domingo, 23 de janeiro de 2022

Portugal | VALE TUDO PARA NÃO AUMENTAR SALÁRIOS

Tiago Cunha | AbrilAbril | opinião

Todos os dias, milhões de trabalhadores saem de suas casas, apanham o transporte em direcção aos seus empregos, «produzem mais» e regressam sem que tenha havido uma alteração substancial dos seus salários.

Aparentemente há um consenso sobre a necessidade de aumentar os salários no nosso país. Todos dizem que as retribuições são baixas, que o salário mínimo é reduzido, que os salários em geral deveriam aumentar.

As estatísticas demonstram que aumenta a pobreza1, também daqueles que trabalham, e crescem as reclamações em sectores da economia de que falta gente para trabalhar. Perante este «consenso», fica a questão: porque não aumentam então os salários?

A hipocrisia de mãos dadas com o cinismo

O grande patronato e os que lhe dão voz no plano partidário e político, respondem a esta pergunta com uma premissa: temos de produzir mais, para depois se poder aumentar as retribuições2, fazendo depender da primeira condição – «produzir mais» –, o aumento dos salários. A frase é repetida vezes sem conta.

A normalidade com que é aceite este argumento não pode deixar de chocar aqueles que o ouvem no final de um dia de trabalho, que o ouvem uma e outra vez durante dias e meses, que o ouvem depois de terem passado sete, oito, nove ou dez horas a trabalhar e, precisamente, a «produzir mais».

Todos os dias, milhões de trabalhadores saem de suas casas, apanham o transporte em direcção aos seus empregos, «produzem mais» e regressam sem que tenha havido uma alteração substancial dos seus salários, que estão estagnados para uns e crescem muito pouco para outros, com a agravante de se irem degradando as suas condições de trabalho ao sabor das alterações introduzidas na legislação laboral, que cada vez mais responde às «necessidades» do capital em prejuízo das dos trabalhadores.

Ao mesmo tempo, acumula-se cada mais riqueza nas mãos de uns poucos sob a forma de dividendos «libertos» de quaisquer obrigações fiscais, de avultados lucros não taxados ou taxados a taxas efectivas muito mais reduzidas que aquelas previstas na lei, de rendas que resultam do negócio imobiliário a grande escala ou ainda de juros que têm por base a gritante concentração realizada ao longo dos tempos.3

De forma hipócrita e cínica, argumenta-se que os salários, para aumentarem, estão sujeitos a uma premissa que, na prática, serve para manter e incrementar a acumulação e centralização da riqueza numa minoria, num processo constantemente facilitado pela introdução de normas e regras que travam os salários, para que a aquilo que é «produzido a mais» seja apropriado por outros que não os que produzem.

O nível de desigualdade exige o aumento geral dos salários. Já.

O aparente consenso para o aumento dos salários não passa disso mesmo, uma aparência. De forma ardilosa, reconhece-se a necessidade, ganha-se a simpatia dos que ouvem, procura-se a aceitação e justifica-se a perpetuação do modelo assente em baixos salários e na exploração com cada vez menos entraves.

Procura-se ainda, em nome do aumento da produtividade, generalizar as «velhas formas» e impor «novas formas» de precariedade4, de desregulação dos horários de trabalho, de embaratecimento do trabalho extraordinário e de prolongamento e intensificação das jornadas laborais5. Sempre com o objectivo de «produzir mais», em menos tempo, para depois, sempre depois, equacionar um hipotético aumento dos salários.

Por mais voltas que se dê, a verdade é que os níveis de desigualdade existentes na repartição da riqueza permitem, já hoje, o aumento geral dos salários, sem que seja preciso «produzir mais». Basta repartir melhor.

A questão central que se levanta quando os trabalhadores reivindicam o aumento geral dos salários tem de ser colocada no plano da distribuição daquilo que é produzido. E aquilo que é produzido no nosso país torna possível, urgente e necessário o aumento geral dos salários. Segundo os dados das Contas Nacionais, publicados pelo INE, a parte da riqueza produzida anualmente que reverte para os detentores de capital é superior a 40%, bem acima da parte que vai para «ordenados e salários» (37,5% em 2020).

