segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Seis meses após o colapso da Ucrânia, o mundo mudou para sempre

Pepe Escobar [*]

Seis meses após o início da Operação Militar Especial (SMO) pela Rússia na Ucrânia, as placas tectônicas geopolíticas do século XXI foram deslocadas a uma velocidade e profundidade surpreendentes – com imensas repercussões históricas já em mãos.

Parafraseando T.S. Eliot, esta é a maneira como um (novo) mundo começa, não com uma lamúria, mas com um estrondo.

#Publicado em português do Brasil

O assassinato a sangue frio de Darya Dugina – terrorismo às portas de Moscou – pode ter coincidido fatalmente com o ponto interseção semestral, mas não irá alterar a dinâmica da atual mudança histórica, do trabalho em andamento.

O Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) parece ter resolvido o caso em pouco mais de 24 horas, designando o perpetrador como um operador neo-nazista Azov instrumentalizado pelo Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) – ele próprio uma mera ferramenta da combinação CIA/MI6 que governa de fato Kiev.

A agente Azov é apenas uma figura menor. A FSB nunca revelará ao público as informações que acumulou sobre aqueles que emitiram as ordens, nem como eles serão tratados.

Um tal de Ilya Ponomaryov, um personagem secundário anti-Kremlin, que recebeu a cidadania ucraniana, vangloriou-se de estar em contato com o grupo que preparou o ataque à família Dugin. Ninguém o levou a sério.

O que é manifestamente sério, no entanto, é como as facções do crime organizado ligado à oligarquia na Rússia teriam um motivo para eliminar Alexander Dugin, o filósofo nacionalista ortodoxo cristão que, segundo eles, pode ter influenciado o pivô do Kremlin para a Ásia (ele não influenciou).

Estas facções do crime organizado culparam Dugin por uma ofensiva concertada do Kremlin contra o poder desproporcional dos oligarcas judeus na Rússia. Assim, estes atores teriam um motivo e o expertise local para montar tal golpe.

Se for esse o caso, isso potencialmente soletra uma operação vinculada à Mossad – especialmente considerando-se o cisma sério nas relações recentes de Moscou com Tel Aviv. O que é certo é que a FSB manterá suas cartas bem próximas ao peito – e a retribuição será rápida, precisa e invisível.

A palha que quebrou as costas do camelo

Em vez de dar um sério golpe na psique russa que poderia impactar a dinâmica de suas operações na Ucrânia, o assassinato de Darya Dugina só expôs os perpetradores como assassinos de rua que esgotaram suas opções.

Um dispositivo explosivo improvisado (improvised explosive device, IED) [popularmente conhecido como bomba de fabricação caseira – nota do tradutor] não pode matar um filósofo – ou sua filha. Em um ensaio essencial, o próprio Dugin explicou como a verdadeira guerra – a Rússia contra o oeste coletivo liderado pelos EUA – é uma guerra de idéias. Uma guerra existencial.

Dugin define corretamente os EUA como uma “thalassocracia” [referência aos conceitos de Thalassa e Telúria – nota do tradutor], herdeira de “Britannia governa as ondas”. No entanto, agora as placas tectônicas geopolíticas estão soletrando uma nova ordem: O retorno das Terras Centrais.

O próprio presidente russo, Vladimir Putin, a explicou pela primeira vez na Conferência de Segurança de Munique, em 2007. Xi Jinping da China a colocou em ação ao lançar as Novas Estradas da Seda em 2013. O império reagiu com Maidan em 2014. A Rússia contra-atacou ao vir em auxílio da Síria em 2015.

O Império dobrou a aposta na Ucrânia, mandando armamento da OTAN sem parar, por oito anos. No final de 2021, Moscou convidou Washington para um diálogo sério sobre a “indivisibilidade da segurança” na Europa. Isso foi dispensado com uma resposta que era uma não-resposta.

Moscou não levou tempo para avaliar que um perigoso trio liderado pelos Estados Unidos estava, ao invés disso, em curso: uma iminente blitzkrieg de Kiev contra Donbass; a Ucrânia flertando com a aquisição de armas nucleares; e o trabalho dos laboratórios americanos de armas biológicas. Essa foi a palha que quebrou as costas do camelo.

Uma análise consistente das intervenções públicas de Putin nestes últimos meses revela que o Kremlin – assim como Nikolai Patrushev (Mestre Yoda) do Conselho de Segurança – percebem plenamente como os líderes políticos, meios de comunicação e as tropas de choque do oeste coletivo são dirigidas pelos governantes do Capitalismo Financeiro.

Como consequência direta, eles também percebem como a opinião pública ocidental é absolutamente ignorante, ao estilo das cavernas de Platão, totalmente cativa da classe financeira dominante, que não pode tolerar nenhuma narrativa alternativa.

