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Reunião entre ultraconservadores mexicanos e do Vox espanhol aponta para uma articulação internacional contra o governo do país. Sob o espantalho de “conter comunismo”, investem para arregimentar empresariado, judiciário e mídia
Francesco Manetto, no El País Brasil | em Outras Palavras
Uma reunião, uma foto, e abriu-se a caixa de Pandora. O líder do partido ultradireitista espanhol Vox, Santiago Abascal, aterrissou há 10 dias na Cidade do México, onde se reuniu com senadores do conservador Partido Ação Nacional (PAN) e inclusive com dois políticos do centrista Partido Revolucionário Institucional (PRI). O encontro desatou um vendaval nas duas agremiações, que fazem oposição ao Governo centro-esquerdista de Andrés Manuel López Obrador. O PAN afastou o operador político que organizou o ato, e o PRI se desvinculou completamente de qualquer acordo com o Vox. Abascal chegou procurando adesões à chamada Carta de Madri, uma espécie de manifesto “em defesa da liberdade na esfera ibérica”. Ou seja, o germe de uma guerra cultural, uma cruzada que ele pretende travar na região agitando o espantalho de uma suposta ameaça comunista.
O PAN é uma organização conservadora que abriga algumas vozes e setores radicais, mas em seu conjunto os especialistas não o consideram comparável ao Vox, fundado em 2013 justamente como cisão de uma força neoliberal com ideário mais amplo, o Partido Popular, com o qual depois, entretanto, viria a pactuar. A pergunta é se há no México de López Obrador espaço eleitoral para a extrema direita e para um discurso autoritário que vá além de manifestações pontuais. E quem pode encarnar essa retórica, que quase sempre anda de mãos dadas com o fanatismo religioso e o ultracatolicismo. Francisco Abundis, diretor da consultoria de análise de opinião Parametría, vê o país resistente a essa tendência. “Política e religião não costumam se misturar. De saída, o mexicano não gosta de juntar as duas coisas”, afirma. Além disso, os dados indicam que, mesmo no caso de cidadãos crentes e praticantes, o percentual de eleitores disposto a seguir as instruções de um sacerdote é reduzido. Essa predisposição é menor, ao menos entre os católicos, aponta Abundis.
Uma frente para frear AMLO
Isso não significa que a extrema direita não exista na sociedade mexicana. “Claro que existe, e não é apenas uma expressão de viés político, mas está exposta nos aspecto político, econômico e social. Também há um quarto item que é o intelectual”, argumenta Luis Ángel Hurtado, consultor e acadêmico na faculdade de Ciências Políticas da Universidade Nacional Autônoma do México. “O movimento mais visível na atualidade, embora não seja o único, é o FRENA”. Essa é a sigla (que também significa “freia”, em espanhol) adotada pela Frente Nacional Anti-AMLO, que ganhou protagonismo há um ano ao improvisar um acampamento no Zócalo, a principal praça da Cidade do México, para protestar contra o Governo.
Os líderes do FRENA se definem como um “movimento popular e pacífico que deseja agir já para tirar” López Obrador do cargo. Para isso, dizem contar com “ferramentas jurídicas, de pressão social e da mídia”, e seu líder, Gilberto Lozano, empresário e ex-presidente do clube Rayados, do Monterrey, está envolvido numa campanha pela revogação do mandato do presidente. Adotando o mesmo discurso do Vox, afirma estar em andamento um plano patrocinado pelo Foro de São Paulo para implantar o comunismo no México, passando pelo controle da população e a redistribuição das riquezas.
Hurtado recorda que essa organização também se enquadra na tradição da ultradireita mexicana, de vínculo religioso em geral e especificamente católico. Ao mesmo tempo, se diferencia por ser um movimento público, ao contrário de sociedades reservadas como Los Tecos (inicialmente vinculados aos jesuítas, até que a ordem se desvinculou devido a um ataque armado), Los Conejos (que tiveram ligação com os salesianos) e El Yunque. “Eram agrupamentos juramentados, e no juramento prometiam guardar segredo. Este elemento na FRENA não é característico. Seu objetivo é que López Obrador renuncie, e se diferencia de outros agrupamentos de ultradireita como a FUA [Frente Universitária Anticomunista] e El Muro, que se expressavam de forma violenta e mais radical. No caso da FRENA não é assim”, prossegue.
