-se possível redirecionar essas verbas para «onde elas são mais necessárias e eficazes, de uma forma gradual e sem agravar os preços de eletricidade e do gás natural».

Ou seja, se bem se captou a ideia do governo, essas cargas que agora desapareceriam, servirão para «apoiar a descarbonização da rede de gás natural», de forma a que isso seja feito «a um nível de preços que assegure simultaneamente o escoamento da produção e a remuneração adequada dos investimentos garantindo custos energéticos competitivos para os consumidores».

Isto configura-se como uma séria ameaça para os consumidores: após a época dos acima referidos custos político-administrativos desviados para os privados (de facto, não se trata de impostos ou taxas), e quando, finalmente, poderia haver uma sensível e notória baixa regulatória nas tarifas, instalar-se-á um novo ciclo de financiamento às grandes energéticas privadas e monopolistas, agora a propósito do hidrogénio e da transição em geral, que, de facto, levará a que «mantenham os preços e tarifas»!

O governo esquece, se tal opção se confirmasse, o insuportável custo socioeconómico da energia portuguesa e a necessidade central de que os preços/tarifas baixem. Sem isso é muito difícil criar condições para o desenvolvimento socioeconómico e para o afastamento da pobreza energética ainda muito presente em Portugal.

Temos assistido ao comportamento dos mercados grossistas: pode haver baixas no preço para as operadoras que actuam no mercado grossista ou de grande retalho, nomeadamente face ao excesso de injecção obrigatória de eletricidade proveniente das fontes renováveis em certos postos horários, mas isso não tem significado uma diminuição sensível no preço da eletricidade para os consumidores finais (há, no mercado português, apenas uma comercializadora que, guiando-se pelos preços do mercado grossista, sob indicação da sua casa mãe espanhola, consegue interessantes ofertas aos consumidores).

É um verdadeiro paradoxo: à medida que mais electricidade proveniente de fontes renováveis foi introduzida nas redes nas últimas duas décadas, e cujos fluxos nos são oferecidos pela natureza sem ter que os pagar (custos variáveis), mais os consumidores pagaram por ela!

Bom, mas tem descido a taxa de emissão de CO2 para a atmosfera, dirão os promotores da descarbonização.

Por acaso, nem isso se poderá dizer, porque a flutuação tem sido muito mais função dos ciclos socioeconómicos do que das produções de FER4 (ver documento Apreciação da Estratégia Nacional para o Hidrogénio), mas admitamos que sim, que haveria uma diminuição sustentada de emissões de GEE5 (em toneladas de CO2eq), e que, na atmosfera mundial, o teor de CO2 não subia.

Atingir tal meta (incerta) não justifica, de um ponto de vista holístico, concentrar biliões de euros e dólares na subvenção e financiamento alavancado à descarbonização mitigação, de facto, maioritariamente canalizados para empresas privadas, retirando-os do apoio ao desenvolvimento sustentável global, constituído pelos diversos itens abaixo indicados6:

Erradicação da pobreza e da fome; Saúde e educação de qualidade; Água potável e saneamento; Trabalho digno e crescimento econômico; Redução das desigualdades e descriminações; Combate à corrupção e aos crimes públicos; Indústrias, inovação e infraestruturas; Cidades e comunidades sustentáveis; Vida na água e na terra; Consumo e produção responsáveis; Igualdade de gênero; Paz, justiça e instituições eficazes; e, obviamente, Energias renováveis e acessíveis do ponto vista socioeconómico, além, de acções contra, mas, também, de adaptação e mitigação das consequências derivadas da mudança global do clima.

Não pode falar-se em desenvolvimento sustentável com políticas públicas que afunilam as ajudas públicas na descarbonização, mitigação e adaptação (desde 2006 cresceram cinco vezes os cêntimos por cada euro ou dólar gastos na ajuda ao desenvolvimento)7, retirando-as às restantes vertentes fundamentais para o desenvolvimento do planeta e das sociedades humanas.

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

Notas:
1.A atribuição das novas concessões municipais das redes de distribuição de electricidade em baixa tensão (BT), via concurso, estava previsto formalmente para 2019, e continua pendente de uma avaliação estratégica determinada pelo governo.
2.Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão Europeia, com a responsabilidade do Green Deal. O secretário de Estado colocou isto numa resposta a um post no Linkdin.
3.Tarifa média ponderada atribuída no regime garantido foi de 20,33 €/MWh, com um mínimo de 14,76 €/MWh e máximo de 31,16 €/MWh.
4.Acrónimo para Fontes de Energia Renovável (FER).
5.Acrónimo para Gases de Efeito de Estufa (GEE).
6.De acordo com os objetivos fixados pela ONU para o Desenvolvimento Sustentável.
7.Hicks, 2008, apud Lomborg 2020, p. 145. Ver Lomborg, Bjørn. False Alarm: How Climate Change Panic Costs Us Trillions, Hurts the Poor, and Fails to Fix the Planet. Basic Books, New York (2020).

Sem comentários:

Mais lidas da semana