domingo, 4 de outubro de 2020

Que fazer quando a democracia arde?

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Um professor de Direito que "ensina" que violência doméstica não é um crime grave ou crime sequer. Um partido que propõe mutilação como castigo. Um presidente que apela à guerra civil se perder as eleições. Nunca ficou tão claro que as palavras são ações - e que a democracia não sabe como lidar com isso.

O artigo foi publicado em dezembro de 2019 na revista de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - uma universidade pública. Tem mais de 50 páginas bastante ilegíveis, tão ilegíveis como o título - A "coordenação" como (burla de etiquetas para a) uniformização ou nazificação (Gleichschaltung) fundadora de um iníquo "Direito total da família": sobre o "deicídio" do pai cristão como mais um passo na misândrica e cristofóbica destruição do Ocidente" - e termina com um grito: "Viva o Cristo Rei!"

Desta ilegibilidade tresloucada retiram-se algumas ideias-chave (chamemos-lhes assim) que o DN relevou nesta quarta-feira: "o feminismo político", que o autor também caracteriza como "nazismo de género", é o "mais criminoso regime da história", tendo impregnado a justiça e levado à "nazificação" do direito da família; o mesmo "feminismo político" visa a "destruição da paternidade do homem cristão". E a destruição do homem em si, aparentemente; aliás o autor, que considera que só "a leste" (presume-se que se referirá à Rússia, onde se descriminalizaram em 2017 os atos de violência doméstica que não causem "ferimentos graves") se resiste a esse "regime de terror", crê que a única possibilidade de salvação é que esse "feminismo político" que segundo ele tomou o Ocidente de assalto seja derrubado e as feministas julgadas "pelos seus crimes contra a ideia de Deus e do direito como justiça de espécie".

Um discurso perturbado, decerto, mas discurso de ódio. Nada que não se encontre por essa internet fora pelo teclado de fundamentalistas cristãos ou muçulmanos (um qualquer Anders Breivik ou militante do Daesh assinaria ali de cruz) e nas páginas dos chamados Incel - termo formado a partir do início das palavras involuntary celibates (celibatários involuntários), "movimento" caracterizado pelo ódio às mulheres e apelos à violência e à submissão destas e para o qual "feminazi" é sinónimo de feminista.

Sucede que não é das profundezas da net que vem aquele arrazoado delirante; está numa revista de direito editada com dinheiros públicos. E cujo responsável, o professor catedrático de Direito Civil António Menezes Cordeiro, garantiu ao DN que a revista é "científica", com "critérios definidos para a publicação de textos", os quais "têm de ter nível científico e ser autênticos e originais", e, logo a seguir, que aquele texto "não obedece a critérios de cientificidade do ponto de vista da ciência do direito" e "ninguém levou a sério aquela conversa". Publicou-o porquê então, pergunta o jornal. O catedrático responde: "Tinha uma certa densidade cultural" e foi interpretado "como uma crítica de tipo literário a algum extremismo no setor do feminismo".

"Densidade cultural" e "crítica de tipo literário ao extremismo". Daria para rir se não fosse de chorar. E piora: "Não voltaria a publicá-lo", certifica Menezes Cordeiro. Mas pela reação, não pelo texto. "Não é benéfica nem para a revista de Direito Civil, nem para a ciência do direito, nem para a Faculdade de Direito de Lisboa".

O arrependimento é portanto porque "se soube cá fora". Enquanto só se sabia "lá dentro", era giro, "literário", publicar um "artigo" a ressumar ódio pelas mulheres e a apelar ao julgamento (e, depreende-se, condenação à morte) das feministas numa revista da faculdade onde se formam juízes, procuradores e demais juristas num país - este - onde metade dos homicídios intencionais ocorre no contexto de violência de género e tendo mulheres como vítimas.

O país no qual no mesmo ano daquela publicação se assistiu à punição de um juiz pelo Conselho Superior de Magistratura por nos seus acórdãos da Relação insultar e culpabilizar vítimas de violência doméstica, chamando-lhes adúlteras e falsas e invocando o castigo da lapidação e o Código Penal de 1864, que dava aos maridos "enganados" licença para matar as mulheres apanhadas em adultério - o país onde essa licença foi revogada apenas em 1975.

