quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Portugal | Recuperações

Agostinho Lopes *

A direita portuguesa faz cada vez mais abertamente a defesa e o elogio do salazarismo. Um modelo económico que produzia, dizem, resultados superiores às duas últimas décadas. Um modelo cuja correspondência com o programa da troika é bem visível. Quereriam separar em diferentes compartimentos o regime fascista. Mas os seus traços são indissociáveis: tratou-se da «ditadura terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários».

Andam a direita e as forças do grande capital muito preocupadas. Há um enorme bolo de dinheiros públicos a distribuir. «Patrões alarmados com a “legalização” de falsos recibos verdes» (Expresso, 02JUL21 ). O «comunismo» está no poder! . Logo…

Enquanto não recuperam a ditadura, que venha pelo menos o «modelo económico».

Assim sendo, e enquanto não chega o «líder político autoritário» para o qual os portugueses estão «mais disponíveis», segundo o Expresso, vamos pelo menos recuperar o «modelo económico» da ditadura fascista.

O Congresso do MEL, juntando a direita do CDS de Portas ao PSD de Rio e Passos Coelho, passando por importantes franjas do PS, de liberais da nova vaga aos do neoliberalismo requentado, bem salpicado pela extrema-direita do Chega e Companhia, foi um notável conclave!.

Teve o momento zen com a intervenção do académico Nuno Palma, que conclui com um balanço positivo da ditadura em matéria de convergência com a Europa no PIB/capita, no combate ao analfabetismo e à mortalidade infantil , em contraposição aos pobres e atribulados 15 anos da 1.ª República e às duas últimas décadas do regime democrático de Abril. Vejam lá, proclama o académico, «se até um regime tão iníquo e condenável como o Estado Novo conseguiu gerar convergência e aumentos de bem-estar para a população algo de grave tem de estar a falhar com o comportamento das instituições e elites políticas que nos governam».

Recuperemos, pois, o «modelo económico» da ditadura fascista!

Não é a primeira vez, e não será a última, que assistiremos à ressurgência desta tese. Ela esteve presente aquando do Pacto de Agressão da troika. Mas de facto tratou-se então de configurar uma política económica inspirada e modelada pela teoria e prática de Salazar.

O acerto das contas públicas (doa a quem doer, excepto se beliscar o grande capital nacional e estrangeiro) e o favorecimento a credores externos à custa do factor trabalho e da generalidade das camadas laboriosas. Como instrumentos, a alteração da legislação laboral , afectando drasticamente a relação de forças capital/trabalho, pesados impostos sobre o trabalho e a população, a liquidação em saldo por privatizações, concessões e dádivas (caso das golden shares) de importante património público, salvação do capital financeiro e grupos económicos monopolistas à custa do erário público.

Tudo isto tinha feito Salazar.

Com votos piedosos sublinham a sua aversão à ditadura no plano político e não se duvida da boa fé de alguns! Mas a sua análise mistura alhos com bugalhos, homogeneíza contextos históricos e geopolíticos extremamente diversificados, alisa períodos históricos de séculos, confundindo feudalismo com capitalismo, compara o incomparável – a estatística económica e a econometria não podem validar tudo! «Fatiam» a ditadura fascista em bocados saborosos e outros duros de roer para justificar o que pretendem: uma intervenção na situação política e no regime democrático de Portugal, hoje. E no sentido da regressão económica, social, cultural, política, na recuperação do pior desse passado.


Valorizando umas fatias, criticando outras e ocultando outras ainda. Como se fosse possível afastar da análise e da avaliação e validação das políticas económicas da ditadura terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários (como a caracterizou com todo o rigor o PCP), a fatia da repressão laboral e do «sindicalismo» tutelado e administrado, a fatia dos meios do Estado ao serviço dos grupos económicos , a fatia da exploração dos povos e recursos coloniais. Como sintetizou Álvaro Cunhal, «os verdadeiros senhores de Portugal eram os Melos, os Espíritos Santos, os Champalimaud, formando uma autêntica quadrilha de grandes capitalistas e proprietários, ao serviço dos quais, como seus instrumentos, estavam o Governo, o aparelho repressivo, os meios de comunicação social e todos os recursos do País. Os monopolista e latifundiários são tão responsáveis pela repressão e a guerra, pelas torturas e assassínios, pelas condenações, pelos massacres em África, como os executantes da sua política.» (In A Revolução Portuguesa – o Passado e o Futuro).
Indo em socorro, como sempre, da reacção, o inefável Barreto (Público 03JUL21) não pode deixar de reconhecer que as «proezas económicas e sociais do regime salazarista são reais umas, duvidosas outras e inexistentes outras ainda». Mas não deixa de dizer que na década de 60, o «crescimento económico foi real, com a ajuda da reorientação europeia da economia, do comércio externo, do investimento estrangeiro da emigração, dos baixos salários atraentes para os investidores, do turismo, dos rendimentos coloniais e de outros factores. Mais de um milhão e meio de portugueses emigraram, o que aliviou a questão social, diminuiu o subemprego e trouxe enormes recursos por via das remessas. Foi uma «época de ouro» para a economia portuguesa. Até a guerra colonial, fragilidade maior de regime, contribuiu para o crescimento económico.»

