A direita é incapaz de traçar um diagnóstico sobre as causas da situação do país porque isso obrigá-la-ia a responsabilizar governos seus. E, na ausência desse diagnóstico consistente, tem poucas e más alternativas: fazer um discurso vazio de políticas, repetir chavões ou esconder dos portugueses o seu verdadeiro programa, mentindo sobre o que vai fazer quando for governo.
João Ramos de Almeida* | Setenta e Quatro
A direita em Portugal tem dois pecados originais.
Primeiro. É incapaz de traçar um diagnóstico sobre as causas da situação do país porque isso obrigá-la-ia ou a responsabilizar governos seus; ou, para se manter coerente com o defendido ao longo de décadas, a ter de propor medidas tão gravosas para a maioria dos portugueses, que lhe retiraria apoio eleitoral suficiente para a guindar ao poder.
Segundo. Na ausência desse diagnóstico consistente, a direita tem poucas e más alternativas. Ou faz um discurso vazio de políticas, repetindo chavões e cavalgando a conjuntura; ou traça um falso diagnóstico, com falsas soluções; ou esconde dos portugueses o seu verdadeiro programa e mente sobre o que vai fazer quando for governo. De qualquer forma, isso faz com que o seu discurso seja sempre vazio de ideias, de reformas. E ai de quem lhe peça ideias ou propostas, porque a resposta será: o Governo governa, a oposição vigia.
Já foi assim com Rui Rio (aqui e aqui). E já está a ser com Luís Montenegro. Veja-se o seu discurso de domingo passado, no Pontal. Luís Montenegro fez bem o discurso de oposição. Chama a atenção para a realidade material do empobrecimento das pessoas, na vida dos milhões de trabalhadores, no ativo ou na reforma.
“Nós temos em Portugal quase um milhão de pessoas que ganham o salário mínimo e temos em Portugal cada vez mais o salário mínimo a encostar ao salário médio. Nós temos em Portugal 2,3 milhões pensionistas e reformados cujo rendimento não vai além de 1097 euros. Nós temos em Portugal 2,3 milhões que estão na vida activa e cujo rendimento mensal não vai além de mil euros. Nós temos em Portugal 86% dos jovens cujo rendimento mensal não vai além de 1158 euros. Nós temos, portanto, uma sociedade nivelada por baixo, onde cada vez mais as pessoas recebem menos e o mesmo e o mesmo o SMN ou muito pouco acima do SMN”.
Mas da sua boca não se lhe ouviu uma palavra sobre as políticas laborais dos governos de direita, nomeadamente do de Durão Barroso (durante o qual se aprovou o Código do Trabalho que deu a primeira machadada na negociação colectiva) ou do de Passos/Portas que Luís Montenegro apoiou tão veementemente no Parlamento e no Pontal (“eu tive e tenho muita honra e muito orgulho de ter estado ao teu lado”). Essas medidas, que se foram consolidando nos mandatos do PS desde 2005, visaram precisamente conter, desvalorizar, reduzir os salários como forma de dar competitividade às empresas nacionais. Aliás, Montenegro nada diz sobre a posição contrária do PSD – tal como a das confederações patronais - à subida do salário mínimo.
Por outro lado, Montenegro tão-pouco aborda as causas estruturais do empobrecimento do país ou pelo menos do não crescimento em volume verificado há duas décadas – sejam elas, internacionais e europeias, monetário-cambiais, institucionais, sectoriais, etc. Na cabeça de Montenegro, tudo parece ser um problema conjuntural de má gestão, de mau governo e, sobretudo, de más contas públicas. A enumeração que Montenegro fez dos “casos de governo” serve-lhe para concluir apenas que o “PS confunde o partido com o Estado”, mas não adianta uma ideia sobre a incapacidade de Portugal para se desenvolver e como resolver esse nó górdio.
Pior: Luís Montenegro chegou mesmo a afirmar que não tem ainda... alternativa. Disse ele: “Este processo de empobrecimento não tem nenhuma expectativa de poder ser quebrado nos próximos anos porque (...) este Governo (...) não mudou nada face aquilo que fez nos últimos anos. E por isso aquilo que nós temos diante de nós, PSD (...), é construir essa alternativa. (...) Vamos fazer isso nos próximos anos” .Até parece que o PSD é um novo partido, surgido sem passado nem responsabilidades ou pensamento e que agora vai “construir essa alternativa”.
Mesmo sobre como combater a inflação que está a roubar rendimento aos milhões de trabalhadores e pensionistas para os transferir para as empresas, o PSD é vago. “É preciso dar uma resposta aqueles que estão a passar por dificuldades”, diz Montenegro. Mas depois o seu diagnóstico vira-se antes para o Estado.
“O Governo está a ganhar dinheiro com a inflação”, disse. Mas será só o Governo? “O Governo, precisamente porque os preços têm estes níveis, está a arrecadar muito mais, porque parte destes preços são impostos.” E a outra parte dos preços, aliás, a principal? “Aquilo que é moral é, pelo menos, devolver à sociedade que paga esses impostos, às pessoas, às famílias mas também às empresas e instituições uma parte daquilo que se está a tirar em excesso”. E não seria moral que quem está a beneficiar com a subida dos preços também devolvesse parte à sociedade, às pessoas, às famílias, às empresas? Silêncio. Parece um truque de ilusionismo para evitar falar da reposição do poder de compra perdido dos salários e das pensões. E, portanto, a receita aventada nada resolve.
