quarta-feira, 30 de março de 2022

PETRÓLEO: A ESTRATÉGIA PARA A RECOLONIZAÇÃO

# Publicado em português do Brasil

Desmembramento, captura e privatização total da Petrobrás estão em curso. Caso se completem, Brasil perderá chance de superar regressão produtiva e política em que mergulhou. É possível reverter o processo – mas não sem conhecê-lo a fundo

Antonio Martins* | Outras Palavras

Imagine que você, governando o Brasil, tencionasse privatizar a Petrobrás – objetivo que tanto Jair Bolsonaro quanto Paulo Guedes admitiram perseguir, em mais de uma ocasião. Haveria dois caminhos. Propor claramente a medida, abrindo, com a sociedade, um amplo debate sobre o tema. Ou sabotar a estatal, por meio de políticas que eliminem seu caráter de empresa pública; que a indisponham com a maioria da população; que transfiram seus recursos para especuladores privados; e que, por fim, desintegrem-na, desmembrando de seu corpo subsidiárias e operações essenciais à sua sobrevivência. Nos dois primeiros textos (1 2) desta série, vimos como esta estratégia está sendo executada por meio de políticas como o PPI (que torna extorsivos os preços dos combustíveis) e de um “golpe corporativo” que mudou os estatutos da estatal para transferir, aos acionistas privados, até 97,3% dos lucros da companhia.

Vamos focalizar agora a terceira parte do esquema. Veremos como avançaram, no governo Bolsonaro, o desmanche e a venda fatiada da estatal. E examinaremos o caráter recolonizador deste processo. Se não for freado a tempo, ele eliminará duas alavancas que podem ser indispensáveis para reverter a decadência acelerada do país. O Brasil perderá a riqueza petrolífera do pré-sal, onde pode estar a terceira maior reserva de óleo do planeta. E ficará privado da capacidade da própria Petrobrás para apoiar, como empresa pública, ações cruciais – a transição para energias limpas, a reconstrução da indústria nacional, a recuperação do atraso científico e tecnológico, o controle dos riscos ambientais, os programas de fomento à cultura, entre muitas outras.

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A venda fatiada da Petrobrás é um processo único no mundo. Não há notícia de outra empresa petroleira que, desejando manter-se à tona, tenha se desfeito de tantas operações lucrativas e essenciais à própria integração de suas atividades. Por isso, o mais preciso é chamar o movimento de desmanche. Segundo o Observatório Social da Petrobrás (hoje fora do ar, após ação de censura movida pela estatal), a liquidação já privou a empresa de patrimônio avaliado em R$ 243,7 bilhões. Iniciado no governo Temer (R$ 78,5 bilhões de patrimônio perdido), o processo ganhou enorme velocidade com Bolsonaro (R$ 138,2 bi)1 A Petrobras foi privada, entre outros, da BR Distribuidora e da Liquigás; de duas refinarias, inclusive a RLAM baiana, primeira do Brasil (está programada a venda de mais seis); de duas redes de gasodutos, no Norte-Nordeste (TAG) e Sudeste (NTS); de seis termelétricas. Seu braço petroquímico (sociedade na Brasken, que reúne 29 fábricas no Brasil e 11 nos EUA, Alemanha e México) está sendo extirpado, com alta probabilidade de a empresa passar a controle estrangeiro). Duas de suas usinas de fertilizantes (na Bahia e Sergipe) foram arrendadas, a de Três Lagoas (MS) tem venda compromissada para o grupo russo Acron e a Araucária (PR), está na boca da caçapa.

