Na sexta-feira, dia 16 de outubro, a França e a comunidade internacional se comoveram diante de mais um crime bárbaro provocado pelo extremismo religioso. O corpo do professor francês Samuel Paty foi encontrado decapitado, na periferia de Paris, sendo o autor um fundamentalista religioso motivado pelo uso de caricaturas de Maomé em uma aula sobre liberdade de expressão, que causou grande insatisfação na comunidade islâmica, revelando a tensão social existente na França, mas que tinha passado a segundo plano devido à pandemia.
A resposta do governo francês foi contundente, expulsando mais de 271 imigrantes com ligações com o fundamentalismo islâmico. Sem embargo, essa medida está longe de resolver um problema social existente na sociedade francesa e que forma parte de sua estrutura demográfica.
A França possui uma das maiores comunidades islâmicas da Europa e grande parte desse contingente está formado pelos descendentes de países que outrora foram protetorados franceses, cujos cidadãos detinham a cidadania francesa ou a possibilidade de optar pela mesma. Porém, a integração ineficaz ao longo das décadas gerou um abismo social marcado pela desigualdade, que, junto com a chegada de novos imigrantes, fomentou o surgimento de células fundamentalistas alimentadas pela exclusão social, tensões externas e questões identitárias. Mais que nenhum outro país da União Europeia, a França se transformou em um celeiro para a captação de jovens pertencentes à comunidade islâmica, tanto os cidadãos já estabelecidos como os recém-chegados (como no caso do assassino do professor Samuel), atraídos pelo fundamentalismo religioso.
O atrito social e cultural tem sido o centro das discussões e disputas políticas na França nas últimas décadas, não havendo sucesso em nenhuma das tentativas de minimizar esses conflitos, com o surgimento de discursos cada vez mais exacerbados de ambos os lados, sendo algo utilizado por grupos terroristas, tais como o ISIS, para cooptar novos membros.
Porém, a França não é o único país onde se identifica um aumento das tensões provocadas pelo atrito cultural, mas toda a Europa registra células fundamentalistas e atentados, a exemplo de Bélgica, Espanha e Reino Unido, cuja solução não é tão simples como pode aparentar em uma análise simplificada da realidade, pois está intimamente ligada a fortes questões identitárias.
A demografia de diversos países de Europa está intensamente ligada a seu passado colonial e aos fluxos migratórios de finais do século XIX até a metade do século XX. Países como Portugal, Espanha e Itália possuem grandes comunidades latino-americanas que são um reflexo disso, assim mesmo, a França e a Holanda ainda possuem territórios ultramarinos e áreas de influência em diversos lugares do mundo, onde nem sempre a cultura é a mesma. Dessa forma, podemos dizer que a migração ou a diversidade étnica, cultural e religiosa formam parte dos países europeus, e acreditar em uma sociedade “pura” ou em uma identidade nacional única está longe da realidade e mais se aproxima a um discurso igualmente extremista e perigoso.
Acredita-se que este discurso que classifica os cidadãos pelas suas origens, religião e cultura é o que inviabiliza uma real integração e serve de combustível para o extremismo, seja de um lado ou do outro.
A Europa vive o apogeu da intolerância, marcada, por um lado, pelo extremismo que estigmatiza o conjunto das comunidades migrantes e que se alimenta do atrito cultural e do fundamentalismo, e por outro lado gera um discurso que aumenta as desigualdades e fomenta a crença de uma raça ou cultura pura, a qual é cada vez mais violenta e cujos extremos aos poucos se aproxima do lado oposto.
Nesse sentido, não se trata de justificar um ou outro, nem minimizar tragédias como as do Bataclan ou o cruel assassinato do professor Samuel Paty, mas também não usar os mesmo para alimentar o extremo oposto e uma reação violenta que pode se justificar como ação estatal autolegitimadora, caso alcancem o tão desejado poder, sob a liderança de partidos cada vez mais extremistas. Sendo assim, os atos fundamentalistas não afetam somente os franceses, mas, também, as comunidades islâmicas da França, pois aumentam os estigmas sociais que alimentam a desigualdade e, consequentemente, fertilizam o solo para a captação de mais jovens por parte dos terroristas.
O lado oposto do crescimento do fundamentalismo islâmico é justamente o surgimento de células neonazistas ou ultranacionalistas, cujos crimes jamais serão classificados como terrorismo, pois são “legitimados” pela identidade nação do autor. Assim mesmo, jamais ocuparam o mesmo espaço nem a mesma repercussão e serão classificados como crimes por racismo ou xenofobia, perdidos nas páginas dos jornais em notícias do cotidiano.
O ódio atua em cadeia e se propaga de forma rápida. Os extremos se justificam no lado rival até chegarem ao ponto em que se encontram na mesma situação, sendo a principal luta evitar que isso aconteça.
Diante desse imenso desafio no qual a França se encontra, bem como grande parte da União Europeia, a questão é muito mais complexa que a classificação de pessoas por sua religião ou sua procedência. Como se observa em análises e na observação empírica, o foco primordial para a manutenção da democracia deve ser evitar que o extremismo seja institucionalizado ou legitimado como consequência da ascensão dessa tensão.
Embora uma legislação mais rígida seja necessária, assim como um maior controle para garantir a segurança dos cidadãos, observa-se que a mesma não pode ser um subterfúgio para políticas igualmente discriminatórias, cujos efeitos a longo prazo serão proporcionalmente nefastos. A conclusão que vem sendo compartilhada é que o que se deve excluir da sociedade é o terrorista e não o cidadão por ser de uma determinada cultura ou religião, evitando gerar um discurso onde o que se observa não é a sociedade contra o terrorismo, mas um tipo de cidadão frente a “outros” que não são vistos como tais, alimentando a máquina do ódio, que, dessa forma, jamais irá parar.
Sem embargo, solucionar esta contraposição em sociedades complexas com democracias cada vez mais debilitadas em um mundo em constante tensão é o grande questionamento, para o qual líder carismático algum de fato possui as respostas, mas se sabe que a máxima de “dividir e conquistar”, aplicado também neste caso, gerará como única vencedora a própria barbárie.
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