sexta-feira, 3 de junho de 2022

ARMAS BIOLÓGICAS, UM PERIGO QUE NÃO SE QUER COMBATER

Nazanin Armanian, Pedro López López *

«É particularmente preocupante a existência de laboratórios biológicos secretos tanto na Ucrânia como em outros lugares. Que a actividade seja secreta não augura nada de bom, obviamente que o sigilo não é necessário para realizar actividades legais e legítimas. Assim, o desenvolvimento de investigação destinada à fabricação de armas biológicas, considerado criminoso pelo Estatuto de Roma e outras normas, deve ser qualificado como actividade criminosa e, portanto, é lógico é que seja uma actividade punível dada a sua gravidade.»

Durante a que Putin designou como “Operação Militar Especial”, as forças russas afirmam ter descoberto provas que demonstrariam que o Ministério da Saúde da Ucrânia estava envolvido numa limpeza de emergência com a tarefa de levar a cabo uma destruição completa de bioagentes; afirmam também ter descoberto documentos semi-destruídos relacionados com uma operação secreta dos EUA em laboratórios em Kharkiv e Poltava, insistindo no carácter altamente militarizado dos biolaboratórios ucranianos e num excesso de patógenos.

A este respeito, a China solicitou uma investigação internacional sobre as actividades biológicas militares na Ucrânia. A Ucrânia, por sua vez, insiste em que as instalações eram civis e dedicadas à saúde pública e que, segundo as instruções da OMS, destruíram qualquer agente altamente perigoso para evitar o risco de surtos no caso de um laboratório ser atingido pelas forças russas.

Entretanto, as respostas de Washington apenas aumentam a preocupação e as suspeitas. A subsecretária de Estado Victoria Nuland reconhece a existência de biolaboratórios secretos dos EUA na Ucrânia, tal como reconhece ter recomendado a destruição das provas antes que caíssem em mãos russas (”Estamos a trabalhar com os ucranianos sobre como podem impedir que qualquer desses materiais de investigação caia nas mãos das forças russas”, declarou. Naturalmente que não falta a acusação à outra parte; assim, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, acusa a Rússia de procurar um pretexto para lançar o seu próprio ataque com armas biológicas contra a Ucrânia.

A guerra biológica, ou guerra bacteriológica, é o uso de toxinas biológicas ou agentes infecciosos, como bactérias, vírus, insectos e fungos com a intenção de matar, prejudicar ou incapacitar humanos, animais ou plantas como acto de guerra.

Muitos séculos passaram até que a algum comandante militar ocorrreu utilizar dardos envenenados para matar com sofrimento as tropas inimigas; mais tarde, as armas foram aperfeiçoadas enviando pacientes de tularemia a terras inimigas, os poços ou os cavalos do inimigo foram envenenados com o fungo do ergot. Já mais próximo dos nossos tempos, ocorreu ao comandante-em-chefe das forças britânicas na América do Norte, Sir Jeffrey Amherst, enviar varíola às “tribos de índios descontentes”, embora tenha sido o antraz a arma biológica mais utilizada desde o início do séc. século XX.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha usou antraz e mormo para fazer adoecer os cavalos das tropas norte-americanas e francesas, e os franceses infectaram os pobres animais da cavalaria alemã com burkholderia. O Protocolo de Genebra de 1925 proíbe o uso, mas não a posse, o desenvolvimento e o armazenamento de armas biológicas e químicas. Além disso, os estados poderiam recorrer a essas armas como represália a um bioataque.

O Exército Imperial Japonês produziu armas biológicas e usou-as contra soldados e civis chineses durante a Segunda Guerra Mundial: bombardearam Ning-Bó com bombas cheias de pulgas que transportavam a peste bubónica. O Reino Unido fez o mesmo testando tularemia, antraz, brucelose e botulismo na ilha de Gruinard, na Escócia.

As bioguerras dos EUA

Apesar de os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética terem assinado em 1972 a Convenção sobre Armas Biológicas, que proíbe o desenvolvimento, produção, aquisição, transferência, armazenamento e uso de armas biológicas, continuaram com os seus projectos, embora o país norte-americano seja o único a usá-los massivamente, tanto contra a sua própria população como contra outras nações.

