segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A pandemia na China: uma lição de governança para o Ocidente

Enquanto por cá e pelo mundo ocidental em geral prossegue uma campanha verdadeiramente terrorista tentando incutir um medo sem rosto e irracional (a ponto de se pretender ser necessário prescindir de direitos e liberdades básicas para a combater a pandemia), é necessário recordar o que se passa a Oriente, e não só na China. É que aí a pandemia não só está contida como gerou uma mortalidade incomparavelmente mais baixa do que no Ocidente. Aí não se coloca a alternativa entre “saúde” e “economia”: controlada a pandemia, a actividade social retomou toda a normalidade.

Ugo Bardi

O texto abaixo parte de um post que publiquei no site “Pills of Optimism” do Facebook ( ) no dia 26/10. Há ainda muitas coisas que precisamos de entender sobre como a China conseguiu controlar a epidemia de COVID-19. Mas uma coisa é certa: foi controlada e está ainda sob controlo.


Na China, deter a infecção exigiu pouco mais do que um bloqueio regional que afectou uma pequena fracção do território chinês: a província de Hubei, cerca de 4% da população total da China. Associado a rastreio agressivo e isolamento, foi o suficiente para se livrar do vírus. Não há mortes relacionadas ao COVID na China desde Março de 2020. A máquina económica chinesa está em movimento, as pessoas deslocam-se, viajam, fazem compras, circulam, frequentemente sem máscara. Resumindo, a vida é normal. E tem sido normal nos últimos seis meses, pelo menos.

Em comparação, a epidemia no Ocidente tem sido tão mal administrada que dá vontade de chorar de raiva. Uma ameaça que nunca foi avassaladora foi ampliada a ponto de correr o risco de destruir a própria estrutura da máquina económica ocidental. Como pôde isso acontecer?

Dentro de certos limites, o colapso da economia ocidental era inevitável por motivos relacionados com o declínio da disponibilidade de recursos naturais. Mas que tenha acontecido tão rapidamente é desconcertante. Tão surpreendente que algumas pessoas afirmam que foi uma conspiração contra o Ocidente arquitectada pela China ou mesmo uma conspiração da malvada elite ocidental para se livrar dos seus inúteis Untermenschen (sub-humanos).

Talvez, mas é mais provável que o Ocidente tenha simplesmente perdido o controlo do seu sistema de governança, que funcionava por si próprio como um sistema imunológico individual que de repente ataca o seu hospedeiro.

O que podemos aprender com esta história? Principalmente, que não nos podemos dar ao luxo de ser dominados pelas ondas de histeria que se reforça a si própria que passam pelos media e pelas redes sociais. Como podemos gerir isso? Bem, boa pergunta. Imitar a China significaria dar a maior parte do poder ao Partido Comunista, e isso não soa tão viável, hoje em dia, no Ocidente. Mas, falando a sério, devemos repensar o nosso sistema de governança, caso contrário a próxima crise séria irá realmente destruir-nos. (supondo que sobrevivemos à actual)

China: a epidemia acabou. Como conseguiram eles isso?

Pelos dados que chegam da China, parece que as coisas com a epidemia de COVID estão a andar muito bem. Na China, assim como em todo o Leste Asiático, a mortalidade foi muito menor do que na Europa e nenhuma morte foi registada desde Março. Há ainda muitas coisas a esclarecer nessa história, mas a China pode ensinar- que é possível conter a propagação do vírus sem prejudicar a economia.

Lembra-se quando, em Janeiro, os chineses (ou aqueles que pareciam chineses) eram insultados nas ruas da Itália por pessoas que acreditavam estarem a espalhar a peste? As coisas mudaram bastante e hoje são os chineses que acreditam que nós, italianos, somos propagadores da praga. Na China, não houve mortes por COVID-19 desde meados de Março. Quanto aos casos positivos, ocorreram apenas surtos ocasionais de algumas dezenas de casos, quase todos importados ( ). A economia chinesa voltou a mover-se e está agora a operar à plena capacidade.

Pelo que podemos ler nos media internacionais e pelo que colegas que vivem e trabalham na China me dizem, o país está totalmente aberto. Todas as actividades comerciais e industriais estão em operação. As lojas e restaurantes estão abertos e não há restrições a viagens internas. O uso de máscaras faciais é opcional e muitas pessoas não as usam. Pelas fotos que vêm da China, vemos que as pessoas não ligam muito a ajuntamentos de gente sem máscara.

