Os alarmes soaram assim que o INE
começou a publicar os dados sobre mortalidade
Há quem diga que a covid-19 tem uma marca muito forte associada à morte, à solidão da morte, de quem parte e de quem fica, por não haver a proximidade da despedida. Mas a pandemia está a deixar agora mais uma marca na morte, a do medo. "O medo de ir ao hospital para não serem infetados com a covid", dizem-nos. Mas esse medo já se está a traduzir em mais mortes em casa, ou fora do contexto hospitalar.
De acordo com os dados agora publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), nestes meses oito meses morreram 77.249 portugueses, mais 8686 óbitos do que no mesmo período homólogo, dos últimos cinco anos, e, destes, 31.124 morreram fora dos hospitais, mais 5817 do que o registado também no período entre 2015 e 2019. "Mais de dois terços do acréscimo de óbitos entre 2 de março e 1 de novembro, relativamente à média dos últimos cinco anos, ocorreu fora dos hospitais", conclui o INE.
Os dados do INE são recolhidos através das certidões de óbito não referindo causas ou locais, mas ao DN o médico Jorge Almeida, diretor do maior serviço de medicina interna do país, que integra o Hospital São João, no Porto, explica: "A maioria morreu em casa, porque só uma ínfima parte das mortes ocorrem na rua ou em instituições."
Um cenário que já nada tem a ver com o que se considera habitual. "A maioria das pessoas morre hoje nas enfermarias dos hospitais", sustenta Jorge Almeida, mas "quando passámos março e abril e começámos a ver camas vazias percebemos que os doentes não estavam a vir aos hospitais para se tratarem", argumenta.
Segundo os dados do INE, 46.125 morreram no contexto hospitalar e 31.124 fora, numa leitura comparativa com o aumento do número de mortes em relação aos cinco anos anteriores; só houve 2868 mortes a mais nos hospitais, enquanto houve mais 5817 em casa ou fora dos cuidados de saúde.
Há ainda a salientar que do total de mortes nestes oito meses, até ontem, domingo 15 de novembro, embora os dados do INE sejam só até ao dia 1, apenas 3381 é que têm como causa de morte covid-19, "uma ínfima parte da totalidade de mortes", comenta o médico do Hospital São João.
Quais as doenças que estão a matar mais os portugueses? Serão as doenças do coração? As neoplásicas? Os acidentes de viação? A resposta não é simples, mas há uma que é excluída de imediato pelo médico do Porto: "Há muito menos trauma provocado por acidentes de viação, e que em outros anos se reflete num número significativo de mortes."
Segundo o médico do Hospital São João, "desde março que houve uma redução no número de mortes por trauma, devido a acidentes de viação. Notou-se uma ligeira subida, mas nada comparado com o habitual, entre julho e agosto, nos meses em que desconfinámos e as pessoas voltaram à estrada para irem de férias. Agora voltou a diminuir". Aliás, "a maioria do trauma que tem chegado às nossas urgências tem a ver com quedas, sobretudo de idosos em casa e que depois acabam por ter complicações graves", pormenoriza.
"Maior causa de morte foi não terem ido aos cuidados de saúde"
Jorge Almeida não tem dúvidas de que a maior causa de morte durante este tempo de pandemia foi "as pessoas não terem procurado os cuidados de saúde", sublinhando: "Não porque não houvesse capacidade de resposta por parte das unidades de saúde, mas porque tinham medo da covid-19, de serem infetadas, e deixaram-se ficar em casa, deixaram agravar o seu estado de saúde ao não procurarem cuidados."
Questionada pelo DN, Direção-Geral da Saúde (DGS), à qual compete a codificação das causas de morte dos portugueses anualmente, recusou fazer avançar com qualquer tipo de informação, respondendo apenas haver "um grupo de técnicos a trabalhar nas causas de morte, mas a codificação das causas de morte não estará completa antes do final do ano".
Jorge Almeida - que chefia um
serviço com 261 camas, que agora com a covid-19 chega a ultrapassar as 300, já
que tem 209 no polo do Porto, 32 no polo de Valongo, 11 na unidade de cuidados
intensivos intermédios, nove na unidade de AVC e mais
Explicando: "Quando as doenças crónicas chegam a nós completamente descompensadas, já não temos grande margem de atuação. Nos primeiros meses da pandemia chegámos a ter só 20% a 30% de ocupação de camas no serviço, ou seja, só 20% a 30% dos doentes não covid é que estavam a procurar os nossos cuidados, quando a taxa de ocupação normal é de 98% a 100%."