Entre 20 e 27 de setembro de 1950, na chamada Operação Sea-Spray, a Marinha dos Estados Unidos lançou, a partir de mangueiras gigantes a bordo de um draga-minas, uma forte dose de bactérias Serratia Marcescens e Bacillus Globigii em forma de nuvem, sobre 800.000 habitantes da Baía de São Francisco, com o objectivo de monitorar a vulnerabilidade de uma grande cidade a um ataque biológico, a sua pegada sobre o meio ambiente e a forma adequada de o deter. É uma das maiores experiências com armas bacteriológicas da história, e ficou conhecida em 1976 devido a uma investigação do jornal Longday Newsday. Em outra Operação, a Big Buzz (1955), o Pentágono produziu um milhão de mosquitos A.aegupti e colocou 300.000 deles em munições para serem lançadas de aviões sobre o estado da Geórgia, em busca de sangue humano.

E as “operações” continuaram: sob a designação da Operação Ranch Hand (1962-1971), lançada contra o Vietname, os Estados Unidos usaram bioherbicidas e micoherbicidas (Agente Laranja) para destruir florestas e plantações do país asiático, deixando três milhões de mortos e meio milhão de crianças nascidas com malformações congénitas. Sob pressão da opinião pública, Nixon proibiu em 1969 a investigação de tais armas para uso ofensivo, embora não para uso defensivo.

Mas talvez nenhuma dessas armas possa ser tão barata como o que foi chegando depois. Após décadas de investigação, concluíram que podem ser mortas 600.000 pessoas por apenas US$ 0,29 por cabeça, embora o objectivo das empresas de armas não seja matar mais pessoas, mas ganhar mais dinheiro: é melhor uma mini bomba nuclear de 16 quilos que custa 10 milhões de dólares. Segundo a Newsweek, a Agência de Projectos de Investigação Avançada de Defesa dos EUA (DARPA) está a criar uma nova categoria de armas biológicas que seriam enviadas por meio de insectos infectados por vírus: a guerra entomológica (de insectos).

Segundo a China, os Estados Unidos, que insistem na destruição dessas armas químicas e biológicas de outros países, são o único país que as possui e recusam-se a destruir as suas.

Em 1982, o Exército dos EUA realizou uma experiência com flebotomíneos para que transportassem os vírus da dengue, Zika, chikungunya e a encefalite equina oriental; obviamente, não se trata exactamente de uma arma “defensiva”.

E enquanto em 2002 acusava o Iraque de ter armas químicas e bacteriológicas como o antraz, escondia ao mundo que os envelopes com esporos dessa bactéria e destinatários civis norte-americanos eram colocados em caixas de correio a partir dos próprios Estados Unidos (laboratório bioterrorista da base militar de Fort Detrick) por um militar compatriota chamado Bruce Ivins. Anos depois, em 2015, um laboratório norte-americano no Utah enviou “por engano” amostras vivas de antraz para uma das suas bases militares na Coreia do Sul.

Após a morte em massa de gado por uma doença rara perto do laboratório do Pentágono em Alma-Ata, Cazaquistão, em Julho de 2021, os partidos socialistas e comunistas do Cazaquistão, Geórgia, Letónia e Paquistão exigiram o encerramento dos laboratórios biológicos militares dos Estados Unidos na Ásia Central, certificando as actividades criminosas dos biolaboratórios militares.

O perigo do antraz é tal que durante um incidente em Sverdlovsk, na União Soviética, quando esporos de antraz foram acidentalmente liberados de uma instalação militar em 2 de Abril de 1979, cem pessoas morreram. Este acidente foi chamado “o Chernobyl biológico”.

Como podemos proteger-nos desse tipo de armas e investigação destinada não a objectivos militares legítimos, mas à população civil e a causar danos desnecessários do ponto de vista militar? O sistema de protecção dos direitos humanos, uma arquitectura construída ao longo de muitas décadas, prevê instrumentos que, se funcionassem efectivamente, evitariam a maioria dos conflitos internacionais, e em particular os conflitos armados, verdadeira finalidade da criação das Nações Unidas (“Nós, os povos das Nações Unidas resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra…”, diz a primeira frase da Carta das Nações Unidas). Os três pilares da protecção dos direitos humanos – o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Penal Internacional e o Direito Internacional Humanitário - surgiram após um longo processo no qual intervieram juristas de extraordinário prestígio e mérito: De Lemkin e Lauterpacht para conceber os crimes de genocídio e contra a humanidade, a Louis Joinet com o seu relatório contra a impunidade, passando pelo jurista russo F.F. Martens (autor da famosa “cláusula Martens” ainda citada em autos). O enorme e talentoso trabalho de juristas desta categoria é espezinhado pela realpolitik. Uma conferência recente do diplomata José Antonio Zorrilla lembrava o princípio pelo qual se rege a política internacional, que nada mais é do que a luta acirrada pelo poder em função dos interesses nacionais, sem considerações morais nem jurídicas.

