Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Já sabemos quem serão os ministros do próximo Governo e os âmbitos dos ministérios que cada um vai dirigir.
Falta conhecer quem serão os secretários de Estado e quais os seus perfis, elementos que nos poderão elucidar sobre a orgânica geral, o rumo e a capacidade de ação a esperar de cada equipa ministerial. No que diz respeito ao contexto em que a legislatura se irá desenrolar, pode avançar-se alguns traços que o marcarão.
Um mês depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, a guerra prossegue com os seus horrores, num cenário de corrida contra o tempo, de premência da ação diplomática. Por vezes, parece haver iniciativas pontuais geradoras de esperança, contudo, esta só será verdadeira quando existirem compromissos que interrompam a guerra e abram portas à negociação de soluções políticas para o futuro. O cenário geopolítico é complicado. As grandes placas tectónicas são diferentes das que existiam umas décadas atrás e movem-se com algumas novas visões do mundo - independentemente dos juízos que podemos e devemos fazer sobre elas e da pretensa superioridade moral do chamado Ocidente. A diplomacia tem de ser bem mais do que a troca de "avisos" a que temos assistido, e jamais se pode restringir às verdades das propagandas.
Deparamo-nos com realidades duras: a dor profunda do povo ucraniano que arrasta o sofrimento de outros; a ONU, incapaz de gerar soluções, traz-nos à memória o desabar da Sociedade das Nações; o ricochete das sanções aplicadas à Rússia está longe de ser percetível, mas é certo que o grande poder económico/financeiro não abdicará de fazer negócio; a escalada belicista prossegue e agrava os conflitos que já existiam e os horrores que provocavam; a exploração dos trabalhadores e dos povos aumenta; a extrema-direita e forças fascistas, atuando em todos os espaços do conflito, aproveitam para "normalizar" a sua existência e vão-se credibilizando, facto que, no quadro de um deslizar político global para a Direita, deixa antever graves problemas políticos para o futuro.
No plano nacional, o contexto com que o Governo se depara, se estiver apostado em vencer problemas crónicos que impedem o desenvolvimento do país, é exigente. A desvalorização salarial e das profissões, a precariedade e o esvaziamento da negociação coletiva como fatores estratégicos do perfil da economia têm de ser abandonados. O caminho errado vem de trás, as políticas austeritárias agravaram-no, a pandemia evidenciou-o, mas acentuou-o, e há oportunistas a invocarem os impactos da guerra para se prosseguir no erro.
O PRR, os programas 20/30 e outros instrumentos de investimento têm de ser aplicados com rigor para que as empresas se posicionem melhor nas cadeias de valor. Isso não se resolve com a existência de um programa doutamente construído: impõe planeamento e políticas publicas bem desenhadas e ágeis. Será que o Governo vai ser capaz de construir políticas articuladas para respostas estruturais aos problemas demográfico, habitacional, das mobilidades, da pobreza e territorial? Ou vamos continuar a ter cada ministro ou secretário de Estado a aterrar aqui e ali com a sua agenda de ocasião?
Não é preciso ser bruxo para adivinhar que o deslizar para a Direita e a "normalização" da extrema-direita vão acentuar a tentação para afastar contributos das forças da Esquerda. Há que mobilizar a sociedade. O Governo tem condições e a obrigação de estar à altura dos desafios.
*Investigador e professor universitário
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