terça-feira, 17 de agosto de 2021

Escuridões – assim vamos nós e o mundo

Bom dia este é o seu Expresso Curto

De volta à escuridão

Raquel Moleiro | Expresso

Bom dia.

Quão terrível tem de ser o futuro de um país para que alguém – tantos milhares – prefira fugir dali agarrado à roda de um avião em andamento, passe os filhos por muros de arame farpado e os coloque na pista do aeroporto na esperança de que o aparelho não parta sem eles?

Quão grande tem de ser o medo de perseguição e violência para que mulheres instruídas se apressem a destruir todos os diplomas conquistados, todos os registos da sua educação e independência, na esperança de que a ignorância fingida as salve da barbárie?

Acabou-se a profissão, o estudo, as saídas desacompanhadas, a música, o poder de escolha, a autodeterminação sexual, os direitos mais básicos. Nas lojas de Cabul esgotam-se as burqas, os cartazes publicitários mais sedutores são destruidos preventivamente, a liberdade esconde-se como pode do fanatismo que chegou.

Os talibãs controlam novamente o Afeganistão e com eles voltou o obscurantismo. Multiplicam-se os relatos de casamentos forçados e de meninas tornadas escravas sexuais. A mulher volta a ser coisa. Na televisão só já surgem homens, nas ruas também. Polícias, juízas, jornalistas e ativistas dos direitos humanos anunciam a morte antecipada nas redes sociais. Dizem que não vão sobreviver. Longe vão os dias de Soraya Tarzi, a rainha feminista do Afeganistão.

Há um país inteiro a tentar entrar no aeroporto internacional Hamid Karzai, na capital, sob controlo das forças militares norte-americanas e dedicado em exclusivo ao esforço internacional de repatriamento dos cidadãos estrangeiros e funcionários afegãos (tradutores, motoristas…) e suas famílias. Um emocionado Ben Wallace, secretário da Defesa britânico e militar, já admitiu, porém, que não vai ser possível salvar todos.

Depois da suspensão de voos durante algumas horas, por questões de segurança, a ponte aérea foi reativada ontem à noite. A fotografia, cedida pelo Pentágono, do interior de um avião militar de carga completamente lotado, com 640 pessoas a bordo, todos sentados no chão, lembra os barcos de migrantes do Mediterrâneo – há o mesmo medo em todos os rostos, só falta o mar.

Os talibãs controlam os acessos da população ao aeroporto. Salva-se quem já lá está, não entra mais ninguém. Dos 16 portugueses que se encontravam no país, doze conseguiram partir e quatro aguardam no interior da gare por vagas num voo militar britânico. Para os restantes cidadãos, sobram as fronteiras terrestres como rota de fuga, alimentando uma nova vaga de refugiados, que já ninguém acredita ser possível travar, em direção à Europa e aos países vizinhos. Portugal já se disponibilizou para receber 243 funcionários afegãos (e as suas famílias) que colaboraram com as forças nacionais que estiveram em missão em Cabul.

Alvo de críticas pela recente retirada das tropas americanas do país, Joe Biden antecipou o fim das férias em Camp David e veio a público defender a decisão, apontando o dedo aos líderes políticos do Afeganistão, que desistiram do país e fugiram. “As tropas americanas não podem e não devem lutar numa guerra e morrer numa guerra que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si próprias”, reagiu o presidente dos EUA. Aos talibãs deixou também um recado: qualquer ataque durante o processo de evacuação terá uma “resposta rápida e poderosa”, com “força devastadora, se necessário”.

Hoje há uma reunião extraordinária dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27, por videoconferência, convocada pelo Alto Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa para "uma primeira avaliação" da situação.

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OUTRAS NOTÍCIAS

Em Castro Marim, na freguesia de Odeleite, fez-se noite antes do tempo, com a densidade do fumo a ganhar ao brilho do sol. O incêndio dado por controlado segunda-feira de manhã alimentou-se de vento, agigantou-se e alastrou aos concelhos vizinhos de Vila Real de Santo António e Tavira, avançando para sul a 200 hectares por hora e obrigando à retirada de 58 moradores. Hoje o dia amanheceu ainda ativo em duas frentes, com mais de 570 bombeiros no combate, numa terça-feira em que as temperaturas se mantêm elevadas. A situação de alerta estende-se até amanhã ao fim do dia em 14 distritos do continente: Beja, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Portalegre, Santarém, Setúbal, Vila Real e Viseu.

Os fogos também não dão descanso na Grécia, com as chamas a voltar aos arredores de Atenas e a obrigar à evacuação de cinco aldeias. Em Israel, é a cidade de Jerusalém que se encontra rodeada por vários incêndios, que nem 10 meios aéreos e 75 equipas no terreno conseguem dominar. Em Espanha, mais de mil pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas na zona da Ávila, em Leão e Castela, a pouco mais de 100km de Madrid.

No que à covid-19 diz respeito, arranca hoje na Santa Casa da Misericórdia de Vila do Bispo, em Sagres, o estudo serológico nos lares de 3ª Idade, que vai analisar a imunidade dos idosos mais vulneráveis já vacinados e compará-la com a dos funcionários a quem foi administrada a vacina na mesma altura, em instituições do Algarve e Alentejo.

Os EUA preparam-se para anunciar a administração de uma terceira dose da vacina “para a maioria dos americanos”, priorizando residentes e funcionários de lares, oito meses depois da última inoculação.

