terça-feira, 17 de novembro de 2020

O pior dia da semana


Bom dia, este é o seu Expresso Curto

João Cândido da Silva | Expresso

Bom dia,

Charles Bukowski era peremptório. Não manifestava qualquer dúvida de que o domingo era “o pior, o mais desgraçado entre todos os dias da semana”. Clarice Lispector também não alimentava grande respeito por essa sucessão de 24 horas que antecede a igualmente pouco popular segunda-feira. Pelo contrário. Detestava o domingo “por ser oco”.

Em tempos de pandemia e de restrições à liberdade de circulação, talvez os dias estejam todos mais parecidos com os domingos. Com a diferença de que ficar-se encerrado em casa por obrigação naquele que é o primeiro dia da semana é menos agradável do que fazê-lo por opção, ainda que o objectivo seja o de recuperar das folias de sábado e das consequentes nevralgias.

Vazio, desditoso ou ambas as coisas, o domingo acaba de revelar uma virtude para as autoridades que impuseram o recolher obrigatório durante os fins-de-semana. Dados recolhidos pela consultora PSE indicam que o cumprimento das normas foi mais rigoroso neste dia. Perto de dois terços dos portugueses não saíram à rua e, pelas 13h00, quase oito em cada dez estava enfiado em casa. No sábado, “apenas” 55% se mantiveram entre paredes durante todo o dia. Não surpreende, é o habitual dia de descompressão.

O grau de obediência foi elevado. Parece ser proporcional ao sentido das responsabilidades e à consciência dos riscos, que respondem perante a capacidade de persuasão das mensagens claras ou, quando estas falham, à ameaça da multa e da repressão. PSP e GNR procederam a 14 detenções e passaram duas centenas de coimas. Tudo tranquilo.

Infelizmente, os ziguezagues que se acumularam após o primeiro confinamento precipitaram uma distensão que não foi acompanhada do planeamento e das medidas preventivas necessárias para enfrentar o embate da segunda vaga de covid-19. Os apelos ao consumo, ao gozo de férias em Portugal e à frequência de restaurantes desvaneceram-se com a subida descontrolada das infecções e dos óbitos. O Governo fez uma pirueta e as actividades que era necessário serem reanimadas, pilares da economia e do emprego, sofreram mais um golpe duro.

Miguel Pina Martins diz que o fim-de-semana foi “catastrófico para o retalho e restauração”, que representa mais de 375 mil empregos. O presidente da Associação de Marcas de Retalho e Restauração faz a estimativa de que as perdas de facturação nas empresas do sector atingem 76% nos concelhos que se encontram sob as limitações do estado de emergência.

Há outros exemplos de vítimas de desnorte e descoordenação. Dois mil reclusos foram libertados e a ideia era a de evitar surtos no interior dos estabelecimentos prisionais. Ficaram entregues a si próprios e alguns até pediram para regressar à cadeia. Associações que acompanham esta realidade qualificam o processo como "um absurdo".

Se a gestão da pandemia falha, as derradeiras esperanças estão onde? Os testes clínicos da vacina que está a ser desenvolvida pela Moderna apontam para uma eficácia de 95%, incluindo nos casos mais graves. A Pfizer já tinha anunciado que a imunização que está a pesquisar oferece garantias de 90%. São boas notícias. Mas ainda decorrerão meses entre a conclusão de todos os testes de segurança, a validação, a produção, a distribuição e a inoculação de um número suficiente de pessoas para que a imunidade colectiva seja alcançada.

"Uma vacina vai complementar as outras ferramentas que temos, não vai substituí-las", avisou Tedros Adhanom Ghebreyesus durante uma reunião do conselho executivo da Organização Mundial da Saúde. “Por si só, não será suficiente" para derrotar a pandemia de covid-19", acrescentou. Aquilo que o director-geral da OMS está a pedir é uma visão que vá para além do curto prazo, um recado que devia ser escutado em São Bento e em Belém, onde o Presidente da República começa esta terça-feira a receber os representantes dos partidos políticos.

