domingo, 9 de janeiro de 2022

Portugal | ODEMIRA LA GUARDA

Cátia Domingues* Jornal de Notícias | opinião

Suspensão preventiva de 90 dias aos sete militares da Guarda Nacional Republicana envolvidos nas agressões, maus-tratos e sequestro de imigrantes em Vila Nova de Milfontes, no concelho de Odemira. Foi esta a decisão da ministra Van Dunem anunciada esta semana. Sabem do que estou a falar?

Quando o país descansava os olhos das imagens que foi obrigado a ver das arrepiantes condições de vida de imigrantes no Alentejo, eis que surgiu um novo drama a envolver mão de obra explorada. Mal tínhamos nós conseguido voltar a comer mirtilos e rúcula sem peso na consciência......a vida é realmente injusta. No entanto, fico espantada como é que ainda ninguém se lembrou, à semelhança dos selos de "sem exploração animal", de criar um selo de "nenhum imigrante foi explorado, agredido ou injuriado para fazer este excelente produto".

Os casos em causa remontam a setembro de 2018 e março de 2019. Eu li a acusação que o Ministério Público redigiu e, meus amigos, temos aqui um guião de um filme de bolinha para apresentar à Netflix. Algemaram-nos, raptaram-nos, espancaram-nos, humilharam-nos, apontaram-lhes shotguns à cara, aterrorizaram-nos, dispararam gás pimenta e ignoraram os seus pedidos de socorro. Odemira é uma espécie de Guantánamo, mas com boas praias para o waterboarding.

Diz que os militares apanhavam os imigrantes através de falsas operações Stop e fiscalizações de trânsito e também relata que um dos militares da GNR terá falsificado um auto de notícia referente a desacatos e agressões com cidadãos estrangeiros. Neste último a GNR foi acionada para desacatos num restaurante, mas como não encontrou ninguém, dirigiram-se até uma casa e acabaram a agredir um cidadão. Eu não estou a par dos números da criminalidade no litoral alentejano, mas das duas uma, ou está em baixo e há muito tempo livre ou então a maioria é perpetrada por elementos da própria GNR e é difícil apanhá-los porque usam camuflado.

Dado que as vítimas são todas migrantes, é inevitável não associarmos estas situações a motivações racistas. Ver vídeos dos espancamentos em que os obrigam a pedir pancada em português, também ajuda a esta suspeição.

É curioso que, até maio de 2020, não há qualquer registo de um polícia acusado por racismo. Do total de queixas, 80% foram arquivadas e percebemos porquê. São difíceis de provar. Aliás, crimes motivados por ódio são difíceis de provar, na sua generalidade.

Em 2020, Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia à época, afirmou: "Não me parece que o racismo seja relevante em Portugal nas polícias". O que é que se entende por relevante? É que talvez seja daquelas em que um só caso é um caso a mais.

Paulo Rodrigues é também um apoiante da ideia das bodycams nas forças de segurança, justificando com "assim todos ficaríamos com a noção do que levou o polícia a fazer determinada intervenção". Nestes casos de Odemira, por acaso não foi preciso bodycam, já que só se tornaram públicas porque os militares gravaram esses momentos, certamente para partilhar naqueles grupos de WhatsApp onde se troca conteúdo suscetível de ferir a nossa suscetibilidade de "olha aqui a levar com um barrote. É só pimba, pimba, pimba!".

Há umas semanas, Acácio Pereira, presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, garantiu que o discurso xenófobo no SEF "não existe, de todo". De todo? Como assim, se polícias, juízes, canalizadores, esteticistas são reflexo da sociedade? E como reflexo da sociedade, não terá pessoas racistas, misóginas e até intolerantes ao glúten?

Para tentar mitigar esta questão, que pelos vistos segundo Acácio é uma não questão, foram criados novos critérios para recrutamento na Polícia que passam por testes de personalidade para despistar eventuais ligações à extrema-direita ou comportamentos contrários ao Estado de direito. Eu não sei como são estes testes, mas não sei se será uma estratégia eficaz. É que tenho dúvidas que se alguém comungar de ideais nazis, à pergunta "Acha que é boa ideia entrar numa festa de aniversário de uma família cigana ao pontapé, só porque a música está alta?", vá responder: "Sim. E com um taser".

Em 2018, o saudoso ministro Eduardo Cabrita negou a existência de "violência policial de natureza racista" no Parlamento, quando ao mesmo tempo era emitido um relatório da Comissão Europeia que fala em "racismo institucional profundamente enraizado". Agora em quem é que vamos acreditar? Num ministro que se autointitulou maior defensor dos direitos humanos em Portugal depois de um cidadão ucraniano ter sido assassinado por um órgão da sua tutela ou num organismo europeu independente criado para trabalhar exatamente sobre estas questões? Deixa-nos realmente numa posição difícil.

É verdade que são estes profissionais que mancham a imagem de milhares de outros profissionais e que é realmente preciso aproximar as forças de segurança das pessoas, mas se calhar não tão próximo do lombo, como em Odemira.

*Humorista

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