sexta-feira, 1 de abril de 2022

SOBRE A UCRÂNIA, A PALESTINA E CERTA HIPOCRISIA

Dois conflitos escancaram um estranho padrão da mídia ocidental. Em Kiev, os que enfrentam as tropas russas são “heróis”. Mas de “terrorista” é chamado, em Gaza, quem resiste à ocupação israelense. Nunca o duplo critério foi tão claro como hoje

Jonathan Cook no Middle East Eye | tradução de Maurício Ayer | em Outras Palavras

É simplesmente espantoso o modo como muitos jornalistas ocidentais, incluindo os repórteres da BBC, em geral cautelosos, estão desavergonhadamente babando ovo para jovens mulheres a produzir coquetéis molotov nas ruas de cidades ucranianas como Kiev.

De uma hora pra outra, passou a ser sexy fazer explosivos improvisados – pelo menos se a mídia te considerar um/a branco/a, europeu/eia e “civilizado/a”.

Pode causar perplexidade a outros movimentos de resistência mais antigos, especialmente no Oriente Médio. Eles invariavelmente se veem pintados como terroristas por fazerem basicamente a mesma coisa.

A dificuldade dos jornalistas ocidentais em conter sua identificação e apoio à “resistência” civil ucraniana deve parecer insólita, por exemplo, para os palestinos na estreita faixa de Gaza, que estão presos em uma gaiola de metal pelo ocupante militar israelense há décadas.

Os palestinos em Gaza fazem seus próprios coquetéis molotov. Mas como não conseguem se aproximar do exército israelense, eles têm que colocá-los em balões que se movem sobre a barreira de aço que circunda Gaza e assim entram em Israel, às vezes incendiando os campos.

Ninguém da BBC louvou estes “balões incendiários” como pequenos atos de resistência. Eles são atribuídos culposamente por tabela ao grupo governante de Gaza, o Hamas, cujo setor político foi recentemente designado pelo governo britânico como organização terrorista.

Dois pesos, duas medidas

Os palestinos em Gaza também sofreram um bloqueio comercial por parte de Israel nos últimos 15 anos, um bloqueio destinado a lhes impor uma “dieta de fome”. Manifestantes, incluindo mulheres, crianças e pessoas em cadeiras de rodas, surgem de tempos em tempos para atirar uma pedra na direção de distantes franco-atiradores israelenses, escondidos atrás de fortificações, como uma forma simbólica de exigir sua liberdade. Como resposta, frequentemente estes manifestantes têm sido baleados pelo exército israelense.

Eventualmente, a mídia ocidental concede uma pontual manifestação de aflição pelas vidas perdidas ou pelas pernas amputadas das pessoas alvejadas pelos atiradores. Mas nenhum deles torce por essa “resistência” palestina como o faz com a ucraniana. Mais comumente, os manifestantes são tratados como idiotas ou provocadores do Hamas.

Gaza, ao contrário da Ucrânia, não tem um exército, e seus combatentes, ao contrário da Ucrânia, não estão sendo armados pelo Ocidente.

O jornal The Guardian até censurou seu cartunista Steve Bell quando ele procurou retratar uma das vítimas dos atiradores de Israel, a enfermeira Razan al-Najjar, que tentava atender os feridos. O jornal alegou que a charge – da então primeira-ministra britânica, Theresa May, dando as boas-vindas a Londres a seu homólogo israelense, Benjamin Netanyahu, com al-Najjar como vítima sacrificial atrás deles na lareira – era antissemita.

Considerando que a mídia foi relutante no passado em encorajar pessoas comuns a enfrentar soldados bem armados – para evitar baixas civis – então por que essa política foi repentinamente abandonada na Ucrânia?

Os dois pesos e duas medidas são gritantes e estão por todo lado. É impossível alegar que os jornalistas que fazem isso ignorem as convenções jornalísticas vigente em outros contextos. Eles são em sua maioria veteranos das zonas de guerra do Oriente Médio, bem acostumados a cobrir Gaza, Bagdá, Nablus, Alepo e Trípoli.