A mão pesada actual destina-se evitar o colapso do Serviço Nacional de Saúde e a “salvar o Natal”, mas nada garante que o dia-a-dia não regresse a uma rotina pardacenta em Janeiro. Tão “desgraçada” e “oca” quanto o pior dia da semana.

OUTRAS NOTÍCIAS

Polónia e Hungria ameaçaram e cumpriram. Numa reunião de embaixadores da União Europeia realizada em Bruxelas, a entrada em vigor do Quadro Financeiro Plurianual para o período de 2021 a 2017 e do Fundo de Recuperação foi bloqueada, em retaliação pelas normas que condicionam o uso de dinheiros comunitários ao respeito pelo Estado de direito. Os alarmes soaram em Lisboa, explica Ângela Silva, e esta quinta-feira os líderes dos 27 tentarão desatar o nó.

Mário Centeno abriu o livro sobre aquilo que pensa dever ser a política orçamental no actual contexto. Defende que uma crise que qualifica como temporária deve ser combatida com medidas de duração limitada no tempo e que o Governo tem de evitar assumir compromissos que façam aumentar, de forma permanente, a despesa e a dívida das administrações públicas. O ex-ministro das Finanças e agora governador do Banco de Portugal entrou no debate orçamental com “estrondo”, escreve Liliana Valente. Uma ajuda para António Costa ou um embaraço?

A incoerência e o hábito de dar o dito pelo não dito em função das conveniências de cada momento são um pecadilho vulgar entre os políticos. Gritam mais alto quando as convicções, e a respectiva contradição, são proferidas em tom decidido e veemente. Liliana Coelho foi pesquisar os temas em que André Ventura já se enredou em proclamações que dificilmente se podem harmonizar.

Na TVI, o líder do Chega, deputado e candidato às eleições presidenciais, esteve ao ataque. "Campanhas fofinhas já tivemos durante 46 anos. Agora é altura de campanhas a sério e discurso duro. Porque é isso que os portugueses querem neste momento. Os portugueses querem verdade, autenticidade, não querem folclore", disse André Ventura. Ana Gomes e Marisa Matias foram alvos preferenciais.

A.N. alega ter sido “duramente perseguido no seu país de origem por razões políticas” e está “profundamente traumatizado”, segundo afirmam os advogados. As iniciais referem-se a um cidadão turco que acaba de recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Na queixa, equipara a sua experiência, ao ser reenviado de regresso da Grécia para a Turquia, a um caso de tortura. É o primeiro caso desta natureza naquela instância judicial, conta Ana França.

A entidade reguladora do sector das telecomunicações acusa a MEO, a NOS e a Vodafone de terem aumentado, entre Outubro e Novembro, os preços dos serviços de internet, televisão e voz fixa e reduzido a respetiva qualidade. A NOS rejeita as acusações e denuncia o “abuso de poder” da Anacom.

James Symington, um dos nomes mais relevantes da actividade vinícola na região do Douro, morreu esta segunda-feira. Nasceu em 1934, no Porto, numa família já com ligações à produção do vinho que ostenta o nome da cidade. Margarida Cardoso conta o percurso do empreendedor, incluindo a história de uma rã que atravessou o Atlântico na companhia do jovem James.

Esta terça-feira, Portugal cumpre calendário com o jogo final da Liga das Nações contra a Croácia. Sem nada para ganhar ou para perder, a selecção portuguesa de futebol enfrenta, em Split, uma equipa que ainda quer garantir que não será despromovida na competição. “Será um jogo difícil contra uma boa equipa”, diz Rúben Dias, central da formação nacional.

Quatro filmes tinham sido previamente seleccionados como candidatos à categoria de Melhor Filme Internacional na próxima edição dos Óscares. Os membros da Academia Portuguesa de Cinema votaram e “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, foi o escolhido.

