Pedro Ivo Carvalho* | Jornal de Notícias | opinião
Há dias, numa magnífica entrevista ao jornalista Sérgio Pires, o escritor Álvaro Magalhães dissecou com mestria as peculiaridades da tribo do futebol. Detive-me numa passagem: "Porque é que a gente gosta disso (do futebol)? Porque nos anima. Porque nos dá vida. Vida anímica, irracional, inconsciente. E nós precisamos disso. Falta-nos esse território quase animal. Somos criaturas civilizadas, mas temos também uma zona animal, que alimentamos através do futebol".
Por demasiadas vezes somos confrontados com este dilema: ao futebol tudo é permitido, porque a tribo da bola extravasa a dimensão do razoável, da lógica, e contagia tudo à sua passagem, tornando-se, mais do que inimputável, inexpugnável. Os excessos da festa do campeão Sporting (justíssimo campeão, sublinhe-se) e o deplorável espetáculo que se seguiu atestam bem do ascendente que esta máquina tem sobre o homem, sobretudo o "homo politicus". Houve apelos anódinos, reuniões inconsequentes entre Ministério da Administração Interna, PSP e Câmara de Lisboa para preparar a catarse, mas todos assobiaram para o lado a ver se passava depressa. Seguiu-se uma batalha campal e uma intervenção policial como há muito não víamos, alimentada por uma mole humana sem respeito pelo distanciamento e pelas regras sanitárias. A culpa por um desfecho que era óbvio arrisca-se a morrer solteira, mas mesmo que o costumeiro inquérito de averiguações aponte o dedo nalguma direção (e o mais provável é que seja na direção da PSP, transformada em bode expiatório dos poderes públicos sempre que dá jeito) pouco ou nada acontecerá. Mesmo que o presidente da República tenha puxado as orelhas não se sabe bem a quem, pouco ou nada acontecerá. Mesmo que, daqui a uns dias, aquele estrondoso regresso à normalidade de milhares de adeptos em êxtase se traduza em mais contágios na Grande Lisboa, pouco ou nada acontecerá. Porque o futebol encontra sempre uma atenuante patriótica. Ninguém se demite, ninguém é demitido, nem um sinal de lisura pública que nos console. A impunidade ao ataque em formato 4X3X3. Só os responsáveis que ninguém encontra sabem porque não ficam em causa.
*Diretor-adjunto
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