sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Portugal | A curiosidade pariu um rato


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Há uma dúvida que persiste mas que já vem acondicionada por uma certeza emergente: se necessidade houvesse de justificar a irrazoabilidade da passagem directa de Mário Centeno de ministro das Finanças a governador do Banco de Portugal (BdP), bastaria atentar na forma como o próprio tem gerido os seus primeiros dias.

A tomada de posse de Mário Centeno no BdP foi há pouco mais de um mês (20 de julho) mas não podem ser as altas temperaturas de uma silly season castrada a covid-19 a serem acusadas de promover a alteração da sua capacidade de julgamento.

A verdade acerca do BES e do Novo Banco, escreve-se nestes dias. Centeno, enquanto governador do BdP, recusa dar ao Bloco de Esquerda a auditoria sobre a resolução do BES à qual, enquanto ministro da Finanças, gostava de ter tido acesso (e que lhe foi negado por Carlos Costa). A dúvida que persiste tem fundamento. No espaço de poucos meses, o Centeno que perseguia a verdade e - em simultâneo - a cadeira de Carlos Costa, deu lugar ao governador que se senta em cima dos mesmos relatórios secretos do antecessor, fechando-os a sete chaves. Como pode Mário Centeno justificar esta mudança de posição e de comportamento em tão poucos dias, ninguém percebe.

Na altura em que o Parlamento tinha debates quinzenais (olá, adeus), António Costa respondia a Catarina Martins afirmando que o seu Governo tinha "muita curiosidade" em conhecer a auditoria à acção do BdP no processo de resolução do BES. Depois da saída de Mário Centeno da pasta das finanças, a curiosidade pariu um rato. Acresce que se há queijo com buracos e pedaços omissos, é mesmo o da bola de novelo do BES/ Novo Banco. Mário Centeno esquece-se e distancia-se da posição do Governo que integrava há meses, como se a chuva pudesse cair miudinha enquanto troca as tintas. A montanha de curiosidade deu agora lugar a um conveniente e conivente silêncio em nome do "dever de segredo".

Nada disto é razoável. Num contexto em que o processo do Novo Banco já levou 8 mil milhões de euros dos bolsos dos portugueses, é inqualificável qualquer tentativa de varrer para debaixo do tapete documentos, relatórios ou auditorias que permitam chegar a conclusões no apuramento de rigor sobre esta calamidade. Também por isso se exige que a auditoria externa da Deloitte aos actos de gestão do BES/Novo Banco entre 2000 e 2018, que revelou perdas líquidas de 4042 milhões de euros no Novo Banco, seja tratada pelo Parlamento em nova Comissão de Inquérito e que nada seja omitido aos deputados para apreciação. Ao Ministério Público competirá investigar eventuais implicações criminais, mas compete ao poder político não permitir injecções como a dos recentes 1035 milhões ao Novo Banco, enquanto se esperava pelas conclusões de uma auditoria que vem, agora, revelar um "conjunto de insuficiências e deficiências graves".

*Músico e jurista

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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