Seria muito interessante que aqueles que destacam e valorizam as políticas e o «modelo» económicos de Salazar e Caetano nos explicassem, pelo menos, como retiram da equação do «êxito» económico da Ditadura a emigração de mais de 1,5 milhões, salários baixos, exploração e guerras coloniais, e o próprio regime repressivo e ditatorial, que tornavam possíveis aqueles «factores de progresso»! E escreve-se pelo menos, porque sabemos do seu acordo com a intervenção e o apoio do capital estrangeiro e do imperialismo ao regime fascista.

O PIB per capita, mesmo em Paridades de Poder de Compra, é um importante indicador económico, mas não serve nem chega para tal «lavagem» do fascismo.
Não deixa, por outro lado, de ser muito interessante que o académico Nuno Palma, como quase todos os que estiveram no Congresso do MEL, e de muitos outros que lá não estiveram, se atrevam a usar como termo (negativo) de comparação, mesmo com a Ditadura fascista, a evolução económica e social do país nas primeiras duas décadas do século XXI! Os «comparadores», ou seja, os apologistas de sempre (e não apenas a partir de 2000) das políticas de direita do PS, PSD e CDS que conduziram aos resultados de que agora se lamentam tão amargamente.

Toda esta gente «esquece» que esses são os anos pós-adesão ao euro, arrastando as imposições do PEC (dito Pacto de Estabilidade e Crescimento) e os seus condicionamentos e restrições na política orçamental, de onde decorreu uma brutal queda do investimento público. São os anos da Estratégia de Lisboa, negociada durante uma Presidência Portuguesa da UE, com o seu cortejo de privatizações e liberalizações (e suas sequelas). E 10 anos depois de estagnação económica, em 2011 o Pacto de Agressão da troika com tudo o que atrás se refere.

Um filme na RTP2 para comemorar os 150 anos de Alfredo da Silva, consolidar o «modelo económico do fascismo» e atacar o 25 de Abril

Na mesma onda navegam os que promoveram as comemorações dos 150 anos de Alfredo da Silva. Comemorações onde é peça central o filme laudatório de Alfredo da Silva, passado no dia 29JUN21 na RTP2. Operação que, para lá do seu objecto próprio – a recuperação simbólica pelos seus herdeiros da imagem de uma «dinastia familiar ao serviço do país» –, tem uma evidente e múltipla utilidade ideológica. Secunda e consolida aquela recuperação do «modelo económico» da Ditadura Fascista e da sua validade para os dias que correm . Serve de cortina de fumo ao escândalo de gestões e falências ruinosas e fraudulentas de grandes empresários portugueses – Alfredo da Silva, um capitalista «modelo» – para tapar a vergonha dos empresários Comendadores e Honoris Causa dos dias de hoje.

Reforça a linha de ataque ao 25 de Abril e a uma das suas principais conquistas – as nacionalizações e o papel dos trabalhadores na salvação da economia nacional face à sua sabotagem por monopolistas e latifundiários!

O filme conjuga numa síntese quase perfeita de mistificações e mentiras: a construção do Grupo CUF e o período histórico da 1.ª República; a ocultação do papel do Grupo e de Alfredo da Silva no golpe do 28 de Maio e consolidação e duração da Ditadura; a fraude sobre a situação e evolução do Grupo e de algumas das suas mais importantes unidades em vésperas e logo após o 25 de Abril, e em particular rotundas falsidades em torno das nacionalizações e privatizações que lhe sucederam. Nada da cumplicidade dos Melos com a guerra colonial e aproveitamento económico do Grupo da exploração colonial teve direito a imagens.

O filme reproduz o que a ditadura fixou e explorou até à medula sobre o período histórico da 1.a República, a imagem de um tempo de permanente instabilidade política e social, de anarquia, bombas e greves, que naturalmente exigia e justificava a ditadura, a repressão policial e o fim das liberdades e do regime democrático. No guião do filme, durante o fascismo não cabem lutas nem greves nas empresas do Grupo CUF. Não existem manifestações nem repressão no Barreiro. Não mereceu visibilidade a existência de um esquadrão de cavalaria da GNR no interior do perímetro do complexo industrial, bem como o evidente aparelho da PIDE/DGS disseminado nas suas empresas. Não houve trabalhadores da CUF perseguidos nem presos por actividades políticas e sindicais e depois despedidos pelos Melos.