Este país, esta universidade pública, esta faculdade onde o autor do texto referido, Francisco Aguilar, leciona, sendo professor do quadro, e na qual lhe foi entregue a regência de uma cadeira de mestrado de Direito Penal na qual, como foi revelado na semana passada, se propunha "ensinar" precisamente aquilo que defende naquele texto.

A faculdade na qual em julho, numa reunião do conselho científico, uma professora chamou a atenção não só para os termos inaceitáveis do texto citado como para o facto de o seu autor ter, durante uma sessão de um julgamento (de violência doméstica) em que era arguido, apelado à morte das feministas e das "professoras feministas que fazem entrevistas de admissão para o Centro de Estudos Judiciários" assim como de "comissários políticos do Conselho Superior de Magistratura". Considerando que Aguilar se referia a ela - Inês Ferreira Leite, que faz parte do CSM e conduz entrevistas de admissão ao CEJ -, a professora pediu ao conselho científico que emitisse uma declaração de repúdio. Segundo a ata da reunião, que é pública, vários docentes invocaram a "liberdade de expressão" e a necessidade de ouvir o autor das afirmações, tendo Menezes Cordeiro considerado que o conselho deveria "evitar pronúncia sobre a questão". Nada foi feito portanto - até que na semana passada foi divulgado o teor da cadeira de Direito Penal IV, da responsabilidade de Aguilar, e perante o escândalo público esta foi retirada e aberto um processo de averiguações ao professor.

Sim: o caso deste professor, que de acordo com testemunho de uma aluna (nesta quinta-feira) à SIC já usa há muito as aulas para pregar o seu entendimento muito particular do direito, é uma belíssima fábula. Não só no que respeita ao facto de o machismo mais repelente e ultramontano
- aliado à noção de privilégio e casta - continuar vivo e recomendando-se no coração da justiça e da academia portuguesa; é também uma fábula sobre a ausência de instrumentos para lutar contra a perversão das instituições e dos princípios basilares da democracia e do Estado de direito.

Porque o que isto nos diz é que é possível numa faculdade de Direito defender-se tudo ao contrário do que está consagrado nas leis, na Constituição, nos tratados internacionais; que é possível tratar como "liberdade de expressão" ou de "opinião", dando-lhes a dignidade até de publicáveis numa revista alegadamente "científica" as teorias mais infames, insultuosas e criminosas. Que nem o apelo à morte de colegas é visto como inadmissível - e que quem se sinta atingido ou vitimizado por isso não deve esperar da instituição qualquer defesa: nem sequer uma manifestação de repúdio.

No país em que se assiste a um cortejo de gente a bramar contra uma disciplina de Cidadania na escola, alegando "objeção de consciência" contra o ensino da igualdade de género e da liberdade de orientação sexual e de identidade de género, no país em que há gente a acreditar que dizer a crianças que não estão condenadas a seguir papéis tradicionais de género é um crime, um professor pode portanto apresentar as feministas como criminosas e defender a inferioridade e a submissão das mulheres numa revista da Faculdade de Direito pública e nada daí resultar. Por que não haveria então um engenheiro de apresentar no congresso de um partido de extrema-direita, e vê-la aceite para discussão, uma moção para mutilar mulheres que abortam? Porque não há de esse partido querer submeter no parlamento uma proposta de revisão constitucional que prevê, à moda dos talibãs, a mutilação como pena de crimes? Ou porque haveremos de ver com estupor, noutro país e noutra democracia, um presidente ordenar a milícias armadas que estejam a postos para incendiar o país se ele perder as eleições?

Nos três casos estamos perante perversões absolutas das instituições e dos seus princípios basilares; nos três casos constatamos que nada está previsto, a não ser o bom senso e a decência, para impedir que estas coisas ocorram. Porque, e essa é a conclusão terrível a retirar, quando pensámos - nós, as pessoas - a democracia e o Estado de direito, apesar de tanta legislação e interdição e punição previstas, ninguém contou com a possibilidade de que aos lugares onde é suposto ensinar e pensar leis, propô-las, fazê-las e aplicá-las se alcandorasse gente destituída de qualquer respeito pelos princípios dessa mesma democracia e Estado de direito; gente para quem isso nada significa. Ninguém contou com a absoluta falta de decência; ninguém contou com a possibilidade de reis loucos - porque, lá está, não contávamos com a existência de reis, nem de loucos. Muito menos com a nossa impotência.

Jornalista

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