Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Cada pessoa é livre de escolher os heróis que quiser. Cada um tem a liberdade de poder optar entre seguir o exemplo, adorar, apurar os pormenores da História, acender velinhas a quem entender. Mas a um país, exige-se uniformidade.
Ao Estado, exige-se um pingo de coerência, um denominador comum que nos faça acreditar que as decisões não são tomadas de forma arbitrária, consoante os intérpretes do poder-no-poder, à deriva das marés e dos contextos. Ao Estado, às suas honras, exige-se a determinação de não ceder ao momento, ao politicamente correcto, que não se coloque de joelhos ao sabor de uma pretensa maioria mansa ou de um falso "pleno", por ser mais inócuo ou mais "agradável", essa palavra poluída por nela caber tudo o que priva sem sabor.
Perante a morte do estratega e herói operacional do 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho, o Estado português ficou de cócoras. Aninhado e pequenino, cheio de medo do embate com o reflexo de um homem dual, controverso, mas incontornável na história de liberdade que o país contará, se quiser olhar-se fiel ao espelho, sem distorção. Perante a partida de Otelo, Rebelo de Sousa e António Costa usaram a estratégia de meias-tintas-bolor de Marcelo, esse mesmo, o outro, o do passado. Foi um Estado, novo. Luto nacional? Impensável, nenhum outro capitão de Abril teve semelhante honraria. Só o facto de a morte de um capitão de Abril nunca ter merecido essa honra de Estado já deveria encher de luto o luto nacional.
Mas, depois, o contraste. Se Otelo não estivesse envolvido nas FP-25 - como infelizmente e à sua medida esteve -, é evidente que o luto nacional teria sido decretado. A sua contribuição para o 25 de Abril, de toda a forma, faria a síntese do Movimento das Forças Armadas que, naquela madrugada, plantou Liberdade. Sendo essa a razão da inércia de Estado (e não outra, como a da hipócrita razão do "precedente"), ficamos democraticamente sobressaltados sabendo que nada obstou a que se decretasse luto nacional na morte de Spínola, responsável pelo MDLP e pelos seus múltiplos atentados terroristas. Há um luto para a extrema-direita que não chega à extrema-esquerda, essa que em tempos foi de Otelo, mesmo sendo ele que pelo 25 de Abril nos trouxe aqui, à possibilidade das palavras e do contraditório. Algo que Spínola sempre desdenhou.
Para um país que condecorou PIDES, nada a acrescentar. Talvez por isso alguns aleguem demência. Talvez seja essa a razão que leve o alzheimer a galopar imparável no tempo determinado pelo fatalismo, enquanto se exercita o francês na Sardenha para que nenhum português desconfie. Talvez por isso, muitos continuem a considerar possível manter um Estado de excepção aparentado de um Estado de gozo, onde se dá uma garagem por obras de arte ou palheiro por acções. A Justiça ainda tem um longo caminho a fazer pelo Estado de direito quando ele é desigual. Seja em luto ou por demência, há todo um país que não esquece.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista
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