sábado, 22 de janeiro de 2022

PRIMEIRO CENSO POPULACIONAL EM ANGOLA

Agentes Censitários Definiram com Rigor a População de Luanda

Francisco Lopes Roseira descobriu o documento do século XIX no Arquivo Municipal

Artur Queiroz*, Luanda

O primeiro censo populacional realizado em Angola tem este título pitoresco: “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção e de Suas Diferentes Corporações, Empregos, Estados e Condições das Pessoas em Todo o Ano de 1832, até Janeiro de 1833 Respeito ao Estado da Mesma População, suas Diferenças para Mais ou para Menos, como Indica a Observação Abaixo Mencionada para Mais Abreviatura do Presente Mapa”. Esta preciosidade foi descoberta no “Arquivo Municipal” da capital, por Francisco Lopes Roseira, um dos maiores intelectuais do seu tempo.

O documento permite analisar a cidade de Luanda (único objecto do inquérito censitário) na vertente social e económica, com grande nitidez e profusão de elementos, fundamentais para a compreensão da época.

Angola veio a ter outro censo, mas este geral, 108 anos depois, em 1940. O primeiro, descoberto por Lopes Roseira no Arquivo Municipal, discrimina a população luandense pelas corporações (eclesiástica, militar e civil) e ofícios. 

No primeiro censo feito em Luanda cada corporação é apresentada pelas ordens religiosas, unidades militares e serviços civis. A população é descrita por raças, condição social (escravos e cidadãos livres), estado civil e ofícios. Inclui uma informação fundamental: o movimento demográfico.

O “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção” não é assinado e não há qualquer referência à entidade que o encomendou. Muito menos aos técnicos que fizeram o trabalho de recolha e leitura dos dados. O Senado da Câmara, o Governo-Geral ou e a Igreja podem estar, isoladamente, na realização do censo. Ou as três instituições em conjunto. 

O documento revela um aspecto interessante. Algumas páginas têm colados quadrados com dados importantes por cima das páginas originais. O que leva a crer que foram detectados erros e essa foi a forma de fazer as correcções. 

O “mapa” é anónimo, mas esse facto não lhe retira a importância. Lopes Roseira, numa conferência no Rotary Clube de Luanda, em 20 de Dezembro de 1966, disse que “quem pretender, com profundidade, estudar a evolução da população de Luanda, não pode desprezar tão preciosa fonte de informação, por ser, em relação à época, completa e única no género”.

GESTÃO DE LUANDA

O documento descoberto por Lopes Roseira no Arquivo Municipal revela as receitas obtidas e as despesas necessárias na gestão de Luanda. No ano de 1832, o Senado da Câmara teve uma receita de 9.547.921 réis para satisfazer todas as necessidades financeiras da administração municipal.

As fontes das receitas eram diminutas: cobrança de foros pela ocupação de terrenos, 211 licenças para tabernas, taxas pelo aluguer de quartos nas pensões, multas aos comerciantes que usavam pesos irregulares (roubo no peso), taxas do matadouro municipal e pela utilização do terreiro público (venda ambulante) e direitos pela entrada de navios na baía.

O “Procurador do Senado” realizava todas as despesas e arrecadava as receitas. Nessa época ainda não existia orçamento. Depois de fazer todos os pagamentos, no final do ano de 1832, o homem que geria os fundos apresentou um saldo positivo de 2.192.271 réis.

No “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção” é revelada uma despesa certa: os vencimentos e propinas do pessoal representavam 14,5 por cento das despesas totais do Senado da Câmara de Luanda. Uma novidade: os salários e propinas do pessoal camarário eram pagos “por quartéis”, isto é, de três em três meses. Todos tinham uma vida difícil e faziam parte de um funcionalismo público empobrecido e crivado de dívidas. Os ricos da cidade faziam fortuna com o tráfico de escravos.

INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

O censo de Luanda foi efectuado dez anos depois da independência do Brasil. Dada a dependência de Angola das feitorias brasileiras, a separação podia causar uma crise económica em Angola. Mas no ano de 1832, o movimento portuário não revelou qualquer abrandamento nas relações económicas com o novo país independente. 

O “mapa” mostra que a frota mercante brasileira continuou a navegar para Angola. No ano de 1832, entraram 18 navios no porto de Luanda: 12 brigues, quatro patachos e duas escunas. Destes, 14 eram procedentes do Rio de Janeiro, Pernambuco e Baía. Durante o ano, de Lisboa chegaram apenas quatro embarcações.

Os navios de Portugal passaram a ser ainda mais raros quando em1836 foi abolida oficialmente a escravatura. A liberdade de milhares de seres humanos foi afogada numa crise económica. Sem braços para trabalhar devido à “sangria” do tráfico de escravos e sem o dinheiro que o negócio rendia, a crise infernizou a vida de milhares de luandenses.

