Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Há uma dúvida que persiste mas
que já vem acondicionada por uma certeza emergente: se necessidade houvesse de
justificar a irrazoabilidade da passagem directa de Mário Centeno de ministro
das Finanças a governador do Banco de Portugal (BdP), bastaria atentar na forma
como o próprio tem gerido os seus primeiros dias.
A tomada de posse de Mário
Centeno no BdP foi há pouco mais de um mês (20 de julho) mas não podem ser as
altas temperaturas de uma silly season castrada a covid-19 a serem acusadas de
promover a alteração da sua capacidade de julgamento.
A verdade acerca do BES e do Novo
Banco, escreve-se nestes dias. Centeno, enquanto governador do BdP, recusa dar
ao Bloco de Esquerda a auditoria sobre a resolução do BES à qual, enquanto
ministro da Finanças, gostava de ter tido acesso (e que lhe foi negado por
Carlos Costa). A dúvida que persiste tem fundamento. No espaço de poucos meses,
o Centeno que perseguia a verdade e - em simultâneo - a cadeira de Carlos
Costa, deu lugar ao governador que se senta em cima dos mesmos relatórios
secretos do antecessor, fechando-os a sete chaves. Como pode Mário Centeno
justificar esta mudança de posição e de comportamento em tão poucos dias,
ninguém percebe.
Na altura em que o Parlamento
tinha debates quinzenais (olá, adeus), António Costa respondia a Catarina
Martins afirmando que o seu Governo tinha "muita curiosidade" em
conhecer a auditoria à acção do BdP no processo de resolução do BES. Depois da
saída de Mário Centeno da pasta das finanças, a curiosidade pariu um rato.
Acresce que se há queijo com buracos e pedaços omissos, é mesmo o da bola de
novelo do BES/ Novo Banco. Mário Centeno esquece-se e distancia-se da posição
do Governo que integrava há meses, como se a chuva pudesse cair miudinha
enquanto troca as tintas. A montanha de curiosidade deu agora lugar a um
conveniente e conivente silêncio em nome do "dever de segredo".
Nada disto é razoável. Num
contexto em que o processo do Novo Banco já levou 8 mil milhões de euros dos
bolsos dos portugueses, é inqualificável qualquer tentativa de varrer para
debaixo do tapete documentos, relatórios ou auditorias que permitam chegar a
conclusões no apuramento de rigor sobre esta calamidade. Também por isso se exige
que a auditoria externa da Deloitte aos actos de gestão do BES/Novo Banco entre
2000 e 2018, que revelou perdas líquidas de 4042 milhões de euros no Novo
Banco, seja tratada pelo Parlamento em nova Comissão de Inquérito e que nada seja
omitido aos deputados para apreciação. Ao Ministério Público competirá investigar
eventuais implicações criminais, mas compete ao poder político não permitir
injecções como a dos recentes 1035 milhões ao Novo Banco, enquanto se esperava
pelas conclusões de uma auditoria que vem, agora, revelar um "conjunto de
insuficiências e deficiências graves".
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário