sábado, 7 de maio de 2022

TODAS AS CRIANÇAS SÃO IGUAIS?

Manuel Augusto Araújo | Praça do Bocage

Todos os dias os canais televisivos exibem um anúncio da Unicef, tem sido utilizado com o mesmo fim por outras empresas, que alerta para a situação das crianças na Ucrânia, solicitando apoio. Nada mais justo e correcto. As crianças são as mais frágeis vitimas emocionais das barbaridades da guerra a que são sujeitas. São as suas mais indefesas vítimas e os choques psicológicos que sofreram e sofrem mesmo quando subtraídas às mais violentas imagens tendo sido refugiadas noutros lugares não se apagam. As marcas de todas as situações que viveram, de que tenham maior ou menor memória em função da sua idade, vão acompanhá-las ao longo da vida. O trabalho que a Unicef desenvolve na Ucrânia inscreve-se no trabalho que ao longo dos anos tem realizado em mais de 190 países, para salvar a vida de crianças, defender os seus direitos, apoiando-as da infância à adolescência. Faz bem a Unicef em chamar a atenção para a situação actual da Ucrânia. Faz bem, fazendo mal porque a situação das crianças na Ucrânia está muito longe de ser nos dias de hoje a mais alarmante, a mais grave vivida pelas crianças noutras partes do mundo, o que é reconhecido pela própria Unicef quando traça o quadro catastrófico vivido no Iemen, em que neste momento 12 milhões de crianças, mais que a população de Portugal, precisam de assistência humanitária. Em que uma criança em cada dez minutos morre à fome ou por doenças que podem ser prevenidas, em que cerca de 2 milhões de crianças (com menos de 5 anos) sofrem de subnutrição aguda grave; 37% das crianças com menos de 1 ano não estão vacinadas; 2 milhões de crianças não têm acesso a educação; existe quase um milhão de casos suspeitos de cólera. A Unicef está no Iemen a fazer um trabalho de grande envergadura em condições extremamente adversas. O que é estranho é que sendo as condições de vidas das crianças iemenitas muitíssimo mais calamitosa que a das crianças ucranianas nunca tenhamos visto um anúncio, nem sequer semanal ou mensal, sobre essa situação enquanto o das crianças ucranianas é várias vezes exibido diariamente. É evidente que deve ser exibido, mas acentua a diferença de tratamento mediático entre uma e outras o que não é caso isolado, lembrem-se as crianças no Iraque, as que sobreviveram às quinhentas mil assassinadas pelos EUA que Madeleine Allbright justificava como danos colaterais, às da Síria sujeitas às violências do Daesh – Estado Islâmico, noutras partes do mundo como se pode ler nos relatórios da Unicef. A diferença, a diferença abismal está no tratamento mediático desses relatórios, em linha com a tremenda diferença com que os media corporativos tratam os problemas dos refugiados conforme a sua origem. A diferença, em relação à Unicef está no desvelo, não o desvelo de tratamento físico, mas o desvelo colocado pelos muitos anúncios que chamam e bem a atenção para um caso específico enquanto outros, até mais graves e impondo cuidados mais urgentes e imediatos não merecem ser publicitados, ficam na nuvem do olvido, entregues à boa consciência de relatórios que poucos lêem. Diferença que se fará sentir no volume de donativos, isso a Unicef não ignora, não pode ignorar.

Pano de fundo o mesmo problema de sempre: o eurocentrismo imposto pelos países mais ricos que construíram a sua riqueza, o seu progresso pelo domínio que o Ocidente exerce desde o séc. XVI explorando brutalmente o resto do universo, as suas riquezas em matérias-primas a sua mão de obra, durante séculos escravizada. Exploração que lhe possibilitou ser arauto de valores civilizacionais que continua a negar aos outros e que sempre manifestou em alta grita, das mais variadas formas cínicas e hipócritas. Lembre-se o que Aimé Cesaire, esse extraordinário poeta negro e introdutor com Leopold Senghor do conceito de negritude, escreveu sobre o Holocausto: «basicamente o que o burguês não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem…é o crime contra o homem branco!». Ao olharmos para o anúncio da Unicef sobre as crianças ucranianas e pensarmos nos milhões de crianças que em todo o mundo estão a sofrer violências, iguais, maiores ou menores, sem direito a uma imagem publicitária nos media a actualidade de Aimé Cesaire é flagrante, devía-se sentir alguma vergonha, mesmo sem se extrapolar e inscrever esse anúncio de apelo suavemente emotivo, na desinformação diária dos enviados especiais que só estão de um lado a fazer perguntas capciosas; nas conversas em família de Zelensky a ler pior ou melhor os teletextos que alguém escreve com objectivos precisos; os números de stand-up comedy dos informes da Casa Branca, aos tempos de antena conferidos à propaganda fascista feita por presidentes ou não de associações ucranianas ou de uma embaixadora que goza de imunidade diplomática e a explora perante a passividade de um governo que parece desconhecer a pouca soberania que ainda pode exercer. Em relação à Unicef que tem uma vocação universal e que desde a sua fundação tem enfrentado e superado inúmeras dificuldades para cumprir o seu mais que meritório trabalho, não se entende esta tónica quando tão ou mais graves e emergentes situações enfrentam noutras partes do mundo. O mínimo exigível era uma chamada de atenção para elas.

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