RETRATO DA POPULAÇÃO

O censo de 1940, o primeiro a nível nacional, apurou 3,7 milhões de habitantes em Angola. Um deserto humano, tendo em conta a dimensão do território. Pela primeira vez foi conhecida, pela crueza dos números, a dimensão da tragédia provocada pelo tráfico de escravos. 

Angola tinha neste ano os Círculos Sanitários do Congo, Malanje, Bié, Benguela e Huíla. Luanda, em termos de saúde, era um círculo autónomo.

Em toda a colónia, no ano de 1940, existiam 85 delegados de Saúde (médicos). No Congo Português (Uíje, Zaire e Cabinda) o chefe dos serviços sanitários era o médico Jacinto Vasconcelos, residente na vila do Uíje. O pessoal de enfermagem contava-se pelos dedos das mãos. 

Na vila do Uíje estava o enfermeiro Alberto Domingos Nunes mais três auxiliares. Vila do Songo, Paulo Bunga e três auxiliares. Vila do Bembe, António Pereira da Silva mais três auxiliares. Vila do Lucunga Domingos Santos e um auxiliar.

Uma curiosidade: em 1940 estavam registados na colónia de Angola três advogados em Luanda e dois em Benguela!

No censo de 1950 ficou apurado que a colónia de Angola tinha 29 Estações radiotelegráficas de onda curta, 147 telégrafos e sete Centrais Telefónicas. Um imenso território sem comunicações, se tivermos em conta que só existiam dois troços de estradas asfaltadas: Luanda-Catete e Lobito-Benguela. Menos de 100 quilómetros.

Nesse ano de 1950, a população total de Angola era 4.145.184 habitantes, dos quais 78.903 brancos, 29.550 mestiços e 4.036.547 negros. Outros: 184.

Em 1960 não foi realizado o censo, como estava previsto. O movimento independentista no Congo Belga causou grande instabilidade em Angola e as autoridades coloniais anularam as actividades censitárias em todo o território. Mas foi possível apurar que Luanda tinha 168.500 habitantes, Nova Lisboa (Huambo) 35.000, Benguela, 15.500 e a cidade portuária do. Lobito, 29.000 habitantes. 

Em 1970, foi realizado o censo que registou 5,6 milhões de habitantes. Mas o trabalho de campo foi feito em plena guerra colonial e os números são pouco fiáveis. Ficaram de fora milhares de angolanos das zonas libertadas ou que habitavam em regiões onde a luta armada de libertação nacional registava alta intensidade. 

O primeiro censo da população angolana realizado após a Independência Nacional (ano de 2014), 180 anos depois do “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção”, revela que Angola tem 25,789 milhões de habitantes, dos quais 6,945 milhões vivem em Luanda. 

O “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção” revela dados fundamentais que, em relação à capital, são um ponto de partida para analisar a evolução demográfica.

Luanda tinha, no fim de 1832, 5.059 habitantes. Este total inclui membros das instituições religiosas, militares do “Destacamento de Portugal” e funcionários públicos em comissão de serviço, num total de 966. Este grupo foi tratado à parte no censo. E apenas refere o seu estado civil: 911 solteiros, 41 casados e 14 viúvos. 

As instituições religiosas em Luanda eram servidas por 20 pessoas, pertencendo 18 ao clero secular e dois ao clero regular. Ao serviço das forças armadas estavam 815 militares e existiam 71 funcionários públicos. Percentagem de cada corporação em relação ao total da população: Clero, 0,4 por cento, funcionalismo público 1,3 por cento e militar, 16 por cento.

As forças armadas tinham uma característica interessante. Do total, apenas 7,25 por cento faziam parte do “Destacamento de Portugal” o que correspondia a 59 militares com os seguintes postos: um oficial efectivo, quatro oficiais inferiores, dois tambores e pífaros mais 52 soldados. Os restantes 92,75 por cento foram recrutados e alistados em Luanda.

O censo trata com mais pormenores os 4.093 habitantes de Luanda que não faziam parte das corporações. No campo social, ficámos a saber o número exacto de escravos e cidadãos livres. 

UMA CIDADE DE ESCRAVOS

Em quatro mil habitantes (excluindo clérigos, militares e funcionários públicos oriundos de Portugal) Luanda, em 1832, tinha 2.690 escravos para 1.403 cidadãos livres. Eram 2.684 escravos pretos e seis “pardos”. Dos escravos pretos, 1.395 eram do sexo masculino e 1.289 do sexo feminino. Mais: 1.393 eram solteiros e 1.287 solteiras. Os quatro que faltam eram casais. Seis escravas, do grupo “pardos”, eram solteiras. 

Quanto aos cidadãos livres, Luanda tinha em 31 de Dezembro de 1832, 1,403 habitantes, já excluídos os membros das corporações que faziam parte de uma população flutuante. Chegavam a Angola, cumpriam a sua missão de serviço e regressavam a Portugal. Estavam assim distribuídos por grupos étnicos: 570 pretos, 309 “pardos” e 309 brancos. Luanda era também uma cidade mestiça e os “pardos” tiveram um papel fundamental na libertação de Luanda, quando a cidade foi ocupada e praticamente arrasada pelos holandeses.