Pondo gasolina na fogueira

O Reino Unido e outros países europeus optaram por botar gasolina na fogueira da resistência na Ucrânia, enviando armas que só podem levar a uma maior perda de vidas, especialmente de civis apanhados no fogo cruzado. Era de se esperar que a mídia britânica examinasse as implicações éticas dessa política, e também a hipocrisia. Mas não se vê sequer uma pitada disso.

Na verdade, grande parte da mídia não só tem atuado como lobistas para que mais armas sejam enviadas ao exército ucraniano, como também tem dado apoio aos civis no Reino Unido para que se envolvam mais nos combates.

Esse tem sido o caso mesmo depois que o Primeiro Ministro demarcou sua distância dos comentários de Liz Truss, a secretária de Relações Exteriores, de que os britânicos deveriam ser estimulados a se voluntariarem para as chamadas “legiões internacionais” na Ucrânia, supostamente para defender a Europa.

A posição de Truss estava em conflito com a prática usual do governo, que tem tratado como terroristas aqueles que se deslocam para lutar em zonas de guerra no Oriente Médio. Shamima Begum, que foi para a Síria aos 15 anos, foi destituída de sua cidadania britânica e lhe foi negado o direito de retornar por ter feito o que Truss propôs na Ucrânia.

No entanto, isso não dissuadiu a BBC de viajar para Essex para encontrar “Wozza”, um fornecedor do excedente dos kits do exército britânico que ele tem vendido a baixo custo aos ucranianos na Grã-Bretanha, para que eles possam ir para o fronte. Wozza foi mostrado arrancando as insígnias do Union Jack dos uniformes para que os milicianos ucranianos pudessem usá-los.

Compare isso com o tratamento dado a uma forma totalmente pacífica de resistência dos ocidentais em solidariedade aos palestinos, o movimento internacional Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Tem sido tratado como se estivesse a um fio do terrorismo, com proibições de apoio ao BDS na Europa e nos EUA.

“Imparcialidade” comprometida

É difícil lembrar, em meio a toda essa agitação midiática a respeito da Ucrânia, que esta cobertura simpática se opõe radicalmente a suas próprias convenções para reportagens. É inconcebível, evidentemente, que a Grã-Bretanha em algum momento envie armas para ajudar, por exemplo, Gaza a se libertar.

Por esse motivo, a mídia nunca terá a oportunidade de exercitar suas cordas vocais para indignar-se diante de um acontecimento como este.

Na verdade, a mídia ocidental quase sempre ecoa a oposição dos governos ocidentais a qualquer tipo de apoio a Gaza, mesmo o envio de materiais de construção como cimento para reconstruir o enclave após uma das intermitentes ondas de destruição de Israel. Isso porque os repórteres tratam sem críticas as alegações israelenses de que a ajuda humanitária será redirecionada pelo Hamas e reforçará o “terrorismo”.  

Em 2010, por exemplo, o programa da BBC Panorama deixou de mencionar que um ataque naval israelense contra um comboio de ajuda humanitária para a Gaza sitiada havia sido perpetrado ilegalmente em águas internacionais. Nove ativistas que tentavam entregar itens de apoio, como medicamentos, em Gaza, a bordo do navio Mavi Marmara, foram mortos por comandos israelenses. Mas as entrevistas com estes homens mascarados foram em marcadamente acríticas. Houve muito pouca simpatia da BBC por esse ato de resistência contra um ocupante brutal.

Um ano antes, a BBC rompeu com a tradição e se recusou a transmitir um apelo de ajuda que já acontece há muito tempo porque nesta ocasião era para fornecer comida e abrigo a Gaza, após um ataque israelense que destruiu setores do enclave. A BBC justificou a decisão alegando que ela comprometeria sua “imparcialidade” – algo com o que parece totalmente despreocupada na Ucrânia.

Até a data da publicação deste artigo, a BBC não havia respondido às perguntas sobre estas inconsistências.

