Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
Nos balanços do ano que se sucedem na comunicação social em todo o mundo elegem-se as personalidades internacionais e nacionais que cada marca considera terem sido as mais importantes ou influentes de 2021.
Não é tradição os media elegerem a personalidade relevante que ao longo do ano tenha sido a mais esquecida, a mais ignorada ou a mais secundarizada no fluxo noticioso dominante.
Seria um escrutínio interessante, seria um belo exercício de autocrítica mas, como não vai acontecer, avanço eu com uma proposta para 2021: Julian Assange.
O australiano, que fundou o WikiLeaks, está acusado pelo governo dos Estados Unidos da América de 17 crimes de espionagem e um de utilização indevida de técnicas informáticas para divulgar milhares de documentos militares e diplomáticos. A pena, em caso de condenação, pode ir até aos 175 anos de prisão.
Esses documentos revelaram em 2010 que as forças militares norte-americanas, em ação no Afeganistão e no Iraque, cometeram, de forma organizada, planeada e sistemática, vários crimes de guerra, à luz do direito internacional, incluindo o de tortura sobre prisioneiros ou o de execução arbitrária de bombardeamentos injustificados de alvos civis, com consequências letais em grande escala.
Ficou famoso o exemplo de um vídeo de um helicóptero a matar 12 pessoas indefesas - incluindo dois jornalistas - numa rua em Bagdade, com o som da tripulação a comentar descontraidamente o morticínio.
Grandes jornais de Espanha, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, que agora o ignoram, ajudaram há 11 anos Julian Assange a publicar essas informações: El País, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e The New York Times sugaram a teta do WikiLeaks enquanto puderam e agora pouco falam do abandono a que ele foi votado.
Perseguido pelo governo norte-americano e pela justiça sueca, Assange solicitou em 2012 asilo na Embaixada do Equador em Londres, onde viveu numa espécie de prisão domiciliária durante sete anos, antes de ser entregue pelos equatorianos aos ingleses que o puseram, em abril de 2019, numa prisão de segurança máxima de Belmarsh, também na capital britânica.
Pelo meio foi desencadeada uma operação de descredibilização da pessoa e do seu trabalho, que se iniciaria em 2010 com a difusão da ideia de que as informações do WikiLeaks punham em causa a vida de operacionais norte-americanos, nomeadamente o de agentes infiltrados no inimigo; que Assange estava ao serviço e era pago pelo governo russo; que omitia informações comprometedoras da Rússia e que era antiocidental. Tudo ainda por comprovar e acusações que não foram feitas aos media que publicaram os conteúdos do WikiLeaks.
A perseguição e a descredibilização aprofundaram-se em 2012: a justiça sueca investigou então Assange por estupro e lançou um mandado de captura internacional que poderia permitir aos Estados Unidos da América efetivar, logo a seguir, a extradição para a América do denunciador dos seus crimes - só o asilo dado na Embaixada do Equador na Inglaterra impediu esse processo.
Esta investigação sueca foi encerrada, sem acusação, em maio de 2019.
A 10 de dezembro passado, ironicamente Dia Internacional dos Direitos Humanos, o Tribunal Superior de Londres decidiu aceitar a extradição de Julian Assange para os Estados Unidos. Há ainda um recurso dessa decisão em apreciação mas, parece certo, ao fim de, na prática, nove anos de cativeiro, Assange acabará por ser julgado por ter revelado uma verdade inconveniente para a potência mais poderosa do planeta.
Um respeitável académico suíço, especialista em direito internacional e que é relator especial das Nações Unidas para as questões da tortura, esteve dois anos a investigar o processo Assange.
Nils Melzer publicou agora um livro (Der Fall Julian Assange - O Julgamento de Julian Assange) em que denuncia com veemência a violação dos direitos processuais cometida no caso Assange por estes países: Grã-Bretanha, Suécia, Estados Unidos da América e Equador.
A dada altura ele escreve o seguinte: "Esta é a história de uma severa arbitrariedade da justiça praticada nas democracias ocidentais que, por outro lado, gostam de se apresentar como Estados-modelo no campo da proteção dos direitos humanos. (...) É a história de um homem que foi um bode expiatório para todos nós, pelo fracasso da nossa sociedade em lidar com a corrupção das autoridades e com os crimes sancionados pelo Estado".
Este professor Nils Melzer arrisca-se a passar um mau bocado...
PS: bom ano de
*Jornalista
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