Afonso Camões* | Diário de Notícias | opinião
Moramos há mais de um ano por dentro de uma palavra maldita que até então nunca tínhamos proferido nem sequer soletrado. Pandemia, da família do grego antigo, significa literalmente que o vírus anda à solta e que o perigo toca a todos. De uma forma ou de outra, todos conhecemos alguém, próximo ou mesmo de família, que foi infetado ou que pereceu, vítima de covid-19. Em Portugal, a mórbida contagem regista já perto de 860 mil casos de infeção e mais de 17 mil mortos, entre os quase 4 milhões em todo o mundo.
Pandemia é a situação que nunca antes vivemos, nem sequer imaginámos. E com ela foi a primeira vez que algo que nem sequer temíamos aconteceu, está a acontecer a muitos milhões, por todo o lado. Nem mesmo em pesadelos encontrámos semelhante sentença: afastados uns dos outros, mascarados, ignorantes e medrosos, resignados à privação, para além de outras bizarrias que agora são norma.
Há coisas que só entendemos quando já passaram. Quinze meses depois daquele 11 de março de 2020 - quando a Organização Mundial da Saúde veio declarar formalmente que o vírus detetado na China era mais do que epidemia, já andava à solta, era pandemia - começamos a habituar-nos. Já moramos nela. E, no entanto, permanece algo de errado no condomínio. Se pandemia toca a todos, ela impacta de forma tão diversa que é abusivo pressupor que o mesmo acontece com todos. O acesso à vacina é um exemplo. Porque não há qualquer justa comparação entre o que acontece com países onde já se generalizou a vacinação e aqueles muitos outros onde nem sequer se lhe conhece o rasto.
Num mundo onde dizer todo mundo é um abuso de linguagem, as vacinas mostram essa diferença cristalina. Os países mais ricos guardam-nas para si, concentram-nas como concentram tudo o resto - riqueza, alimentos, recursos, armas, conhecimento - e essa concentração faz que elas faltem a tantos outros. Em menos de cinco meses de campanhas de vacinação, os Estados Unidos e a Europa usaram quase metade das vacinas que foram administradas no mundo - com um décimo da sua população. E, no entanto, nem os mais abonados podem sentir-se livres dos efeitos do vírus e suas mutações enquanto grande parte da humanidade não for vacinada.
Depois de o Papa ter denunciado o "vírus do individualismo", propondo a suspensão temporária das patentes sobre as vacinas contra a covid-19, é a essa luz que deve ser entendido o apelo subscrito por 230 figuras internacionais, incluindo uma centena de ex-chefes de governo e ex-chefes de Estado, para que as economias mais ricas do mundo ajudem os países mais pobres a acelerar a vacinação. O apelo, em forma de carta dirigida aos chefes dos sete países mais poderosos que por estes dias se juntaram no Reino Unido, pede um compromisso do G7 para assegurar dois terços dos custos globais necessários para vacinar a população mundial e conter a pandemia.
"Ninguém está a salvo da covid-19 até que todos estejam a salvo, em qualquer parte", alertam os signatários, calculando-se que seja preciso investir perto de 55 mil milhões de euros para vencer a doença e recuperar dela as economias. O acesso à vacina é, pois, a chave de ambas ou, como o próprio Fundo Monetário Internacional vem pontuar, "é o melhor investimento público da história".
Ao apelo, porém, o G7 disse nada - e nós a deixarmos o clamor de "Vacinas para todos!" cair em saco roto. São, certamente, os efeitos secundários da doença: que, além de frágeis, nos tornaram ainda mais egoístas, mais resignados, mais insignificantes. Mas para essa pandemia, que se saiba, ainda não há vacina.
*Jornalista
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