Mas provavelmente o mais chocante são as imagens do ferro-velho e teias de aranha, de ruína e vazio nas e das instalações do complexo industrial do Barreiro e de outras unidades noutras localidades como resultado-imagem das nacionalizações, assim escondendo, mascarando e ocultando a sabotagem feita antes e depois das nacionalizações. Caso dos investimentos e das reestruturações que eram necessários e foram reclamados e propostos pelos trabalhadores e que foram sucessivamente boicotados após as nacionalizações. Foi feito tudo o que era preciso para inviabilizar economicamente as suas empresas e conduzir/justificar o desmembramento e privatização do complexo industrial e do Grupo CUF. «Esqueceu» o filme a periclitante situação económico-financeira do Grupo, descapitalizado às vésperas do 25 de Abril , sujeito a uma gestão apostada nos jogos e especulação financeira que então dominava a elite empresarial do país. Toda a parte final do filme é um libelo contra Abril e as suas conquistas, cavalgando as mentiras e atoardas que dinamizaram e suportaram diversos contragolpes que a reacção do grande capital, caso dos herdeiros do Grupo CUF, e o fascismo foram colocando nos caminhos abertos, de desenvolvimento e progresso, pela madrugada libertadora de Abril.

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A direita já não hesita em repetir Salazar. Tudo o que se lhe opõe e não corresponde aos seus interesses é maquinação comunista. Entre outros: Mira Amaral: «Portugal, com a ala social-democrata do PS marginalizada, e a hegemonia da esquerda marxista no Estado e na sociedade (…)»; Luís Todo Bom: «um Governo socialista, de matriz comunista, onde a extrema esquerda dita as regras do seu posicionamento estratégico (…)» (Expresso, 04JUN21).

O académico Palma não tem registo do «toque a anjinhos» dos sinos de campanários e igrejas que com uma regularidade arrepiante se ouviam nas aldeias do nosso país rural, durante décadas da ditadura.

Dirão alguns que falta a armadura institucional da Câmara Corporativa. De facto é o que pretendem as confederações patronais e Francisco de Assis, fazendo da Comissão Permanente da Concertação Social o espaço deliberativo da legislação laboral, substituindo a Assembleia da República.

O filme passado na RTP2 sobre Alfredo da Silva dá conta da intervenção directa, pessoal, de Salazar, isto é do Estado fascista, na operação financeira de salvação do Banco Totta e Açores para garantir a permanência no Grupo CUF de um grande banco.

Por exemplo, a articulação dos conselhos de administração de grandes empresas com a PIDE-DGS no controlo de trabalhadores e reivindicações laborais.

Estas referências não podem iludir que nos últimos anos da Ditadura se verificaram o agravamento e deterioração da situação económica geral do país, maiores défices das balanças comercial e de pagamentos e degradação das contas do Estado (que tinham sido a coroa de glória de Salazar), com crescentes défices orçamentais e dívida pública.

É muito interessante anotar como esta recuperação do «modelo económico» do fascismo e dos seus elementos nucleares e estruturantes – grandes grupos monopolistas e grandes empresas, o papel significativo do capital estrangeiro, a intervenção (dos dinheiros) do Estado – converge e consolida com as propostas actuais de políticas económicas da direita para vencer a estagnação das duas últimas décadas.

«Num país tão desconfiado das empresas e da iniciativa privada e tão martirizado por maus exemplos recentes, o caso de Alfredo da Silva obriga-nos a olhar para os empresários e as empresas como forças de progresso.» Miguel Pina e Cunha, Professor da Cátedra da Fundação Amélia de Mello, Nova SBE, Expresso, 09JUL21.
Em 1965 é ensaiado um peditório para a Guerra Colonial junto dos trabalhadores das empresas do Grupo, que estes recusaram.

A CUF tinha participações em várias sociedades coloniais e «é a senhora das oleaginosas da Guiné, do cobre de Angola (minas de Mavoio), de roças em S. Tomé», Álvaro Cunhal, in Rumo à Vitória.

«Entretanto, dado o baixo volume de investimentos realizado, as fábricas envelheciam e não eram substituídas, a produção baixava, os custos industriais tornavam-se exagerados e os negócios tinham cada vez menor rentabilidade. A insuficiência dos fundos gerados pela actividade comercial e industrial da CUF era coberta pelas transacções de edifícios e terrenos, pela transferência de valores entre empresas, pela especulação bolsista que atingiu 2 milhões e 400 mil contos entre 1972 e 1974», assim se avaliava na intervenção da Célula da CUF na Conferência Nacional do PCP «A Saída da Crise», 1977.

Em 1970, 22% do investimento bruto da CUF estava em participações financeiras. Em 1974 as aplicações financeiras correspondiam a 47% do seu investimento total.

*Publicado em O Diário.info

Fonte: https://www.avante.pt/pt/2487/temas/164870/Recupera%C3%A7%C3%B5es.htm?tpl=179

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