FRASES

“Em Portugal não vai ser o preço que vai decidir a vacina que vamos utilizar”, Graça Freitas

“Tirar Costa do poder não pode originar à direita a tática que a esquerda usou para tirar Passos do poder: o vale tudo”, Henrique Raposo

“Dormir bem, não dormi, acho que eles também não, azia acho que também tivemos todos, mas transportar isso para o jogo não serve para nada, não é?”, Fernando Santos

“Somos confrontados com uma doença, o COVAR, que ninguém entende”, Carloz Queiroz

O QUE ANDO A LER

Políticas e instituições económicas inclusivas. No essencial, é esta a chave para o sucesso identificada por Daron Acemoglu e James Robinson em “Porque Falham as Nações”, a obra em que os professores do Instituto de Tecnologia do Massachusetts e da Universidade de Chicago, respectivamente, analisam as razões para os fracassos e para os casos bem sucedidos registados em diferentes momentos da História e em geografias diversas.

Quando o livro foi publicado, em 2012, as economias desenvolvidas estavam a sair das crises do subprime e da dívida soberana, a tentar regressar ao crescimento e à estabilidade depois da Grande Recessão. Agora, vivem-se os tempos da ameaça do iliberalismo, ampliada pelas tentações que se escondem por detrás do combate à pandemia de covid-19. Os dois académicos regressam com um objectivo ambicioso: propõem-se analisar os riscos que as democracias liberais enfrentam e deixar a sugestão de qual pode ser a via para a preservação da liberdade, algo que consideram não fazer parte da ordem natural das coisas.

“O Equilíbrio do Poder” sobre o qual escrevem, novamente com base numa extensa pesquisa histórica, desenha-se através de um “corredor estreito” entre o poder do Estado e o poder da sociedade, o frágil “narrow corridor” que surge no título da versão original. As origens da confederação helvética, o poder despótico e as atrocidades do rei Leopoldo no Congo belga, a evolução do autoritarismo na China ou a extinção das tribos africanas da Libéria pelos escravos norte-americanos libertados, são alguns dos numerosos casos que ilustram as conclusões de Daron Acemoglu e James Robinson. O resultado é uma reflexão indispensável sobre um valor difícil de conquistar e que nunca deve ser visto como um dado adquirido e irreversível.

O QUE ANDO A OUVIR

“Artlessly Falling”, Mary Halvorson’s Code Girl. Guitarrista que tem produzido música original e desafiante, Mary Halvorson lança o segundo álbum dedicado às canções, com oito novos temas da sua autoria. Há convidados especiais nestas gravações, entre os quais Robert Wyatt, uma das fontes de inspiração de Halvorson, que assegura a voz em três das faixas.

“Albores”, Dino Saluzzi. O músico argentino volta a gravar um álbum a solo, 32 anos depois da primeira experiência. A sós no seu estúdio em Buenos Aires, com um bandoneon por companhia, Saluzzi cruza folk, tango, jazz e improviso, numa gravação que exibe uma atmosfera melancólica e reflexiva.

“The Art of Song, Vol I: When Baroque Meets Jazz”, Rita Maria e Filipe Raposo. A voz límpida de Rita Maria e o piano melodioso de Filipe Raposo juntam-se num álbum que reúne temas de Bach, Purcell e Rameau, entre outros compositores do período barroco, reinventados sob a linguagem do jazz.

“Legal Tender”, Cortex. Um quarteto de origem norueguesa que soma saxofone e trompete a uma secção rítmica composta por contrabaixo e bateria. A banda vai no sexto álbum e mantém-se em forma assinalável. Fusão de tradição e modernidade, numa abordagem enérgica e empática.

E é tudo. Acompanhe a actualidade no Expresso, Tribuna e Blitz. Espreite as sugestões do Boa Cama Boa Mesa e tenha um excelente dia.

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