Muito mais importante que o valor monetário é, no entanto, a qualidade dos ativos desmobilizados e as condições em que as operações estão se dando. Dois casos são exemplares do dano à empresa e à sociedade – e do favorecimento aos compradores. A BR Distribuidora era, até 2015, líder absoluta no país – o quarto maior consumidor de combustíveis derivados de petróleo do mundo. Criada em 1971, ocupou espaço numa atividade tradicionalmente dominada por transnacionais. Sua rede, de enorme capilaridade, reunia 8 mil postos e as malhas de armazenamento, logística e transportes correspondentes. Seu lucro líquido em 2018, último ano sob controle público, atingiu R$ 3,2 bilhões. Sua venda foi feita em surdina, sem nenhum debate público, por meio de duas rodadas de venda de ações – em julho de 2019 e julho de 2021. O valor total arrecado pela Petrobrás é risível: R$ 19,8 bi, equivalentes a apenas seis anos de lucros.

Dois fundos especulativos internacionais – Samambaia Master (com 7,95% das ações) e a gigantesca BlackRock (5,01%) passaram a controlá-la (se alguma autoridade brasileira recebeu propina, na ação, foi fácil pagá-la discretamente no exterior). As lógicas internas da distribuidora rapidamente mudaram. Poucos meses após assumir, a nova diretoria executiva demitiu 27,4% dos funcionários e condicionou a permanência de outros 1.030 a reduções de salário de até 50% – enquanto aumentava seus próprios vencimentos em… 272%! Cada executivo passou a receber, em média, R$ 3,054 milhões ao ano. Para o cidadão comum, contudo, nada disso se passou. Além de terem se furtado a qualquer debate sobre a operação, os dirigentes da Petrobrás autorizaram os novos controladores a continuar ostentando, em todos seus postos e instalações, a logomarca “BR” da estatal.

No caso das refinarias, o desinvestimento e privatização, já desencadeados, terão dois tipos de desdobramentos ainda mais dramáticos. O primeiro é o retorno do Brasil à condição de importador de combustíveis. Ela havia sido superada já no início da década de 1970. O país só produzia entre 20% e 30% do petróleo cru consumido, mas havia se capacitado a refinar 95% dos derivados. Para aceitar resignadamente o retrocesso atual, é preciso pensar que a reprimarização é um destino. A segunda consequência serão desequilíbrios regionais. A Petrobras instalou as refinarias para que formassem uma rede capaz de, em conjunto, abastecer o país. Esta lógica reduz as despesas de transporte e permite manter preços equalizados em todo o território. Ainda que os custos sejam maiores em certas regiões (a Amazônia, por exemplo), é possível equalizá-los numa política única de preços. Mas e se a rede for desfeita? Cada grupo privado que se apoderar de uma refinaria terá condições de impor, em sua área de influência, preços de semimonopólio, já que os supostos concorrentes teriam de arcar com custos muito maiores de frete.

O fenômeno já começou a ocorrer. Em março de 2021, a Petrobrás vendeu a histórica Refinaria Landulpho Alves, no Recôncavo Baiano, ao fundo de investimentos Mubadala, do emirado de Abu Dhabi. Responsável por 14% da produção nacional de derivados, a RLAM foi transferida pelo equivalente a R$ 8 bilhões. No início de 2022, os preços para gasolina e diesel praticados pela nova empresa controladora – denominada Acelem – chegavam a ser 27% superiores aos já muito elevados que a Petrobrás cobrava. “Com a venda das refinarias, o PPI se tornará o piso, e não mais o teto do preço dos combustíveis”, previu um estudo do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos.

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No discurso oficial dos administradores da Petrobrás, cada uma destas operações esdrúxulas frente aos interesses da população é apresentada como um passo a mais rumo ao sucesso. A empresa estaria “concentrando-se em seu foco”: a extração de petróleo em águas profundas e ultraprofundas, onde tem “demonstrado grande potencial competitivo”. A retórica do “foco” e do “lucro máximo” é conhecida – e tem sido repetida como um mantra, na era do capitalismo financeirizado. Mas será que se aplica à indústria do petróleo? E – ainda mais importante – a uma companhia pública?