Então Putin, Patrushev, e seus pares nunca presumiram que um leitor senil de teleponto na Casa Branca ou um comediante cocaínado em Kiev “dominem” nada.

Como os EUA dominam a cultura pop global, é apropriado tomar emprestado do que Walter White (Heisenberg), um americano médio canalizando seu mal interior, afirma em Breaking Bad: “Eu estou no negócio do Império”. E o negócio do Império é exercer o poder bruto, mantido com crueldade, por todos os meios necessários.

A Rússia quebrou esse feitiço. Mas a estratégia de Moscou é muito mais refinada do que varrer Kiev com armas hipersônicas, algo que poderia ter sido feito a qualquer momento, a partir de seis meses atrás.

Em vez disso, o que Moscou está fazendo é falar com praticamente todo o Sul Global, bilateralmente, ou com grupos de atores, explicando como o sistema mundial está mudando bem diante de nossos olhos, com os atores-chave do futuro configurados como a Iniciativa Cinturão e Estradas (BRI), Organização de Cooperação de Xangai (SCO), União Econômica da Eurásia (EAEU), BRICS+, a Parceria da Grande Eurásia.

E o que vemos são vastas extensões do Sul Global – ou 85% da população mundial – lentamente, mas seguramente, se preparando para expulsar os capitalistas financeiros de seus horizontes nacionais e, em última instância, derrubá-los: uma longa e tortuosa batalha que terá múltiplos reveses.

Os factos no terreno

No solo na Ucrânia, que em breve será um estado residual, as armas hipersônicas Khinzal lançadas de bombardeiros Tu-22M3 ou interceptores Mig-31 continuarão a ser utilizadas.

Pilhas de HIMARS continuarão a ser capturadas. Lançadores múltiplos de foguetes termobáricos pesados TOS-1A continuarão a enviar convites para os quintos do inferno. A Defesa Aérea da Crimeia continuará a interceptar todos os tipos de drones pequenos com IEDs anexados. O terrorismo das células locais da SBU acabará sendo esmagado.

Usando essencialmente uma barragem de artilharia fenomenal – barata e produzida em massa – a Rússia anexará Donbass, muito valiosa em termos de terra, recursos naturais e poder industrial. E depois a Nikolaev, Odessa e Kharkov.

Geoeconomicamente, a Rússia pode se dar ao luxo de vender seu petróleo com descontos gordos a qualquer cliente do Sul Global, sem mencionar os parceiros estratégicos China e Índia. O custo de extração atinge um máximo de US$ 15 por barril, com um orçamento nacional baseado em US$ 40-45 para um barril de Urais, cujo valor de mercado hoje é quase o dobro disso.

Um novo padrão de referência de petróleo russo é iminente, assim como o petróleo em rublos seguindo o esquema de sucesso selvagem do gás em rublos.

O assassinato de Darya Dugina provocou infinitas especulações sobre o Kremlin e o Ministério da Defesa que finalmente quebrariam sua disciplina. Isso não vai acontecer. Os avanços russos ao longo da enorme frente de batalha de 1.800 milhas são implacáveis, altamente sistemáticos, e profundamente investidos em um Grande Quadro Estratégico.

Um ponto chave é se a Rússia tem possibilidade de vencer a guerra da informação com o Ocidente. Isso nunca acontecerá dentro do reino da OTAN – mesmo quando o sucesso estiver se desdobrando em todo o Sul Global.

Como Glenn Diesen demonstrou magistralmente em seu último livro, Russophobia, o ocidente coletivo é visceralmente impermeável a admitir qualquer mérito social, cultural e histórico da Rússia.

Eles já se catapultaram para a estratosfera da irracionalidade: a desnazificação e a desmilitarização de fato do exército imperial terceirizado na Ucrânia está levando os manipuladores do Império e seus vassalos literalmente à loucura.

Mas o Sul Global nunca deve perder de vista o “negócio do Império”. Essa indústria se destaca pela produção de caos e saques, sempre apoiada por extorsão, suborno de elites locais e assassinatos a baixo custo. Cada truque do livro “Dividir e Reinar” deve ser esperado a qualquer momento. Nunca subestime um império amargo, ferido, profundamente humilhado e em declínio.

Apertem seus cintos de segurança para mais desta dinâmica tensa durante o restante da década.

Mas antes disso, ao longo de todo o perímetro, prepare-se para a chegada do General Inverno, cujos cavaleiros estão se aproximando rapidamente. Quando os ventos começarem a uivar, a Europa estará congelando na calada das noites escuras, iluminada ocasionalmente por seus capitalistas financeiros soprando seus charutos gordos.

24/Agosto/2022

O original encontra-se em thecradle.co/Article/Columns/14747 e em thesaker.is/geopolitical-tectonic-plates-shifting-six-months-on/, a tradução em sakerlatam.org/seis-meses-apos-o-colapso-da-ucrania-o-mundo-mudou-para-sempre/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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