terça-feira, 13 de setembro de 2022

Portugal | POBRES DE CINCO ORDENADOS MÍNIMOS E OUTRAS PARÓDIAS

Se é comum dizer-se que em Portugal se legisla de mais e mal, o caos regulamentar na habitação, que aumenta a cada nova medida, é há muito uma trágica paródia sem ponta por onde se lhe pegue. Já alguém levava tanta iniquidade ao Tribunal Constitucional.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Sou há muito defensora de uma limitação no aumento das rendas de habitação, pelo que a decisão do governo de impor uma taxa máxima para a atualização, com base na inflação, em 2023 me parece um pequeno passo no sentido certo. Só falta ser capaz de assumir que o valor do imobiliário, quer no que respeita às rendas quer à compra e venda, atingiu um patamar criminoso, e que nada do que se fez até agora resultou, pelo que é necessário regulação a sério.

Regulação a sério implica ser capaz de olhar para o mercado como um todo e para a legislação até agora produzida com a intenção de unificar e racionalizar, criando uma política com sentido e eficácia em vez de continuar a legislar aos bochechos e ao sabor do vento, acrescentando à confusão e iniquidade instalada.

E isso - acrescentar à confusão e à iniquidade - é exatamente o que mais esta proposta, nos termos em que ocorre, faz.

Vejamos porquê. Nas notícias sobre o limite de 2% na atualização das rendas em 2023, mencionando a compensação que o governo propõe, em sede do orçamento de Estado, na coleta do IRS ou IRC respeitante aos proprietários (compensação que será de 3,43%, correspondendo à diferença para a taxa de aumento que decorreria da inflação), surge invariavelmente uma linha discreta, sem mais comentários ou informações: "De fora deste apoio fiscal estão os contratos de arrendamento anteriores a 1990."

Porém as questões de desigualdade suscitadas a propósito desta compensação fiscal dos senhorios têm incidido quase exclusivamente numa dúvida: como poderá o Estado compensar os proprietários que celebraram contratos do programa de arrendamento acessível, e que por esse motivo não pagam IRS?

Os contratos do programa de arrendamento acessível, recorde-se, são os celebrados, num prazo mínimo de cinco anos, por um valor que, de acordo com uma tabela publicada por cada autarquia com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística, está 20% abaixo do "praticado no mercado" - sendo os valores de mercado nacional o que se sabe. O Estado subsidia esses contratos não cobrando os 28% de imposto estabelecido para as rendas em sede de IRS.

Há, paralelamente, outros descontos de IRS em vigor para os proprietários, que não dependem do valor da renda - esta é fixada livremente - mas da duração do contrato: quanto mais longo, maior o desconto na taxa de imposto, que vai até um máximo de menos 18 pontos percentuais para contratos de mais de duas décadas. Nestes não haverá problema em aplicar a nova compensação fiscal.

E depois existem os tais contratos anteriores a 1990 aos quais esta não se aplicará. Trata-se daqueles cujo valor de renda está congelado há décadas, e que desde 2012 não podem sequer ser aumentados de acordo com a inflação.

Ao contrário do que se passa com os outros exemplos de subsidiação estatal dados acima, estes contratos nunca beneficiaram de qualquer desconto no IRS ou IRC: pagam os 28% por inteiro.

Este facto é tanto mais significativo quando o valor das rendas em causa está duplamente limitado - a uma percentagem do rendimento dos inquilinos, variando proporcionalmente a esse rendimento, num máximo de 25% e num mínimo de 10%, e a uma fração do valor patrimonial (nunca pode exceder 1/15 desse valor).

Traduzindo: se o rendimento calculado (trata-se do "rendimento corrigido" segundo uma fórmula legal que conta com o número de dependentes, respetiva idade e grau de deficiência, não de rendimento bruto) do agregado que habita o fogo for inferior a 500 euros, a renda não pode ultrapassar 10% desse rendimento - por exemplo 49 euros se o rendimento for 490.

Se o rendimento calculado do inquilino ou inquilinos estiver entre 750 e 1000 euros, a renda não pode ser superior a 15% - será de 135 euros para um rendimento de 900. Já quando este está entre 1000 e 1500, a renda não pode passar dos 17% - um máximo de 255 euros, portanto.

Os 25% de taxa de esforço máxima só se aplicam a rendimentos entre os 1500 e os 3525 euros. Isto porque a lei, no que respeita a estes contratos de arrendamento anteriores a 1990, considera "insuficiência económica" um rendimento mensal corrigido até cinco ordenados mínimos (705 vezes cinco = 3525).

Conclui-se pois que os proprietários com contratos de arrendamento anteriores a 1990 não só são obrigados, e há muito tempo, a praticar rendas muitíssimo abaixo do valor de mercado, sem a possibilidade de qualquer atualização, como não são minimamente compensados por esse facto - um sacrifício que a existência de compensações fiscais para outros proprietários que praticam rendas muito superiores em contratos de duração muito inferior vem tornar ainda mais iníquo.

Mas, e porque nestas coisas a tendência é para achar que os "senhorios" (palavra que em si é uma espécie de crítica) merecem todos os agravos, olhemos para a iniquidade noutra perspetiva, a dos inquilinos.

Atendamo-nos apenas ao universo das rendas controladas: que pode justificar que as regras de fixação de rendas e de consideração de insuficiência económica sejam mais favoráveis aos inquilinos com contratos de arrendamento anteriores a 1990 que o previsto nos contratos de habitação social pública?

Como se explica que para impor a proprietários privados, em nome da proteção dos inquilinos, o sacrifício da rendibilidade a que podiam legitimamente aspirar o Estado seja menos exigente que quando se trata de avaliar candidatos a arrendamento que beneficiam de apoio de verbas públicas?

Atente-se por exemplo ao regulamento relativo às habitações disponibilizadas em programas do município de Lisboa. Aí, a taxa de esforço máxima indicada é 30%. No programa de arrendamento acessível, de âmbito nacional, é ainda mais alta: 35% do rendimento bruto do agregado. Quando está em causa dinheiro público, admite-se uma taxa de esforço até 10 pontos percentuais superior àquela que se impõe no caso dos contratos de arrendamento anteriores a 1990.

No que respeita ao rendimento, o contraste é igualmente escandaloso: no caso de uma pessoa só, o valor do rendimento, tanto no caso da habitação social (em que é corrigido) como do arrendamento acessível (rendimento bruto), não pode ultrapassar 35 mil euros anuais - o que, obviamente, está muito abaixo do rendimento corrigido de cinco ordenados mínimos, o qual é de 42300 euros (e isto se contarmos só doze meses; fazendo as contas a 14, o rendimento anual correspondente sobe para 49350), previsto como "teto" para a definição de insuficiência económica na legislação atinente às rendas congeladas.

Não faço ideia se estas desigualdades de tratamento - as existentes entre proprietários no que respeita a tratamento fiscal e à liberdade contratual, e as existentes entre inquilinos ou candidatos a inquilinos em termos de proteção social - são inconstitucionais (pena o Tribunal Constitucional nunca ter tido a oportunidade de as avaliar). Racionais, justas e dignas de maiorias de esquerda não são de certeza.

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