Uma vasta literatura recente responde que não. Em 2020, por exemplo, um artigo da revista Economist mostrou como todas as grandes empresas ocidentais do setor lutavam para se livrar da condição de simples “petroleiras” e abraçar a petroquímica – que a Petrobras busca, ao contrário, abandonar. A razão parecia óbvia. Ao contrário dos combustíveis fósseis, que estão sendo aos poucos eliminados pela geração de eletricidade a partir de fontes limpas e pelos motores elétricos, os produtos petroquímicos são até o momento insubstituíveis em larga escala. Seu uso não para de crescer. Um outro texto, do Instituto para Governança dos Recursos Naturais, notava, em junho de 2021, que as petroleiras estatais – da China à Colômbia e Arábia Saudita – estão dando um passo ainda mais ousado. Elas alteram gradativamente o perfil de seus investimentos, deslocando-os do petróleo para energias limpas. Reforçando a tendência, uma sequência de artigos no site empresarial Oil Price frisou (1 2 3): “o negócio mais lucrativo das grandes petroleiras já não é o petróleo”.

Num texto recente, Felipe Coutinho, vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet) apontou que, além de não ter sentido do ponto de vista estratégico, o caminho percorrido pela direção da estatal brasileira tende a colocá-la numa sinuca financeira. Coutinho chamou atenção para a volatilidade dos preços de petróleo cru, claramente visível no gráfico abaixo, que abrange o período de quase cinco décadas entre 1970 e 2015. Ele mostra que, além de oscilarem intensamente (de US$ 20 a US$ 130, já considerada a inflação), as cotações estacionam, às vezes, em patamares distantes da média. Examine, por exemplo, a década de 1990. O preço do barril estagna, durante dez anos, em torno de US$ 30 – três a quatro vezes mais barato que hoje. Nestas fases, até mesmo campos ultra-abundantes, como os do pré-sal brasileiro, deixam de ser lucrativos. O que a Petrobrás fará se, em períodos longos como este, não tiver outra fonte de receita? Venderá petróleo a qualquer preço, para sustentar suas despesas?

Subsidiárias como a BR Distribuidora, a Liquigás e os gasodutos, lembrou Coutinho, funcionam como um seguro. Eles têm a vantagem de oferecer receita e lucros constantes, que fluem “como um relógio”, já que seu consumo não diminui. O que quer a direção da Petrobrás, quando se desfaz deles, enquanto todas as suas concorrentes tentam construir as suas? Seus atos indicam que os dirigentes buscam, ativamente, o que Bolsonaro reconhece desejar: a privatização total da Petrobrás. Fatiar a estatal e vendê-la aos pedaços assegura que esta meta já está sendo alcançada.

Primeiro, porque priva a Petrobras de braços indispensáveis para cumprir seu papel de empresa pública. Quase todas as atividades pioneiras da companhia – o refino, a petroquímica, o desenvolvimento de biocombustíveis como o etanol, a construção de uma frota de navios – foram no início deficitárias. Algumas, por sua própria natureza, permanecerão assim por longos períodos. Pense, por exemplo, na política de conteúdo local – que comprometeu a Petrobrás a encomendar da indústria brasileira uma parte cada vez maior dos equipamentos necessários à produção de petróleo. Ao se recusar a comprar de fornecedores estrangeiros, a empresa perdia dinheiro – mas contribuía para o desenvolvimento do setor de estaleiros e máquinas, onde se geram milhares de ocupações qualificadas, tecnologia e saberes. As normas foram, previsivelmente, esvaziadas nos primeiros dias do governo Temer, após o golpe de 2016. A produção de fertilizantes também foi, por muito tempo, deficitária. Mas a crise atual do setor, desencadeada pela guerra na Ucrânia, mostra como o país precisa ter autonomia em setores-chave da produção, já que as rupturas nas cadeias globais de abastecimento tendem a ser cada vez mais frequentes e devastadoras. Pense, por fim, no incentivo a programas de proteção do ambiente (como o Projeto Tamar), ou de cultura (como o apoio ao cinema brasileiro). Veja como eles despencaram, na proporção de até 6 x 1 no atual processo de desmonte e captura da Petrobrás (1 2).