Portugal é o 4.º Estado-membro da UE com a campanha de vacinação mais avançada: 76% da população já tem pelo menos uma dose da vacina e com o processo completo estão 64,7% dos residentes. Segundo a task force, o auto-agendamento da vacinação contra a covid-19 para menores entre os 12 e os 17 realiza-se entre esta quinta-feira e sábado e a inoculação destes jovens será realizada no fim-de-semana de 28 e 29 de agosto.

Governo alarga “IVAucher” às lojas de discos e editoras de livros. O programa de incentivos fiscais “IVAucher” vai passar a ser aplicado às compras nas lojas de discos e nas editoras de livros. A alteração, feita pelo Governo, surge a meio da iniciativa e, por isso, segundo o jornal "Público", terá efeitos retroativos para que os clientes que pediram fatura com número de contribuinte possam usufruir do IVA aí suportado.

Hoje é o último dia de férias dos 279 funcionários empresa têxtil Dielmar, mas amanhã nenhum se vai apresentar ao trabalho na fábrica de Alcains. Depois da insolvência apresentada no início do mês de agosto, ainda se aguarda por compradores que assegurem a manutenção dos postos de trabalhos. Há cinco interessados.

Qualidade das praias portuguesas diminuiu em 2021, aponta associação ambientalista Zero. Até agora, 20 praias já estiveram interditas e 45 com banho desaconselhado ou proibido.

Termina esta terça-feira a discussão pública das alterações à Lei do Tabaco. No projeto de portaria, o Governo prevê a proibição de fumar em restaurantes e bares com menos de 100 m2 e em espaços maiores as salas de fumo não podem ultrapassar 20% da área e têm de ser separadas por uma antecâmara ventilada e portas de correr. A entrada em vigor está prevista para o início de 2022.

No Haiti, o serviço de proteção civil reviu em alta o número de vítimas do sismo de sábado no país, para 1419 mortos e seis mil feridos. A situação pode agravar-se ainda mais com a depressão tropical Grace, que chegou esta madrugada ao país, com fortes ventos, chuvas intensas, deslizamentos de terras e inundações repentinas.

Bob Dylan está a ser processado num tribunal de Nova Iorque, acusado de agredir sexualmente uma menor há quase 60 anos, em 1965. A ação apresentada na sexta-feira pela queixosa, identificada apenas pelas iniciais J.C., alega que o cantor, atualmente com 80 anos, a agrediu quando tinha 12 anos, durante um período de seis semanas. Segundo a queixa, o cantor “abusou do seu estatuto de músico para fornecer álcool e drogas a J.C. e para a agredir sexualmente em várias ocasiões”.

FRASES

"A comunidade internacional deve unir-se para se assegurar que o Afeganistão nunca mais será utilizado como uma plataforma ou um refúgio para organizações terroristas".
António Guterres, secretário-geral da ONU, durante a reunião de emergência do Conselho de Segurança realizada esta segunda-feira

"Estamos a receber informações assustadoras que dão conta de violações graves dos direitos humanos em todo o país"
Idem

"O Afeganistão não pode tornar-se, de novo, um santuário de movimentos terroristas. Isso deve ser claro para todos, claro para a comunidade internacional, para a NATO, para a União Europeia e esperamos que seja também claro que as novas autoridades afegãs quando elas estiverem constituídas"
Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros

"Estou extremamente preocupada com a situação atual do Afeganistão, especialmente com a segurança das mulheres e das raparigas. Consegui falar com algumas ativistas que estão lá e elas têm muitas dúvidas sobre como será a sua vida"
Malala Yousafzai, prémio nobel da Paz, baleada na cabeça aos onze anos pelos talibãs

"Nunca me senti tão indefesa, desesperada, desiludida, pobre e miserável em toda a minha vida inteira. Tudo o que conseguimos em 20 anos vai desaparecer numa questão de dias"
Jovem afegã

"Que va a ser de ellas?"
Pergunta o jornal espanhol Marca em manchete, trazendo o tema do Afeganistão para a primeira página de um desportivo

O QUE ANDO A LER

Berta Isla,
de Javier Marías

Não me lembro da última vez que tinha entrado na livraria Lello, no Porto. Devia ser uma miúda ainda, porque as memórias diziam-me que tudo era enorme, as estantes com prateleiras a perder de vista, a escadaria monumental. Tenho a certeza de que não se pagava para entrar, nem era preciso reservar o ingresso num site da Internet ou esperar numa longa fila multilingue apesar de ter já bilhete. Mas a miúda mais velha queria ir e não se diz que não quando uma adolescente quer comprar livros.

Ela não comprou, comprei eu, nada contrariada mas um pouco compelida ao consumo para poder abater o valor das entradas. E não foi fácil. Porque com edições em tantas línguas, e outras editadas propositadamente para os visitantes estrangeiros, não abundam novidades nem variedade. Veio a Berta Isla, publicado no fim de 2018 e ao qual queria deitar as mãos desde então.

Depois de um quase pré-afogamento à beira da piscina das férias, o calhamaço de 496 páginas ganhou pintas de humidade e ondas de água seca, mas sem danos interiores. Estreei-o esta semana, a saber apenas que lá dentro vive a história do amor imperfeito de Berta e Tomás, ele espião britânico e ela não, ela apenas a mulher que não pode fazer perguntas sobre o homem com quem casou. E mais não digo, porque mais não sei.

Tenha uma boa semana. E acompanhe a atualidade no Expresso, Tribuna e Blitz

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