Infelizmente, em matéria de direitos humanos, o direito internacional não dispõe de meios de coerção nem de sanção para punir os crimes internacionais (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão), excepto nos casos de criminosos pertencentes a países fracos. É assim que o Tribunal Penal Internacional em mais de duas décadas apenas resolveu nove casos; é assim que o crime de genocídio, aprovado em 1948, só foi aplicado em 1998 (caso Ruanda). As guerras e os inúmeros atropelos instigados pela NATO, os crimes cometidos pelas suas tropas permaneceram fora do radar do Tribunal Penal Internacional.

Se algum dia se conseguisse que o aparelho sancionador funcionasse e os crimes fossem punidos independentemente de quem fossem os seus perpetradores, sem duplo critério, talvez estivéssemos a um passo de evitar guerras. Essa evolução permitiria, além de o Tribunal Penal Internacional ser respeitado pelos países poderosos - no sentido de que governantes e militares de alta patente desses países poderiam ser processados -, contemplar acções que deveriam ser criminosas e que não são hoje contempladas na descrição dos comportamentos que configuram os crimes de genocídio ou contra a humanidade, ou que embora sejam contemplados, não são objecto de vigilância. É o caso dos que podem ser considerados crimes económicos contra a humanidade (decisões que são tomadas sabendo que custarão milhares ou milhões de vidas, como no caso da especulação com alimentos ou com medicamentos), ou negligência no controlo do tráfico de armas para países que não respeitam os direitos humanos (empresas espanholas que exportam armas para a Arábia Saudita, por exemplo), ou as actividades de investigação sobre armas proibidas, como as químicas e bacteriológicas, por exemplo.

Como vimos acima, vão-se acumulando dados e provas sobre a existência de laboratórios biológicos secretos que investigam este tipo de armamento, proibido pela Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (1972), cujo controlo está longe de ser satisfatório. Certamente que isso decorre do facto de que investigar o desenvolvimento desse tipo de armas altamente letais e logicamente proibidas pode ser complicado e requer uma vontade política que hoje não existe. No entanto, o direito penal internacional considera que “a realização de experiências médicas e científicas é penalizada quando não obedece a fins terapêuticos, mas apenas à obtenção de conhecimento científico” (Gerhard Werle, Tratado de Direito Penal Internacional, § 904). Por outro lado, uma emenda de 2017 ao artigo 8º do Estatuto (crimes de guerra, armas biológicas) “introduziu um artigo que define como crime de guerra o uso de armas que utilizam agentes microbianos ou outros agentes biológicos, ou toxinas, qualquer que seja a sua origem ou método de produção”.

Quando são encontrados casos do que o Ocidente considera inimigos (por exemplo, Saddam Hussein, Bashar al Assad ou actualmente Putin), recebemos informações detalhadas (por vezes falsas) de como eles utilizaram armamento proibido, mas quando o uso ficou a cargo “dos nossos”, não se encontra a informação nos media hegemónicos. São casos como o Iraque (o documentário Falluja, o massacre oculto, que mostra os efeitos devastadores das armas químicas usadas pelos Estados Unidos, que curiosamente é difícil de encontrar) ou o Afeganistão, onde foram empregues armas químicas proibidas pela Convenção sobre Armas Químicas (1993 ).

No entanto, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, permitiu-se recentemente declarar com total indignação que nos dias de hoje na Ucrânia “qualquer uso de armas químicas mudaria enormemente a natureza do conflito, seria uma violação flagrante do direito internacional e teria consequências generalizadas e graves”. Deve notar-se que os Estados Unidos são parte tanto da Convenção sobre Armas Bacteriológicas como da Convenção sobre Armas Químicas.

É particularmente preocupante a existência de laboratórios biológicos secretos tanto na Ucrânia como em outros lugares. Que a actividade seja secreta não augura nada de bom, obviamente que o sigilo não é necessário para realizar actividades legais e legítimas. Assim, o desenvolvimento de investigação destinada à fabricação de armas biológicas, considerado criminoso pelo Estatuto de Roma e outras normas, deve ser qualificado como actividade criminosa e, portanto, é lógico é que seja uma actividade punível dada a sua gravidade.

Quando estará a comunidade internacional disposta a processar eficazmente as actividades clandestinas de investigação de armas que são proibidas devido ao seu alto nível de criminalidade? Para isso, é necessária vontade política e acordos tanto na punição como no controlo. Talvez, assim, contribuíssemos para forjar uma sociedade um pouco mais decente do que a que temos.

O Diário.info | Fonte: Público

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