Dos “pretos livres” 116 eram homens, 112 solteiros, três casados e um viúvo. E 454 mulheres, sendo 432 solteiras, 16 casadas e seis viúvas. Os “pardos” eram 109 homens, dos quais oito casados, 100 solteiros e um viúvo. As mulheres eram 415, sendo 352 solteiras, 31 casadas e 32 viúvas. Entre os brancos, 147 eram do sexo masculino, dos quais 112 solteiros, 20 casados e 15 viúvos. Do sexo feminino eram 162 das quais 90 solteiras, 51 casadas e 21 viúvas. Eis as percentagens tendo em conta os 1.403 habitantes permanentes da capital: pretos 40,58 por cento, “pardos” 37,42 e brancos 22 por cento.

É preciso ter em conta que no censo de 1832 só eram considerados casados aqueles que contraíam matrimónio pela Igreja. Não contavam as uniões de facto nem os casamentos tradicionais. Em todo o ano de 1832 houve registo de cinco casamentos nas igrejas de Luanda. Três de brancos, um de pretos e outro de “pardos”. 

HABITAÇÃO E NASCIMENTOS

Luanda teve sempre uma estrutura habitacional precária. Os musseques existem desde a fundação da cidade. Em 1832, foram recenseados 1.210 fogos. Destes, 433 eram cobertos com telhas e 777 a capim. Daqui resulta uma média inferior a cinco pessoas por fogo. 

A desertificação humana está bem expressa no número de nascimentos em Luanda, durante o ano de 1832: apenas 103, dos quais 24 pretos livres (14 do sexo masculino e dez do sexo feminino), 45 de escravos (29 do sexo masculino, 12 do sexo feminino e quatro “pardas”), 27 de “pardos” (11 do sexo masculino e 16 do sexo feminino) e sete brancos: quatro do sexo masculino e três do sexo feminino.

Os óbitos foram superiores aos nascimentos: um total de 113, dos quais 44 pretos livres, 36 escravos, 20 “pardos” e 13 brancos. O movimento demográfico da cidade de Luanda registou um saldo negativo de 0,9 por cento.

Os números do trabalho revelam uma “enorme pobreza”. Em 1832, Luanda tinha 282 trabalhadores que se repartiam pelos “ofícios mecânicos” com mestres, oficiais e aprendizes. Eram 20 carpinteiros, 15 pedreiros, 35 alfaiates, nove barbeiros, dez sapateiros, oito ferreiros, um cabeleireiro, oito cozinheiros, um latoeiro, 103 costureiras, 23 lavadeiras, três ourives, 19 pescadores, um torneiro, um caldeireiro, quatro pintores da construção civil, dez tanoeiros, dois oleiros, oito calafates, sete marinheiros e três ferradores.

Na nota final do “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção” o autor (anónimo) revela detalhes que atestam o grande rigor com que foi elaborado o censo. Afirma ele que “no número de cónegos não entram três por se acharem empregados, sendo um de capelão do Regimento e Misericórdia, e dois curas da Sé e Remédios. No número de sacerdotes regulares não entrou o ministro do Convento de São José da Ordem Terceira de São Francisco por se achar ocupando o lugar de professor da gramática latina”.

Nas forças armadas, “no número dos efectivos do Regimento de Milícias não entraram quatro oficiais por se acharem empregados”. Um como oficial menor da Secretaria e Almoxarife do Governo-Geral, outro era escriturário da Junta da Real Fazenda e dois eram “Juízes do Terreiro”. Dos efectivos do Terço de Ordenanças não contaram três oficiais. Foram incluídos como habitantes permanentes da cidade “por se acharem empregados”. Um como mestre das primeiras letras, outro como escrivão da Provedoria e o último como escrivão da Câmara de Luanda.

Entre os oficiais da Secretaria, um foi considerado habitante permanente de Luanda por ser almoxarife dos Reais Armazéns.

Um século depois da publicação do “Mapa de Toda a População da Cidade de São Paulo da Assunção”, Luanda tinha 40.197 habitantes: “17.947 civilizados e 22.250 indígenas”. Nos “civilizados” estavam incluídos “9.161 pretos (os mestiços foram aqui incluídos) e 8.786 brancos. Mas 20 anos depois do primeiro censo, Luanda já registava 30.000 habitantes, consequência directa da abolição do tráfico de escravos.

Lopes Roseira defende que as relações laborais se deterioram um século depois do primeiro censo: “o trabalho deixou de ser remunerado por igual. Os mestres, fossem pretos, pardos ou brancos, escravos ou homens livres, em 1832, ganhavam 600 réis por dia. Mas um século depois, o trabalho era cotado segundo a condição étnica. (…) Por isso nasceu uma sociedade primária de raiz colonialista”. Isto foi dito em 20 de Dezembro de 1966, ante membros da alta sociedade luandense. Eu estava lá, como repórter.

* Jornalista

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