quarta-feira, 6 de julho de 2022

Portugal | E QUALQUER COISA DE ESQUERDA PEDRO NUNO SANTOS?

Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião

Há uma semana, fiz uma experiência: perguntei no Twitter quem sabia o que é o programa de arrendamento acessível e o tinha já usado, como proprietário ou possível arrendatário.

Mais de metade das respostas identificaram o programa errado: acharam que a pergunta era sobre os programas autárquicos com o mesmo nome (foi uma ideia mesmo boa fazer coisas diferentes com nomes iguais, não foi?), nomeadamente da Câmara de Lisboa, que disponibilizam, por concurso, casas com renda controlada construídas com investimento público. Só meia dúzia de pessoas mostraram saber que estava a falar de um programa nacional lançado em 2019 no qual os proprietários beneficiam de desconto total do IRS relativo às rendas se aceitarem fixá-las, num contrato de cinco anos, até um determinado valor (indicado após fornecerem os elementos do imóvel), que será alegadamente 20% abaixo do praticado pelo mercado na zona.

Dessas pessoas que sabiam de que programa se tratava umas quatro, todas na situação de prospetivo inquilino, já tinham tentado a sua sorte - sem nenhuma, porém. Porquê, perguntei. Uma delas disse-me que quando se inscreveu no portal do arrendamento acessível, há um ano, encontrara apenas 13 casas disponíveis na região de Lisboa. Outro disse-me que neste momento a oferta subira um pouco; agora havia 20 e tal na mesma zona. Mesmo supondo que, de acordo com as características do programa, as casas que surgem a quem se inscreve são as de dimensão adequada ao agregado familiar do interessado (por exemplo, se se tratar de um T4, tem de ser constituído por quatro pessoas; se se tratar de uma pessoa só, apenas pode aceder a T1 ou T0), é obviamente muito pouco.

Não é uma surpresa: quando há pouco mais de um ano escrevi pela primeira vez sobre este programa, tinha sido anunciado pela então secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves, que havia registo de apenas 335 contratos assinados por via dele. 335 contratos em todo o país.

A conclusão da governante foi de que não se tratava claramente de um sucesso, mas que não sabia como resolver: "Como é que consigo tornar mais atrativo um programa que dá isenção fiscal total?" Alguns meses depois, a Associação Lisbonense dos Proprietários afirmava que segundo um inquérito por si efetuado (não se lhe conhecendo o grau de fiabilidade) junto dos proprietários de imóveis de habitação, apenas 2,3% dos respondentes tinha aderido ao mesmo ou aos programas de arrendamento acessível das autarquias. A esmagadora maioria não aderente apresentava como justificação não confiarem na manutenção dos termos contratuais e dos benefícios fiscais concedidos.

É claro que estas justificações dos proprietários deverão esconder outras, como o facto de não gostarem especialmente de iniciar uma relação contratual, quando ainda não conhecem o inquilino, com um prazo de cinco anos, e considerarem que podem ganhar mais apostando na subida dos preços, mesmo pagando o imposto por inteiro.

Mas há que dizer que os dois motivos apresentados fazem todo o sentido: lembre-se que nos últimos 16 anos as leis relativas ao arrendamento foram alteradas repetidamente - a ponto de nem os juristas que lidam com o setor saberem bem o que está e não está em vigor, quanto mais os não especialistas - e sempre no sentido da penalização dos proprietários. Quem lhes garante que fazem um contrato de cinco anos a preço controlado, contando com o desconto total de IRS, e que a meio não se acaba o benefício fiscal? Absolutamente ninguém.

E, no entanto, o programa de arrendamento acessível parecia à partida uma boa ideia, passível de aumentar, através de subsidiação pública (o citado desconto total de IRS), a oferta de habitação com renda controlada. Como não aconteceu nada disso, era de esperar que ao fim de três anos de vigência aparecesse uma avaliação que permitisse reformulá-lo, torná-lo mais atrativo, mais eficaz - ouvindo proprietários e candidatos a arrendatários, ou seja, os interessados.

Nada disso, que tenha dado conta, está a ser feito, mesmo se o ministro da tutela, Pedro Nuno Santos, anunciou em maio a criação de um "grupo de trabalho para as questões da habitação" para "ver o que está a ser feito noutros países da UE e, havendo condições, aplicar em Portugal", ao mesmo tempo que afirmava: "Regular rendas não é solução mágica porque podia ter o efeito contrário de minguar a oferta".

A ver se nos entendemos: a habitação é um setor problemático em Portugal há décadas. Sempre teve enormes carências e nunca assistimos, em democracia, a políticas públicas de habitação dignas do nome (o PER - Programa Especial de Realojamento, criado em 1993 para tentar acabar com os bairros de barracas, foi a única iniciativa nesse sentido, mas está longe de ser uma política pública de habitação com princípio, meio e fim). Desde 2016, com o brutal aumento de preços que, em linha com o que se passa na Europa, se tem vindo a verificar tanto no arrendamento como na venda, a habitação deveria ser uma prioridade governamental - ainda mais num executivo de esquerda.

Ora o primeiro executivo de António Costa lançou em 2018 um conjunto de programas para a área. O Arrendamento Acessível é um deles - e por acaso é um programa que visa a regulação das rendas. Pelo lado do incentivo aos proprietários, mas visa: entrar no programa implica cobrar uma renda regulada.. Já o congelamento das rendas anteriores a 1990, que foi desde 2016 progressivamente alargado (neste momento já nem sei se tem data final aprazada) com os votos do PS, é uma pura regulação de rendas, e à bruta, até hoje onerando os proprietários com o custo de uma assistência social que a lei previa desde 2006, através de uma lei apresentada por António Costa enquanto ministro da Administração Interna, dever ser assumida pelo Estado através da subsidiação dos inquilinos necessitados - subsídio que o atual executivo apresenta agora como novidade.

Não se percebe pois o que leva Pedro Nuno Santos a "afastar qualquer hipótese de avançar com uma regulação de rendas": os executivos do PS de que faz parte desde 2015 têm desenvolvido políticas nesse sentido. O que o ministro está a dizer é outra coisa: não quer "assustar o mercado". O mercado que considera, segundo uma notícia também de maio, "Lisboa como rising star no segmento residencial europeu" e "destino internacional residencial de peso", e que está a vender e arrendar a capital e cada vez mais o resto do país a compradores e inquilinos estrangeiros, com uma capacidade financeira que esmaga a dos nacionais.

Sucede que não há forma nenhuma de ter uma política de habitação que responda às necessidades imediatas dos cidadãos nacionais, com salários nacionais, que não ponha em causa os interesses de um mercado imobiliário tresloucado. Não há política de esquerda nesta área que não implique intervir, e com caráter de urgência, no mercado. Com justiça e cuidado e inteligência e atenção à eficácia, ou seja, avaliando, mas regulando - é esse o papel do Estado. Era de esperar de Pedro Nuno Santos e do PS que compreendessem isso.

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