Claro, as autoridades estão ainda em guarda e intervêm assim que surgem pequenos surtos. Por exemplo, as autoridades da cidade de Qingdao descobriram recentemente um surto que, segundo os media internacionais, pode estar relacionado a um lote de bacalhau congelado importado no qual alguém teria observado vírus ainda íntegros. Verdade ou não, é difícil dizer, mas em qualquer caso, o governo local está empenhado em testar todos os 9 milhões de habitantes da cidade! ( ).

Mas, de modo geral, está claro que na China e em outras partes da Ásia a epidemia está sob controlo, sem a necessidade de um confinamento ou de outras medidas severas de contenção. Não apenas parece ter desaparecido na China a epidemia. Gerou também poucos danos, pelo menos segundo os dados do governo. Refere-se que o número total de vítimas se situou em cerca de 4.600 em quase um milhar de milhões e meio de pessoas. Isso significa 3 mortes por milhão contra cerca de 600 em Itália e em outros países ocidentais. Mesmo se considerarmos apenas as regiões europeias que o vírus atingiu com mais força, descobrimos que a província de Hubei ainda se saiu melhor. ( )

Como isso é possível? Muitas vezes lemos nas redes sociais e nos media que os chineses nos enganaram e que continuam a enganar-nos. Como a China é uma ditadura, dizem, segue-se que tudo o que o governo chinês nos diz é por definição falso - incluindo o facto de que a epidemia se foi. Será que ainda há gente a morrer de COVID na China, mas o governo não nos diz?

É sabido que os governos não são fontes de informação confiáveis. Vimos num post anterior como pelo menos um país europeu, a Bielorrússia, pode ter falsificado parcialmente os dados sobre a epidemia ( ). Já na China, há casos anteriores de falsificação de dados. Por exemplo, uma análise de dados sobre pescas vindos da China na década de 1990 indicou falsificações óbvias para esconder o esgotamento dos stocks ( ), ( )). Mas uma epidemia é um assunto muito mais sério e extenso que uma fraude num sector comercial específico. Seria também muito difícil ao governo chinês ocultá-la se houvesse uma em andamento.

Portanto, se queremos acreditar que os chineses nos estão a contar mentiras sobre a epidemia, devemos trazer alguma prova sobre isso. Continuando com o exemplo dos dados pesqueiros, um dos motivos que levaram a desconfiar da validade dos dados chineses foram as anomalias que se constataram na comparação com dados de outras regiões semelhantes. Podemos encontrar alguma anomalia para a pandemia? Aparentemente não: os dados sobre a propagação do COVID-19 na China são comparáveis aos dados de outros países asiáticos vizinhos que, em geral, apresentam mortalidade mínima ou nenhuma mortalidade.

Por exemplo, Taiwan saiu-se ainda melhor do que a China continental, com um total de 7 mortes por 23 milhões de habitantes (menos de uma morte por milhão). Outros países saíram-se um pouco pior, mas ainda assim permaneceram com níveis de mortalidade muito baixos. Singapura refere 5 mortes por milhão, Hong Kong 13. O vizinho Japão também sofreu apenas 13 mortes por milhão. Depois, tanto a Mongólia como Macau referiram mesmo zero mortes. Claro, pode dizer-se que a Mongólia não conta porque é um país de condutores de camelos que vivem em tendas no meio do deserto. Mas, claro, não é esse o caso. A capital da Mongólia, Ulan Bator, é uma metrópole com mais de um milhão de habitantes. Macau, então, é uma cidade de 700.000 habitantes com uma densidade populacional muito elevada, talvez a mais elevada do mundo. E a epidemia atingiu Ulan Bator e Macau sem deixar uma única vítima! É pouco credível que todos esses governos tenham concordado em ocultar ao resto do mundo uma epidemia em curso.

Mas porque são tão melhores as coisas na Ásia do que aqui? Usaram os chineses medidas de contenção particularmente eficazes? De certa forma, o confinamento chinês deste ano pode ter sido mais drástico do que o ocidental, mas não durou mais do que na Europa. Nem é sequer possível dizer que foi mais oportuno se, como os próprios chineses dizem, o vírus já circulava em Dezembro. O confinamento foi estabelecido em Wuhan apenas a 23 de Janeiro e alguns dias depois em toda a província de Hubei.

Em termos de “distanciamento social”, todos sabemos que na Ásia há uma tendência de evitar o contacto físico entre as pessoas. Mas é também verdade que se já embarcou no metro numa cidade do oriente (por exemplo, em Tóquio ( )), terá uma ideia muito específica do significado da expressão “espremido como sardinha”. Se nunca teve essa experiência, dê uma vista neste link para um impressionante vídeo do metro de Pequim ( ). As metrópoles orientais são extremamente populosas e, sob certas condições, é simplesmente impossível evitar o contacto físico.