O “plano de emergência social” – aliás, um remake do ineficaz anunciado em 2011 – a apresentar na primeira semana de Setembro, pretende dar durante quatro meses 40 euros a quem recebe menos de 1097 de salário ou pensão e, para quem ganhe entre 1000 e 2500 euros, uma descida não quantificada de IRS. Mas depois desses quatro meses, tudo volta à “normalidade” dos preços elevados. E o problema é que, mesmo que desça a inflação, dificilmente o nível dos preços baixará para o que era anteriormente. Para quem criticou o Governo PS por menosprezar o carácter estrutural da inflação, parece cair no mesmo.
Ouvir Luís Montenegro no Pontal em 2022 assemelha-se, aliás, a um déjá vu a evitar. O recentramento do diagnóstico na gestão dos dinheiros públicos não é novo. Durão Barroso já o tinha feito em 2000/2001 acusando os governos de António Guterres de desperdiçar recursos, mas omitindo o que iria fazer. Pedro Passos Coelho voltou a fazê-lo em 2010/11, frisando o excesso de despesa pública praticado pelo Governo de José Sócrates, mas omitindo os cortes que iria realizar se ganhasse as eleições.
O seu discurso do Pontal é mesmo um regresso a 2010. Basta aceder ao diário das sessões e escrever “Montenegro”. Portugal era “uma economia com problemas de competitividade”, a que se juntava “finanças públicas descontroladas, despesismo inaudito do Estado e níveis de endividamento insustentáveis” (15/10/2010). E Montenegro era dramático: “A máscara deste Governo caiu e a incompetência e a irresponsabilidade ficaram a nu. Quinze anos depois do início do ciclo socialista, seis anos depois do início dos governos Sócrates, Portugal empobreceu e os esforços e sacrifícios que os portugueses fizeram foram desbaratados”.
Este discurso foi feito há... doze anos.
Montenegro apoiava a austeridade no governo, mas criticava-a na oposição. “E o que dirá um português desse mesmo plano de austeridade de Sócrates, quando, quatro meses antes, o mesmo político, o mesmo Governo, lhe disseram que as medidas do chamado 'PEC 2' eram as necessárias e suficientes?!” (24/3/2011). “Irresponsável é aquele que não assume as suas responsabilidades!” (Vozes do PSD: Muito bem!) “Este PEC revela, confessa o seu perfeito falhanço! A cada PEC, a cada Orçamento do Estado, o Governo disse ao país que os sacrifícios e a austeridade valeriam a pena, que aumentar impostos, diminuir salários, congelar pensões, aumentar o preço dos medicamentos ou aumentar as taxas moderadoras na saúde, tudo isto iria permitir ao País colocar as suas contas públicas em ordem, suster o endividamento e dinamizar a economia. (...) O número trágico de desempregados, Srs. Deputados, é a ilustração da falência da governação socialista e é também, atirando para a rua estes milhares de desempregados, o maior detonador das desigualdades sociais, da pobreza e da exclusão social de que há memória no Portugal democrático” (20/5/2011).
Depois das eleições, com a “mudança de rumo” e de governo, o recém-eleito deputado tinha outro discurso. “Sabemos que o país não pode falhar neste momento crucial, não pode falhar por nós, não pode falhar por Portugal” (1/7/2011). “O Programa é corajoso, antes de tudo, porque não se limita àquilo que estava acordado com a tróica; vai mais longe na ambição de retirar o País, o mais rápida e consistentemente possível, do turbilhão de dificuldades e de incertezas em que está mergulhado” (1/7/2011). Mas no Pontal, Montenegro amaldiçoou a troika que o PSD afugentara.
“Este Governo, em poucos dias, conseguiu rasgar dogmas políticos estatizantes e já cristalizados. Nunca sairemos desta aflição com remédios análogos àqueles que nela nos mergulharam (Vozes do PSD: Muito bem!). “Os poucos dias em que este Governo está em funções e o modo destemido e desempoeirado como o Sr. Primeiro-Ministro e o seu Governo se expressaram na Assembleia da República anunciam já, cabalmente, uma revolução tranquila, feita a favor do país e contando com todos os portugueses” (2/7/2011). “Não tenham dúvidas: a questão, mais do que ideológica, é moral. Por isso, este Programa quer um Estado menos empresário, menos partidarizado, menos gastador” (...) não para acabar com o Estado social mas, sim, para garantir e salvar o Estado social. (António Filipe do PCP: Esse era o discurso de Sócrates!). “As reformas estruturais nos sistemas públicos de justiça, de educação e de saúde são, eles próprios, activos fundamentais ao desenvolvimento da nossa economia. (...) é um programa que não vai deixar ninguém para trás.” (2/7/2011).
Um ano depois, Portugal estava a
atingir níveis históricos de desemprego e em setembro de 2012 Portugal
saiu à rua
João Ramos de Almeida -- Ladrões de Bicicletas – em Setenta e Quatro
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