Fumaça de guerra

Sabe-se que o campo de batalha rapidamente fica envolto pela fumaça da guerra. Esta é uma das razões pelas quais jornalistas inexperientes são advertidos por seus editores a esperar por provas e estar atentos à propaganda. Na prática, entretanto, pode-se avaliar para que lado pende a simpatia da mídia – oculta sob pretensas alegações de objetividade – notando quando e em favor de quem essas regras de cautela são abandonadas, e quais as narrativas de qual lado são aceitas rápida e acriticamente.

No Oriente Médio, é claro que os discursos estadunidenses, europeus e israelenses são facilmente amplificados, mesmo quando sua veracidade está em dúvida.

Essas mentiras alimentadas pela mídia têm sido abundantes. Que Israel exortou os palestinos que expulsou em 1948 a voltarem para casa. Que as tropas de Saddam Hussein arrancaram bebês de incubadoras no Kuwait, e que o líder iraquiano conspirou com seu arqui-inimigo, a Al-Qaeda, nos ataques do 11 de Setembro. Que os soldados de Muammar Gadaffi na Líbia tomaram viagra para estuprar civis em Benghazi. Que a Rússia pagou recompensas ao Talibã para matar soldados dos Estados Unidos no Afeganistão.

Essas notícias enganosas e fabricações foram manchetes quando foram úteis como propaganda, para apenas muito mais tarde serem silenciosamente retiradas.

No caso da Ucrânia, um padrão semelhante parece estar surgindo. Houve reportagens generalizadas, incitadoras e inteiramente fictícias na mídia ocidental sobre tropas russas massacrando um contingente de 13 soldados ucranianos na Ilha da Serpente, no Mar Negro. Foi divulgada uma falsa fita de áudio dos ucranianos supostamente amaldiçoando os invasores russos. O governo da Ucrânia prometeu a cada um deles um prêmio Herói da Ucrânia.

Mas, na verdade, as reportagens verdadeiras eram as da mídia russa. Havia 82 soldados ucranianos na ilha e eles haviam se rendido. Todos estavam vivos e bem. Em outro exemplo, um clipe de um videogame foi amplamente promovido como um piloto de caça ucraniano heroico e solitário, apelidado de Fantasma de Kiev, abatendo aviões e helicópteros russos.

A desinformação tem sido compartilhada de forma ainda mais agressiva nos relatos das redes sociais ocidentais, e a maior parte dela é feita para provocar simpatia pela Ucrânia e hostilidade à Rússia.

Operação de amaciamento

Mas o que estamos vendo na mídia é mais do que apenas um apetite especial por histórias sem provas e falsidades desde que sejam dirigidas contra a Rússia. E vai além da simpatia da mídia pela “resistência” ucraniana negada a outros grupos que lutam contra seus opressores, quando esses opressores são o Ocidente e seus aliados.

A mídia está abarrotada de comentaristas aptos a se mostrarem raivosamente tribais, muito mais do que os governos e generais ocidentais. O refrão da mídia clamando por “mais guerra” parece estar servindo como uma operação de amaciamento ideológico, abrindo o caminho para os governos enquanto se preparam para mais propaganda extremista e medidas antidemocráticas.

Junto com muitos outros, o comentarista Dan Hodges, do jornal Mail on Sunday, tem clamado por uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia que até Boris Johnson rejeitou por razões muito óbvias. Isso levaria a Europa a um confronto direto com a força aérea russa e arriscaria um confronto com uma potência nuclear.

No entanto, Hodges caracterizou qualquer rejeição a esta ideia como “um ato de apaziguamento que em nada difere do nosso apaziguamento em relação a Hitler em 1938”. A invasão da Rússia veio depois de quase uma década de ataques dos EUA, usando a Otan como cobertura para forjar relações militares cada vez mais próximas com o vizinho russo.

Com ou sem razão, Moscou interpretou o comportamento da Otan como um movimento agressivo dos EUA e de seus aliados em sua “área de influência”. A ideia de que nenhuma concessão poderia, e pode, ser feita à Rússia – que a única “escolha moral”, como Hodges a chama, é arriscar uma potencial guerra nuclear – deve ser entendida como uma provocação beligerante, pois é claramente disso que se trata.

