A recessão e o desemprego que resultam de uma política ao serviço dos credores atingirão os elos mais fracos, ou seja, os países endividados como Portugal e em particular as suas classes trabalhadoras
João Rodrigues | Setenta e Quatro
No meio de tantas crises entrelaçadas, até parece que as elites da União Europeia (UE) têm um plano. Se assim for, é caso para dizer que este combina uma avaliação equivocada da relação de forças, subordinação aos EUA e à sua aposta na corrida armamentista, dirigida em última instância contra a China, sem esquecer o tradicional enviesamento de classe inscrito na zona euro.
Podemos começar com a escalada sancionatória: a UE seguiu acriticamente os EUA, mas estes estão confortavelmente sentados em cima de recursos energéticos para exportar a preços mais elevados. Aparentemente na UE não se esperava que a Rússia aguentasse o embate e retaliasse, usando o gás como arma, como parece estar a acontecer. O imperialismo ocidental está habituado a sancionar e a destruir países mais fracos.
Dado que se trata de uma potência energética euroasiática, com décadas de ligações a países da UE, os resultados perversos estão sobretudo à vista neste continente: preços da energia com aumentos drásticos, pressões inflacionárias crescentes, espectro do racionamento de gás, maior dependência energética dos EUA e de outros países na vanguarda dos direitos humanos, como a Arábia Saudita ou o Qatar, de resto clientes das indústrias de guerra insufladas. E isto para já não falar do primeiro défice comercial registado pela Alemanha desde o início da década de 90. Entretanto, as centrais a carvão alemãs lá terão de funcionar.
Angela Merkel, antiga heroína do extremo-centro europeísta, entretanto caída em desgraça, advertiu recentemente para a dificuldade em isolar a Rússia a prazo e para o perigo de uma relação mais intensa desta com a China: “não tenho a certeza de que isto acabe bem para nós”, afiançou. Há de facto um ou outro detalhe que talvez não tenha sido tido suficientemente em consideração no tal plano: o mundo está a tornar-se verdadeiramente multipolar.
Nos círculos europeístas há, entretanto, uma grande esperança no reforço da integração. Na realidade, uma nova crise na sempre periclitante zona euro parece pelo menos igualmente provável, dado que do tal plano faz parte a perversa subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu (BCE) para debelar as pressões inflacionárias. E isto apesar da própria Christine Lagarde já ter reconhecido que “se subir as taxas de juro hoje, tal não fará descer os preços da energia”.
A recessão e o desemprego que resultam de uma política ao serviço dos credores atingirão os elos mais fracos, ou seja, os países endividados como Portugal e em particular as suas classes trabalhadoras. Para estas classes, o conselho das instituições europeias e dos governos que lhes são submissos é o mesmo de sempre: aguenta, aguenta. No euro, os salários são a variável de ajustamento, seja em contexto deflacionário, seja em contexto inflacionário. É para isso que serve o desemprego promovido pelas mais difíceis condições de crédito e pela austeridade que inevitavelmente se seguirá.
O espectro da “fragmentação”, ou seja, de grandes discrepâncias entre as taxas de juro pagas pelo centro e pela periferia, é a declinação financeira de uma zona euro marcada pela instabilidade, intrínseca à opção de não garantir a solvência da dívida através do Banco Central. Para compensar, o BCE garante que tem um misterioso instrumento, a revelar oportunamente em data não definida, para evitar a fragmentação. Sabemos qual é: ou compra dívida e segura os juros da periferia ou nada feito. Na Alemanha, onde os credores têm mais poder, há quem não goste desta política.
Realmente, isto assim não vai acabar bem para nós. E se calhar também não para eles.
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