Na América Latina e Caribe a persistência dos protestos populares impôs ao imperialismo importantes recuos e reveses, relançando na região processos de transformação progressista da sociedade.
António Abreu | AbrilAbril | opinião
1. O jornal O Globo afirmava no início deste ano: «Entre tantas incertezas que 2019 deixou a respeito da América Latina, ao menos uma ideia parece ter ficado evidente: perdeu o sentido afirmar que a região está dando uma guinada à direita ou à esquerda.»
Um ano passado, a única certeza que o jornal dos grandes capitalistas brasileiros e de Bolsonaro, tinha, ruiu. Provavelmente já estará a elaborar novas certezas e adivinhações para 2021…
O ano de 2020 trouxe coisas bem diferentes das que O Globo previra para a América Latina: a vitória na Bolívia do candidato presidencial do Movimento para o Socialismo (MAS), Luis Arce, e o referendo no Chile que derrubou a constituição de Pinochet, depois de grandes manifestações populares por esse objectivo.
No primeiro caso, além disso, a Interpol rejeitou um pedido de detenção formulado pelo governo golpista da Bolívia contra o ex-presidente e líder do MAS, Evo Morales. Considerou que as acusações dos delitos de sedição e terrorismo contra Evo, refugiado desde 2019 na Argentina, têm conotação política e são infundadas. E a justiça boliviana suspendeu a ordem de detenção contra Evo Morales, decidindo que «direitos do ex-presidente foram desrespeitados, basicamente o seu direito à defesa». O ex-presidente boliviano Evo Morales deve regressar ao seu país a 9 de Novembro, um dia depois da tomada de posse do novo presidente.
Apesar dos confinamentos, ocorreram manifestações de massas na Bolívia, no Chile, na Colômbia, no Brasil, na Costa Rica, nas Honduras, contra a repressão policial brutal, por reivindicações sociais, pelos direitos dos indígenas, contra o FMI e as medidas neoliberais de vários governos.
Todas estas manifestações têm um sinal claro de esquerda e nelas as lutas de classes procuram – e nos casos citados conseguem – fazer convergir reivindicações populares e transformações políticas.
É certo que na última década vários foram os países de maiorias progressistas em que os EUA conseguiram recuperar posições perdidas, através de acções golpistas por si patrocinadas. Mas a persistência dos protestos populares minou a base social de apoio aos golpistas. O agravamento da exploração, das injustiças e desigualdades sociais e da opressão neocolonial, impôs ao imperialismo importantes recuos e reveses, que estão já a evoluir para processos que contêm o paradigma de transformação progressista nas respectivas sociedades.
2. Este quadro coexistiu com a pandemia da Covid-19, que se desenvolveu com consequências mais tardias do que na Europa. Mas com danos sociais particularmente altos na região da América Latina e do Caribe (ALC), que registou uma taxa de mortalidade muito alta.
Na maior parte destes países as medidas de distanciamento social não foram implementadas de maneira adequada. Isso levou a uma queda substancial da actividade económica. O PIB do Peru caiu 27,2% no segundo trimestre de 2020, o do Brasil 9,7%, o do Chile 13,2%, o do México 17,1% e o da Colômbia 14,9%.
A economia da ALC poderia ter sido pior se não fosse a rápida recuperação da economia chinesa. Enquanto as exportações para os Estados Unidos, Europa, Japão e mercados intrarregionais caíram drasticamente, a procura chinesa por soja, minério de ferro, cobre, carne, e outras commodities impediu o colapso do comércio exterior da ALC. As exportações da Argentina para a China no primeiro semestre do ano cresceram 20,6%, enquanto as vendas para o Brasil, os EUA e a União Europeia caíram 31,7%, 22% e 19,7%, respectivamente. As projecções de crescimento para as economias da região em 2020 não são promissoras. A Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (Cepal) estimou em Abril que o PIB dos países da América do Sul cairia em média 5,2%, do México e dos países da América Central 5,5% e dos países do Caribe 2,3%. As consequências começaram logo com o aumento significativo do desemprego, o aumento da pobreza e também o agravamento da já débil situação fiscal nas economias da região.
3. Nesta situação torna-se difícil definir as estratégias políticas, económicas e sociais para superar a crise na região. Para piorar as coisas, o rendimento per capita nas economias da ALC está estagnada desde a crise das commodities de 2014, as empresas mostram excesso de capacidade e os governos ficam com pouca margem fiscal para introduzir políticas correctivas. Não só na ALC se impõe um aumento dos gastos públicos. Na União Europeia está em processo de aprovação um pacote de ajuda de 750 mil milhões de euros. Também na China, nos EUA e noutras grandes economias está a acontecer o mesmo.
4. Mas mesmo com o sucesso destes planos, persistem dúvidas de que os países possam sair dessa situação sozinhos. A cooperação internacional é importante para a recuperação das economias da ALC.
E a normalidade na vida quotidiana depende do desenvolvimento de vacinas eficazes e seguras contra a Covid-19. sendo já muitos os países que o estão a tentar. Importa que, para além da conclusão dos testes, estas vacinas, como já declararam o secretário-geral da ONU e governos como o da China, sejam consideradas «bem público», já que os países e regiões mais pobres não poderão arcar com os custos envolvidos. E mesmo em países economicamente mais robustos, dadas as diferenças sociais e a pobreza, terá que ser dada prioridade aos sectores sociais mais desprotegidos e aos sectores da «linha da frente».