O principal correspondente estrangeiro da NBC News, Richard Engel, tuitou o que ele viu como um “cálculo de risco” e um “dilema moral”: o Ocidente deveria bombardear um comboio de tanques russos a caminho de Kiev? Aparentemente preocupado com a atual inação, ele perguntou: “Será que o Ocidente observa em silêncio enquanto ele passa?”

Hipocrisia total

Condeleeza Rice, uma das arquitetas da invasão criminosa do Iraque, não foi confrontada pela mídia por sua total hipocrisia ao argumentar que “quando você invade uma nação soberana, isso é um crime de guerra”. Se esse é o caso – e a lei internacional diz que é – então a própria Rice deveria estar em julgamento em Haia.

Ou o que dizer do horror da mídia esta semana no bombardeio de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, no qual “dezenas” de pessoas foram mortas? Compare isso com a excitação ofegante da mídia a respeito do bombardeio seguindo a doutrina do “Choque e Pavor” que provavelmente matou milhares de pessoas logo nas primeiras horas da invasão dos EUA no Iraque em 2003. 

E o silêncio de total cumplicidade da mídia durante seguidos anos de bombardeios sauditas – usando aviões e bombas britânicas – contra civis no Iêmen, levando o país a uma catástrofe humanitária quase inimaginável? Os que resistem no Iêmen ao show de horror saudita não são heróis para nossa mídia, são simplesmente descartados como marionetes do Irã?

O veterano jornalista da BBC Jeremy Vine, por sua vez, expressou a opinião de que os soldados russos recrutados “merecem morrer” quando vestem um uniforme do exército russo. “A vida é assim”, disse ele a um chocado entrevistador em seu programa.

Será que Vine pensava que os soldados britânicos e americanos – soldados profissionais, ao contrário dos recrutas russos – também mereciam morrer quando seus exércitos invadiram ilegalmente o Iraque? E se não, por que não?

É difícil não notar a escala dos leves aos intensos tons racistas de grande parte da cobertura ocidental – em que comentaristas e entrevistados enfatizam regularmente como os refugiados ucranianos são “europeus”, “civilizados”, “de cabelos loiros e olhos azuis”.

Propaganda estatal

Em meio a essa desenfreada – e não raro desconcertante – propaganda de guerra ocidental, da qual grande parte vem da emissora estatal britânica, a Europa baniu a emissora estatal russa RT de suas ondas aéreas, enquanto o Vale do Silício raspa fora sua presença na Internet.

Não há dúvida de que a RT geralmente promove uma linha editorial amplamente simpática aos objetivos da política externa de Moscou, assim como a BBC pode ser invariavelmente confiável para promover uma linha editorial amplamente simpática aos objetivos da política externa britânica.

O problema para o público ocidental não é sua exposição à propaganda estatal russa. É sua constante exposição à implacável propaganda estatal ocidental.

Se buscamos a paz – e há poucos indícios disso no momento –, então precisamos que a mídia ocidental seja responsabilizada por seu chauvinismo beligerante sem sentido, seus exageros, sua credulidade, sua duplicidade de critérios e suas enganações. Mas quem vai cumprir o papel de cão de guarda do suposto cão de guarda do Quarto Poder? But who is going to act as a watchdog on the supposed watchdog of the Fourth Estate?

Neste momento, precisamos ouvir as vozes da Rússia para entender o que Putin pensa e quer, não o que pensa e quer o “principal correspondente internacional” da BBC. Precisamos de fontes de informação prontas a desafiar rapidamente tanto as “fake news” ocidentais quanto as russas.

E acima de tudo precisamos parar com nossa visão racista do mundo, na qual somos sempre os Mocinhos e eles são sempre os Bandidos, e na qual nosso sofrimento importa e o sofrimento dos outros não.

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*Jonathan Cook foi vencedor do Prêmio Especial Martha Gellhorn de Jornalismo. Escreve com frequência em seu site. Seus trabalhos mais recentes são os livros: “Israel and the Clash of Civilisations: Iraq, Iran and the Plan to Remake the Middle East” (Pluto Press) e “Disappearing Palestine: Israel’s Experiments in Human Despair” (Zed Books).

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