Seria então que o truque estava no rastreamento de contactos e no isolamento? Pelo que podemos ler, parece que os países asiáticos têm sido muito agressivos no rastreamento e isolamento das pessoas que estiveram em contacto com pessoas afectadas pelo vírus ( ). É uma explicação interessante, mas o rastreamento e o isolamento foram também efectuados na Europa. Talvez não o tenhamos feito suficientemente bem? É possível, mas não temos comparações quantitativas que nos possam dizer se esta é a única explicação para toda a história.

Há também outra interpretação possível que nada tem a ver com o que os governos fizeram ou deixaram de fazer. Pode ser que os chineses tenham sido expostos ao vírus por mais tempo do que nós no Ocidente e, portanto, se tenham aproximado primeiro da imunidade colectiva. Provavelmente já ouviu falar de Li Wenliang, o médico chinês que pela primeira vez observou casos de pneumonia anormal em Dezembro e que mais tarde morreu por contrair ele próprio a infecção. Inicialmente não acreditaram nele, mas é hoje considerado um herói na China.

Li havia começado a soar o alarme no final de Dezembro de 2019, mas nada nos impede de pensar que o vírus já existia na China há algum tempo, talvez até em formas ligeiramente diferentes do que depois atingiu a Europa. Acontece que os afectados foram diagnosticados como casos normais de pneumonia. É possível que a população chinesa tenha sido exposta ao vírus muito antes da declaração da emergência? Há um facto que pode dar-nos um forte indício nesse sentido: o excesso de mortalidade. Se a epidemia já existia em Novembro-Dezembro de 2019, ou mesmo antes, deveríamos ver uma mortalidade anormalmente alta na China, em comparação com a média para esse período.

Boa ideia, mas com um problema: em nenhum lugar da Web podemos encontrar dados sobre a mortalidade adicional na China durante a pandemia de COVID. Observe que isso não significa que o governo chinês nos esteja a esconder algo. Quase nenhum governo do mundo divulga esses dados de forma facilmente acessível. A Europa é uma excepção com uma base de dados sobre mortalidade excessiva chamada “Euromomo” administrada por uma rede liderada pela OMS, mas não existe nada semelhante para a Ásia Oriental. Portanto, de momento, a ideia de um início precoce da epidemia na China permanece uma hipótese.

Existem outros factores que poderíamos observar, mas este vírus acostumou-nos ao facto de que as previsões e interpretações acabam sempre por ser erradas. Mesmo num artigo recente na Nature ( ), os autores disseram francamente que “não estamos ainda em condições de fornecer uma explicação generalizada para as diferenças quantitativas de mortalidade observadas entre países”. Portanto, devemos contentar-nos em dizer que a epidemia fez muito menos danos na Ásia do que nos fez a nós por algum motivo que, de momento, não podemos identificar com certeza.

Mas vamos ficar pelo que sabemos, que de momento as coisas estão a ir muito bem na China e em todo o Leste Asiático, enquanto o Ocidente está a experimentar uma “segunda vaga”. Pelo menos, podemos concluir que não estamos a enfrentar um inimigo invencível. É possível vencer o Sars-Cov-2 sem necessariamente ter que destruir a economia com confinamentos prolongados e generalizados. Claro, estamos num momento muito difícil aqui, na Europa, mas não há razão para pensar que teremos que continuar a viver no terror nos próximos séculos.

O autor agradece a Chandran Nair os seus comentários sobre a situação na China.

https://ugobardihomepage.blogspot.com/2016/04/ugo-bardis-personal-home-page.html
http://www.nhc.gov.cn/xcs/yqtb/202010/2fbce5a9836d4b09a89a0d85a2e05ac2.shtml
https://www.globaltimes.cn/content/1203836.shtml
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=176464484012617&id=111172767208456
https://ugobardi.blogspot.com/2020/10/pandemia-e-possibile-che-qualcuno-ci.html
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11734851/
http://www.fao.org/3/Y3354M/Y3354M00.htm
https://www.youtube.com/watch?v=E7kor5nHtZQ
https://www.youtube.com/watch?v=9ulY7N3dZ9k
https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-07-25/these-elite-contact-tracers-show-the-world-how-to-beat-covid-19
https://www.nature.com/articles/s41591-020-1112-0

Fonte: https://cassandralegacy.blogspot.com/2020/11/the-pandemic-in-china-governance-lesson.html

Publicado em O Diário.info

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