A segunda etapa diz respeito à normalização do comércio internacional, em particular a superação das barreiras económicas e políticas que vêm sendo erguidas por alguns dos países mais fortes. A quebra das cadeias produtivas por causa da pandemia não pode ser uma justificativa para acabar com a liberdade comercial. É necessário fortalecer o multilateralismo e as organizações internacionais para que as questões económicas e comerciais não sejam excessivamente politizadas. Uma forma de acelerar a recuperação da economia da ALC é promover investimentos em infra-estruturas, gerar empregos e rendimento e também construir as bases para um desenvolvimento mais sustentável, principalmente com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. As energias limpas e os potenciais da Quarta Revolução Industrial, como o 5G, a automação e a internet das coisas podem contribuir para a renovação da economia.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em vez de ser usado como cenário das agressões dos EUA para com os países da ALC, poderia desempenhar um papel importante como catalisador de recursos e como fonte de experiência para a criação, financiamento e controle de grandes projectos de infra-estruturas. Considerando que na sua estrutura se incluem membros «não mutuários», como Estados Unidos, Canadá, países europeus, China e Japão, entre outros, o BID podia ser um espaço de cooperação para a recuperação e o desenvolvimento da América Latina.
Mas o novo presidente do BID tem um currículo que deixa antever que o Banco de investimento para a América Latina não se irá transformar em plataforma de investimento para os países, podendo mesmo ser tão só um factor de agressão contra eles.
«Na melhor das hipóteses, produzirá paralisia e marginalização, e com isso já estará contornando a instituição mais importante no momento mais crítico», comentou Michael Camilleri, analista do centro de pesquisa de políticas públicas Diálogo Interamericano.
5. Uma das narrativas empregues pelos EUA e aliados mais próximos, no quadro da demonização da China, é que ela está criando armadilhas para dívidas. Os países latino-americanos estariam entre as vítimas dessas armadilhas.
Por exemplo, em 12 de Abril do ano passado, o secretário de Estado americano Mike Pompeo disse no Chile que «os Estados Unidos "sempre encorajarão" os parceiros latino-americanos a evitar as "armadilhas da dívida" criadas pela China».
Numa entrevista no passado dia 27, o assessor de Trump e grande estratega para a América Latina, Mauricio Claver-Carone, falou num aumento de capital do BID, mas também disse que se a América Latina «entrar na órbita da China», ficará atolada em «dependência, dívida e corrupção». A sua estratégia regional tem passado também por defender o combate contra Cuba e a Venezuela.
Tal como aconteceu com a indicação da nova juíza vitalícia do Supremo Tribunal de Justiça, Amy Coney Barrett, a indicação por Trump, há poucas semanas, de que iria propor esse assessor para presidente do BID – cuja presidência dura cinco anos – é outra peça indiciadora do terreno minado que o actual presidente vai deixar.
Os países latino-americanos têm fraca capacidade de acumulação de capital e dependem fortemente de capital estrangeiro. Como muitas investigações e estudos referem, a infra-estrutura subdesenvolvida da região é um grande obstáculo para o crescimento económico da América Latina. E a falta de investimento é a principal razão por detrás da infra-estrutura deficiente. Ora os empréstimos e investimentos que a China oferece à América Latina ajudam, até certo ponto, a resolver essa sua escassez de fundos.
A China sempre se ateve às normas internacionais no desenvolvimento de suas relações económicas e comerciais, incluindo a cooperação financeira, com os países latino-americanos. Os empréstimos que a China concedeu à região, incluindo cláusulas de prazo de reembolso e taxas de juros, foram acordados pelas duas partes por meio de conversações e negociações e seguem as regras internacionais.
Na verdade, a China responde por
uma parcela insignificante no total da dívida externa dos países
latino-americanos. De acordo com estatísticas divulgadas pela Comissão Económica
para a América Latina e o Caribe, a Cepal, a dívida externa da América
Latina ultrapassou 2 triliões de dólares em
As crises de dívida estouraram muitas vezes na América Latina, mas nenhuma foi causada pela China. Em vez disso, os EUA estiveram ligados directa ou indirectamente a quase todas as crises de dívida na região.
Na década de 1970, por exemplo, os bancos norte-americanos ofereceram grandes quantidades de empréstimos a países latino-americanos, que estavam implementando uma estratégia de crescimento do endividamento. Como resultado, a relação dívida/PIB da região aumentou de cerca de 18% em 1970 para cerca de 45% em 1982, e a relação dívida/exportação aumentou de 180% para 330%.
No primeiro semestre de
Porém não faltam pessoas perspicazes na região. Eduardo Klinger Pevida, um estudioso da República Dominicana, disse que a América Latina enfrenta um défice de 100 a 150 mil milhões de dólares em financiamento em infra-estruturas., e que «a China pode oferecer uma mão amiga».
A China concedeu empréstimos à Venezuela que ganharam atracão mundial. Mas a China não criou uma «armadilha da dívida» no país. Os acordos de financiamento entre China e Venezuela fazem parte dos laços económicos entre os dois países e obedecem a regras internacionais. Os negócios de petróleo por empréstimo beneficiaram o desenvolvimento socioeconómico do país latino-americano e atendem aos interesses de ambas as partes.
Na imagem:
Um rosto feliz durante a manifestação realizada pelo Movimento para o
Socialismo (MAS) para celebrar a sua esmagadora vitória eleitoral e a
designação formal de Luis Arce como presidente,
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