Yunque, sinarquistas e conspirações
Há um mesmo fio que une o passado e o presente na história da ultradireita mexicana. Começou há quase um século, na época do presidente esquerdista Lázaro Cárdenas, e depois com Adolfo López Mateos. “É muito interessante ver como sempre aparece a ameaça do comunismo, e tem gente que acredita, embora não seja verdade”, comenta Fernando González, acadêmico da UNAM que há décadas estuda este fenômeno e as consequências do que chama de “catolicismo conspirativo”.
No mapa da extrema direita são importantes duas universidades e duas cidades, Guadalajara e Puebla. Sob o mandato de Cárdenas, funda-se em Jalisco, capital de Guadalajara, a Universidade do Ocidente, que depois passará a se chamar Universidade Autônoma de Guadalajara, o primeiro centro privado do país. Esse, afirma González, foi “um ninho de tecos”, e daí também saem alguns dos fundadores do PAN nesse Estado. Quase 20 anos depois, prossegue, entre 1953 e 1955, funda-se El Yunque (“a bigorna”) em Puebla, pelas mãos de Manuel Díaz Cid, histórico ideólogo da ultradireita, e Ramón Plata Moreno, assassinado em 1979 ao sair da Missa de Natal. Em 1965, recorda o pesquisador para entender o alcance das delirantes aspirações deste movimento, a cúpula da organização realizou uma reunião em que “alegam que o papa Paulo VI é um judeu askenazita e vão declarar a sé vacante”. González observa que “a partir dos anos sessenta, El Yunque já estava na entidade patronal Coparmex, e entre 1977 e 78 decidem se infiltrar no PAN”.
Mas antes de El Yunque, surgiu no Estado de Guanajuato, outra organização nacionalista com posições de extrema direita, a União Nacional Sinarquista (“sinarquia” é o governo de uma elite capacitada). Vinculado a ela havia um sobrenome que —por puro acaso— coincide com o do líder do Vox. Adalberto Abascal, pai de Salvador Abascal, um dos fundadores do sinarquismo, quem por sua vez foi pai de Carlos Abascal, hoje falecido, secretário (ministro) de Trabalho e Governo de Vicente Fox (PAN). Fernando González o situa como dirigente do El Yuque em certo momento.
A estratégia do Vox
As conexões pessoais ou inclusive setoriais não fazem do PAN um partido organicamente de extrema direita. Hurtado considera que se trata de uma “questão midiática, porque o PAN não é de ultradireita, mas há membros que estão jogando para as eleições de 2024 e querem fazer barulho”. “Nos últimos anos temos visto um PAN muito diferente dos partidos de ultradireita que existiram no México, que eram uma ala do movimento sinarquista”. É uma formação ampla, e inclusive López Obrador, nos antípodas ideológicos do PAN, convidou neste domingo o governador de Nayarit, desse partido, a participar da administração federal quando seu mandato acabar.
O EL PAÍS conversou na semana passada com a jornalista e ensaísta norte-americana Anne Applebaum, especialista em organizações ultradireitistas e no declínio das democracias liberais, sobre a estratégia do Vox, que além disso registrou sua marca no México. Para ela, trata-se de um plano de internacionalização. “Estão muito interessados em manter alianças internacionais que ajudem partidos desse tipo a nascerem em outros lugares”, afirma. E isso é especialmente válido numa região que trilhou nos últimos anos o caminho de projetos autodenominados esquerdistas. Mas resta ver, como salienta Francisco Abundis, se alguma figura política terá capacidade de assumir o papel de Santiago Abascal no México com aspirações eleitorais realistas, indo além de uma possível projeção da direita em Estados como Guanajuato, Querétaro ou mesmo Jalisco.
Duas figuras que ganharam importância dentro da extrema direita que idolatra o presidente Jair Bolsonaro no Brasil passaram pelo México nas últimas semanas. O blogueiro Oswaldo Eustáquio e o líder dos caminhoneiros Zé Trovão chegaram a gravar vídeos juntos na capital mexicana. O segundo foi peça central da paralisação feita por motoristas de caminhão na última semana, que desmobilizou após pedido do Governo e prisão do próprio representante. Ambos tiveram pedidos de prisão preventiva expedidos pelo ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news.
Imagem: Acampamento da Frente Nacional Anti-Andrés Manuel López Obrador (FRENA) num importante cruzamento da Cidade do México, em setembro 2020.Nayeli Cruz
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