A questão central tem a ver com uma opção política, tem a ver com escolhas, tem a ver, em última análise, com um posicionamento de classe.

A riqueza que resulta da actividade económica, da «produção a mais» que todos os dias se realiza mas falta nos bolsos dos trabalhadores, é a que sobra a um reduzido número de accionistas que dominam os poucos grandes grupos económicos que impõem preços insuportáveis na energia e combustíveis, nos transportes e utilização da rede rodoviária, nas comunicações e no acesso ao crédito ou aos «serviços bancários», no grande comércio a retalho, seja nos preços impostos aos produtores agrícolas e outros fornecedores, seja nos valores cobrados nos produtos alimentares e outros, como o vestuário, calçado...

Mesmo que os salários nos sectores onde os grandes grupos económicos dominam o mercado sejam relativamente «elevados»6, o nível de lucros que detêm só é possível pela apropriação realizada no todo da economia.

Dados do Banco de Portugal revelam que os gastos com pessoal representam 16% dos custos totais. É na electricidade, nos combustíveis, nas rendas, nas comunicações, nos juros e, naturalmente, na compra de matérias-primas para a produção/venda, que se concentra o grosso da despesa das micro, pequenas e médias empresas no nosso país. Compras de bens e serviços feitas aos grandes grupos económicos que operam nestes sectores e praticam preços dos mais elevados da União Europeia7.

São os chamados «custos de contexto», em alguns casos referenciados como obtendo «rendas excessivas», obtidos por empresas que operam fora do «mercado de bens/serviços transaccionáveis». No fundo, são grandes grupos monopolistas, privatizados ou reprivatizados por PS, PSD e CDS (ainda não havia IL nem chega), que hoje estão nas mãos de capital estrangeiro e funcionam para dar o máximo lucro possível, e não para desenvolver a economia e o País.

Medidas necessárias para concretizar o aumento geral dos salários

Por muitas insuficiências que caracterizaram o período iniciado em 2015, ficou demonstrado o alcance que a devolução e a conquista de direitos e rendimentos podem ter para a dinamização da economia. É este processo que tem de ser incrementado, são as resistências aos avanços que têm de ser debeladas, são as forças que desempenharam e desempenham um papel decisivo para a melhoria das condições de trabalho e de vida que têm de ser fortalecidas.

São necessárias medidas que rompam com a política que conduziu a décadas de atraso, de estagnação, de desigualdade, de degradação das condições para o país se desenvolver. O aumento do salário mínimo nacional (SMN), atingindo no curto prazo os 850 euros, assume neste plano um aspecto central. Ao contrário do que o grande patronato quer fazer crer, o SMN cumpre e deve ser fixado tendo em conta sua função social8

Se é certo que o seu aumento tem de atender ao «nível de desenvolvimento das forças produtivas», não é menos verdade que o SMN tem de garantir «as necessidades dos trabalhadores».

Estudos recentes realizados por um grupo de economistas9 aponta o valor de 1136 euros como sendo o rendimento que permite o acesso a bens e serviços indispensáveis a uma vida digna, e é neste plano que os 850 euros têm de ser enquadrados, ou seja, como um ponto de partida para uma evolução que o aproxime do objectivo constitucional que tem de cumprir. Mesmo aplicando estritamente os elementos da produtividade e da inflacção, agora advogados pelo patronato, ao SMN desde a sua criação, teríamos hoje um valor de 1151 euros.  

Ainda assim, fruto dos baixos salários generalizados, a cada aumento do SMN, sempre insuficiente e aquém do possível e necessário, são mais uns milhares de trabalhadores que ficam abrangidos e mais profissões que se indiferenciam no plano retributivo.  

Urge, pois, implementar medidas que desbloqueiem os constrangimentos a que está sujeita a evolução geral dos salários. É imperioso revogar de uma vez por todas a norma da caducidade e reintroduzir o princípio do tratamento mais favorável na contratação colectiva. Há que revogar estas e as restantes normas gravosas da legislação laboral, introduzidas com o pretexto de aumentar o emprego e a sua qualidade, de dinamizar a contratação colectiva e a competitividade da economia, mas que redundam em precariedade, fraca abrangência e efectivação do direito dos sindicatos à negociação colectiva e estagnação económica.

