Na queda de Cabul, há mais que colapso militar e humanitário. Há o declínio de um Ocidente que praticou a epistemologia da ignorância – o desprezo pela sabedoria do outro; a ideia de que, dela, basta conhecer o que sirva para subjugá-la
Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras
A retirada abrupta e caótica dos
EUA do Afeganistão em meados de agosto enche os noticiários de todo o mundo. Os
temas principais variaram, mas os seguintes foram dominantes: humilhação para
os EUA e aliados europeus; repetição da retirada do Vietnã em 1975; missão
cumprida segundo os EUA, missão fracassada segundo os aliados pela voz de
Angela Merkel; a fuga desesperada dos afegãos que colaboraram com os aliados; o
perigo iminente para os direitos das mulheres se a sharia for imposta como
decorre da interpretação do Islã pelos talibã; mais de dois triliões de dólares
gastos numa missão contra os terroristas para, vinte anos mais tarde, eles
entrarem triunfalmente e sem qualquer resistência no palácio presidencial, e
agora já não como terroristas mas como uma força política com a qual os EUA, a
principal força militar no Afeganistão, assinou um acordo em Fevereiro de 2020,
depois de mais de um ano de negociações
Dissimulação da verdade
A expansão marítima europeia do século XV em diante foi legitimada pelo desejo e pela missão de propagar a fé cristã. A Igreja Católica foi uma presença constante e decisiva. Sob a sua égide, o mundo a achar foi dividido entre Portugal e a Espanha, e foi também ela que legitimou a submissão dos índios ao declarar em 1537 (na bula Sublimis Deus do Papa Paulo III) que os índios eram seres humanos com alma e, portanto, seres não só necessitados, mas também capazes de ser evangelizados. Sem pôr em causa a boa fé dos muitos milhares de missionários que participaram nesta missão de salvar os índios para o outro mundo, sabemos bem que o objetivo primordial desta missão era bem mais prático e mundano: a salvação neste mundo dos europeus por via da prosperidade econômica que adviria do acesso às riquezas naturais do chamado Novo Mundo. É, pelo menos, muito duvidoso que a missão evangelizadora tenho sido benéfica para os índios, mas não restam dúvidas de que a missão da pilhagem das riquezas permitiu o desenvolvimento que o mundo eurocêntrico do Atlântico Norte hoje ostenta.
Semelhantemente, segundo as autoridades norte-americanas, os EUA invadiram o Afeganistão para neutralizar o terrorismo de que tão barbaramente tinham sido vítimas com o ataque às Torres Gêmeas em 2001. E porque Osama Bin Laden foi morto, a missão foi cumprida. A verdade é outra. Os terroristas que atacaram as Torres Gémeas eram oriundos de 4 países: quinze eram cidadãos da Arábia Saudita, dois dos Emirados Árabes Unidos, um era libanês e um outro egípcio. Nenhum deles do Afeganistão. Bin Laden, o chefe da Al-Qaida, ele próprio saudita, esteve anos escondido, não neste país, mas no Paquistão e, de fato, bem perto da Academia Militar paquistanesa. O interesse dos EUA em intervir no Afeganistão vinha dos anos 1990 e foi então justificado com a necessidade de construir e proteger o gasoduto que, vindo do Turquemenistão à Índia, passando pelo Afeganistão e pelo Paquistão, resolveria as carências de energia da Ásia do Sul (gasoduto conhecido por TAPI, as iniciais dos países envolvidos). Foi o mesmo motivo de sempre: garantir o acesso aos recursos naturais e, em tempos mais recentes, impedir o controle da China e da Rússia. Por isso, ao mesmo tempo que se desencadeava uma violência macabra (cerca de 200.000 afegãos mortos entre militares e civis), se gastavam milhões de dólares, grande parte deles devorados pela corrupção, e supostamente se eliminavam os Talibã, mantinham-se negociações (primeiro, secretas e depois, oficiais) com alguns grupos Talibã. É, pois, ridículo falar de missão cumprida na luta contra o terrorismo. A missão parcialmente cumprida é a do acesso aos recursos naturais, mas mesmo essa foi conseguida graças à intermediação da Índia e do Paquistão, e sem comprometer o acesso ao gás por parte da China e da Rússia. Por outro lado, contra os interesses dos EUA, é a China quem emerge como ganhadora da crise afegã ao garantir a continuação do grande investimento, a Nova Rota da Seda na Ásia central. Desde1945, os EUA acumulam derrotas militares, espalham a morte do modo mais terrível e nunca conseguem estabilizar governos amigos. Saída humilhante do Vietnã em 1975, desastrosa intervenção na Somália em 1993-94, retirada não menos humilhante do Iraque em 2011, destruição da Líbia em 2011. Mas quase sempre conseguem garantir o acesso aos recursos naturais, a única missão que importa cumprir.