No seu serviço esta situação deixou uma imagem que diz ter sido "muito impactante" e que teve a ver com "o aumento significativo de doenças neoplásicas num estádio muito avançado e já com hipóteses diminutas de tratamento". O médico reconhece que é uma realidade local, pode não espelhar a realidade do resto do país, neste momento não há dados oficiais que comprovem ter havido um maior número de mortes por cancro, mas no seu serviço "foi uma imagem que nos marcou", desabafa. " Falharam os sinais de alerta para estas pessoas, quanto às outras causas de morte não nos espantou. Temos uma mortalidade no serviço da ordem dos 8,9% ou 10% que não aumentou nestes meses e que as causas de morte são muito semelhantes ao que registámos em anos anteriores ", afirma.
O médico reafirma que "os cuidados não foram negados, os serviços estavam abertos e tínhamos capacidade para os tratar nessa altura, mais do que agora, em que estamos com muito mais dificuldade nas respostas, mas não vieram, e isto é absurdo".
Jorge Almeida refere que o grande pico de mortalidade a que assistiu no seu serviço foi em junho e julho deste ano, que provavelmente coincidiu com os "momentos de calor inusitado, o que é normal, porque as pessoas com doenças crónicas tendem a piorar em duas circunstâncias de extremo calor e de frio, quer um quer outro são mecanismos diferentes, mas semelhantes ao mesmo tempo, porque obrigam o corpo a funcionar como uma atividade maior que já não tem".
No entanto, o diretor de serviço diz que numa situação destas não culpa o doente que não procurou os cuidados de saúde. "Nunca culpo o doente, a culpa do doente é a culpa de todos nós. Muitos dos doentes não poderiam ter chegado aos serviços sozinhos, teriam de ser trazidos por terceiros, e não foram."
Explica ainda que "há sempre uma causa de morte com maior prevalência e que está ligada às doenças respiratórias nas alturas sazonais, mas isso nem se está a observar muito neste ano, tivemos uma primavera suave, também não muito calor no verão, e o frio ainda não está a ser intenso. O que há também são as causas de morte por descompensação das doenças crónicas e cardiovasculares."
Maior aumento de mortes ocorreu na região Norte
De acordo com os dados do INE, o maior acréscimo de óbitos durante estes oito meses ocorreu na região Norte, com exceção da última semana de junho, das primeiras de julho, das últimas de setembro e primeira de outubro, em que foi superior na Área Metropolitana de Lisboa. O médico do Hospital São João confirma que o "impacto maior de óbitos no seu hospital foi sentido até junho, depois a curva atenuou, agora voltou a aumentar".
Contudo, alerta para o facto de continuarmos todos muito focados na realidade da covid-19, que "se traduz numa ínfima parte da mortalidade dos portugueses", quando, "infelizmente, a morte é um condicionalismo do ato médico e da vida e, neste momento, já vamos quase com um total de 80 mil mortes, por covid são umas três mil. Isto significa que é preciso olhar para os outros portugueses".
A experiência acumulada no seu serviço em relação aos anos anteriores revela que a morte anda à volta dos 8% a 10% no seu serviço, sendo certo que "é um dos serviços com menor mortalidade, maioria acima dos 75 anos. Os dados do INE indicam que Portugal está a seguir a tendência europeia em relação à mortalidade, até nas faixas etárias em que mais de 70% dos óbitos foram de pessoas com idades iguais ou superiores a 75 anos, mais mulheres do que homens, respetivamente 38.987 e 38.262, o que dá um aumento de 4953 de mortes no sexo feminino e de 3732 no sexo masculino.
Para um médico, um doente é um doente, "não sou um herói, sou médico", dizendo esperar estar enganado, pois sabe que "vai ser difícil manter a resposta aos doentes não covid. O meu hospital preparou-se para isso, estamos a fazer tudo para o manter, tem sido pedido um esforço aos profissionais, mas na primeira fase não estávamos cansados, agora estamos. Mas vamos conseguir, claro que sim."
Ana Mafalda Inácio | Diário de Notícias
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