O aumento geral dos salários e do SMN é uma questão central para o presente e o futuro do País. É a questão central para fixar trabalhadores, para dinamizar a economia e a produção nacional, para que as empresas vendam mais, uma vez que na sua maioria é com o dinheiro dos salários e das pensões que se fazem as compras e assim se escoa a produção.

Aumentar os salários para garantir a geração de mais riqueza, mais receita fiscal, mais contribuições para a segurança social. O aumento geral dos salários é fundamental para garantir melhores condições de vida, é o melhor remédio para combater a pobreza, é um factor determinante para esbater os níveis de desigualdade no nosso país.

Nos diferentes projectos e propostas que teremos a opção de escolher no próximo dia 30 de Janeiro, há forças que dão a centralidade e o carácter de emergência que esta matéria tem e a conjugam com outras dimensões, desde logo também no plano laboral com a redução do tempo de trabalho, mas também noutras frentes indispensáveis ao desenvolvimento do país – da defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ao direito à habitação; do incremento da produção nacional, à colocação das empresas e sectores estratégicos ao serviço do desenvolvimento; da promoção da coesão territorial com serviços públicos de qualidade em todo o território, passando por uma fiscalidade que ponha a pagar quem mais tem e alivie quem trabalha e trabalhou, à afirmação, sempre, da soberania como condição inseparável da democracia e dos valores de Abril.

O aumento geral dos salários exige a mobilização e o esclarecimento dos trabalhadores. Será com a intensificação da luta reivindicativa nos locais de trabalho e nas ruas, e também com o voto, que se dará força às soluções que respondam aos anseios e direitos de quem trabalha e trabalhou, que se valorizará o trabalho e os trabalhadores, que se abrirão as portas a um novo rumo de desenvolvimento do País com progresso e justiça.

Imagem: António Pedro Santos / Lusa

Notas:

1.Dados publicados pelo INE indicam que, depois de uma tendência para a redução dos indicadores de pobreza a parir de 2015 até 2019, em 2020 voltou a aumentar a população pobre, nomeadamente  trabalhadores e desempregados.

2.Entre inúmeras declarações, de líderes dos partidos da direita, passando por comentadores e «especialistas», referencia-se a afirmação do presidente da CIP, pelo que refere em relação a esta matéria, mas também pela vontade expressa de que o entendimento entre PS e PSD é a solução que melhor serve os interesses que representa: «Só podemos distribuir riqueza se a conseguirmos criar».

3.São muitos os indicadores que dão nota da desigualdade na repartição dos rendimentos no nosso país. Para além do documento citado do INE, também a autoridade tributária publicou os dados das transferências para paraísos fiscais e territórios com tributação privilegiada. Em 2020, no ano em que aumentou a pobreza, aumentaram também as transferências para offshore, que atingiram um valor próximo dos 7 mil milhões de euros.

4.Sobre as «velhas» e estas «novas formas» de precariedade, o podcast Megafone do AbrilAbril é elucidativo.

5.As estatísticas do emprego, publicadas pelo INE, indicam que mais de metade da população empregada trabalha por turnos, ou ao serão, ou à noite, sábados ou domingos.

6.Outros há, como o retalho, onde o SMN ou próximo dele é a regra.

7.Os dados podem ser consultados aqui

8.O salário mínimo é um direito Constitucional definido na a), do nº2 do art.º 59º: «Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente: a) O estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento».

9.Em 2017, um grupo de académicos divulgou um estudo para determinar «quanto é necessário para uma pessoa viver com dignidade em Portugal». Chamaram-lhe o «Rendimento Adequado». No exemplo dado, utilizámos a tipologia de um agregado familiar composto por dois adultos e dois menores de 12 anos, pois é aquele que garante o equilíbrio do ponto de vista demográfico, e actualizámos o valor pela inflacção anual. Recentemente, este estudo foi publicado em livro: Rendimento Adequado em Portugal: Um estudo sobre o rendimento suficiente para se viver com dignidade em Portugal, de José António Pereirinha, Francisco Branco, Elvira Pereira, Dália Costa e Maria Inês Amaro, publicado pelas edições Almedina.

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