Em segundo lugar, porque, a continuar o processo, só restará à estatal a extração de petróleo bruto. E se ela nada puder oferecer à sociedade brasileira, quem a defenderá? Será extremamente fácil, aos partidários da privatização, alegar que deve haver concorrência na exploração do pré-sal – para que fique menos caro encher o tanque, no posto de combustíveis… O amesquinhamento dos projetos nacionais e o declínio da reflexão sobre o Brasil estão nos condenando, há muito, a uma regressão produtiva dramática, que já é objeto de estudo em várias partes do mundo. A perda do que pode ser a terceira maior reserva de petróleo do planeta e o desmanche de uma empresa como a Petrobrás completariam a estratégia de recolonização. Por isso é tão urgente interrompê-los.

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Colonialismo, aliás, é um conceito-chave em toda a história da riqueza petrolífera e da luta por sua captura. A partir de meados do século XX, o mapa geopolítico do petróleo mudou radicalmente. O domínio de grandes corporações ocidentais (as chamadas “sete irmãs”) foi substituído pela presença cada vez maior de empresas estatais, que hoje extraem 55% do petróleo produzido no mundo e controlam 90% das reservas. Às “irmãs” (hoje cinco: Exxon, Shell, BP, Total e Chevron), sobram 8%.

Este processo teve como precursores líderes populares como Lázaro Cárdenas, no México (que nacionalizou o petróleo em 1938, criando a Pemex) e Mohammad Mossadegh (que fez o mesmo no Irã, em 1951, sendo derrubado por um golpe de Estado patrocinado pelos EUA, dois anos depois). Ao se apropriarem das reservas, Cárdenas, Mossadegh e outros buscaram usá-las para superar o subdesenvolvimento e a desigualdade. O objetivo das empresas petroleiras que criaram ia muito além do mero lucro. O petróleo mexicano, por exemplo, financiou a grande reforma agrária com que haviam sonhado a Revolução Mexicana de 1910 e Emiliano Zapata. No Irã, o então chamado “ouro negro” permitiu livrar os camponeses da submissão feudal – que persistia – e iniciar a construção de um Estado de bem-estar social.

Criada em 1953, após cinco anos de mobilização popular articulada pela campanha “O Petróleo é Nosso”, a Petrobrás foi mais um fruto desta árvore anticolonial. Mas sua trajetória difere da mexicana ou iraniana em pelo menos dois aspectos As jazidas de petróleo do Brasil eram desconhecidas, quando ela começou a operar. Esperava-se que existissem, num território muito vasto. Desconfiava-se que as empresas transnacionais instaladas no país não se esforçassem por encontrá-lo – já que seus lucros seriam maiores se o importassem. Além disso, nunca houve, na história do país, um governo com o ímpeto redistributivo e radicalmente reformador de Cardenas ou Mossadegh.

A descoberta do pré-sal alterou os termos da equação. Riqueza petroleira há, e é imensa. Por isso, acirra-se a disputa por seu controle. O projeto da recolonização está claro. Qual pode ser, em oposição a ele, a proposta descolonial? E – mais complexo – como articulá-la com a necessidade, aparentemente contraditória, de reduzir o uso dos combustíveis fósseis, para evitar a catástrofe climática? Responder a estas questões é tão difícil quanto indispensável. É o que veremos no próximo texto desta série.

1Houve um preâmbulo no governo Dilma Rousseff, quando este optou por descumprir seu programa de governo. Em 2015, foram leiloados (por R$ 26,9 bilhões) diversos campos de petróleo – inclusive o de Libra, extremamente promissor, no pré-sal. Porém, as regras do leilão asseguraram à Petrobrás a presença no campo, na condição de operadora central. Embora muito questionável, a transação não pode ser equiparada ao desmanche atual.

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*Antonio Martins é editor de Outras Palavras.

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