segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Angola | Empresário Distraído e Piratas da América – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Amigas e amigos do peito discordam de mim, mais do que concordam. Ainda bem. Ultimamente, tenho recebido reclamações que me preocupam. Dizem que sou a favor da corrupção. Alto lá. Sou contra o capitalismo em todas as suas versões logo, sou contra a corrupção, um dos potentes combustíveis que faz andar a maquineta do sistema que sacrifica cada vez mais pobres para fazer muitíssimos mais ricos. Nasci pobre, cresci assim-assim, voltei a ser pobre e vou morrer teso. Hoje vou contar-vos duas histórias.

O Augusto Pita Grós Dias, um dos maiores radialistas angolanos de sempre, chefe dos serviços de produção do Rádio Clube do Uíje, criou um spot publicitário sobre a laranjada “mission” acabada de lançar em Luanda na fábrica onde está hoje a Comissão Nacional de Eleições. Dizia o Pita Grós: Mission a laranjada que veio da América. O sumo de laranjas que amadureceram ao som dourado da Califórnia! 

Nós íamos todos os dias à Pousada do Congo, que ficava ao fundo do recreio da descola, saber se já tinha chegado a preciosa bebida refrigerante. Quando chegou foi um festim.

Naquele tempo tínhamos uma certa propensão para o gangue organizado. E como o dinheiro era pouco, lembrámo-nos de uma operação humanitária. Ao domingo, um padre capuchinho vinha da Missão rezar missa na nossa escola. Nós fizemos uns cubos em cartolina, sem uma das faces. E quando acabava a missa íamos para a porta e pedinchávamos: Quinhenta para a mission! Quinhenta para a mission! (quinhenta eram cinco tostões…)

As senhoras que se serviam dos criados quando os maridos andavam a roubar café nas sanzalas, davam-nos esmola pensando que era para a Missão Católica. Os fazendeiros e comerciantes depositavam moedas e mesmo notas de angolar nas caixinhas. Depois íamos para a Pousada do Congo beber laranjadas mission. Bebíamos ali no Negage, à vista da Serra do Pingano, o sol dourado da Califórnia.

Um dia o senhor padre desfez-se demasiado cedo das vestes da missa e surpreendeu-nos no peditório. EU disse-lhe timidamente que estávamos a pedir para a missão. E ele, ríspido, chamou-nos burlões e ladrões. Deus vai castigar-vos. O Sebastião Africano, que já tinha voz de homem, disse-lhe muito despachado: Senhor padre, ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão. Fomos logo ali fulminados com uma excomunhão. Ladrões, burlões e excomungados. É muito.

Hoje seria bem pior. O Presidente João Lourenço atirava-nos para a cadeia de Viana no âmbito do combate à corrupção. Antes excomungados que enclausurados. 

A outra história é mais interessante. Um empresário angolano de grande sucesso entrou a pés juntos na comunicação social. Como a impressão dos jornais estava difícil e era caríssima, o nosso milionário foi a Lisboa e comprou a segunda maior empresa gráfica portuguesa chamada Printer, na Linha de Sintra (Rio de Mouro). 

Uma fábrica daquelas custa muitos milhões de euros/dólares. Mas mesmo muitos. Só um milionário pode comprar a empresa a pronto pagamento e sem regatear. Feito o negócio, assinada a papelada, o empresário angolano apresentou-se na empresa, chamou o director técnico e disse-lhe que queria imprimir lá os jornais que tinha em Angola. O empregado disse-lhe a titubeante: Excelência, nós aqui só fazemos livros, revistas e catálogos.

Essa agora! Comprei uma oficina gráfica para imprimir os meus jornais e afinal vocês não imprimem isso? Que chatice!  Virou costas e foi comprar o Sporting Clube de Portugal. Só faltava dizerem-lhe que o clube imprime jornais e desde os cinco violinos que não tem futebol. Mas não aconteceu. Nem tudo é mau. Nem só de fracassos vive o homem.

Se o nosso milionário tivesse falado comigo eu explicava-lhe que há máquinas rotativas que só imprimem jornais, outras só imprimem livros, revistas e catálogos. Outras são mistas! Ao mesmo tempo que imprimem jornais estão a imprimir livros e revistas. Também lhe dizia que em Luanda, acantonada em contentores, existia uma rotativa mista (jornais/comercial) e uma linha completa de acabamentos Muller-Martini. Comprava o equipamento, mandava fazer uma nave industrial e imprimia os seus jornais em Luanda. O dono da maquinaria ficava-lhe grato porque reavia o dinheiro do investimento. E essa operação custava cem vezes menos do que a compra da Printer!

Este empresário de grande sucesso conseguiu deitar abaixo o BESA. Em 2017, refugiou-se em Angola onde teve a protecção do poder. Um dia resolveu regressar a Portugal e abafaram-lhe o passaporte português. Que se lixe. Para viajar na União Europeia basta o bilhete de identidade. E o passaporte angolano também funciona, nem que seja com vistos. Graças ao Presidente João Lourenço, este empresário de grande sucesso, nunca prestou contas à Justiça em Angola. E em Portugal tudo se resolve, mais milhão menos milhão.

Contadas estas duas histórias, vamos ao que interessa. Sou contra a Família, o Estado e a Autoridade. Se há governo, sou contra. Houve uma altura em que escrevia uns textos sob o título genérico “Crónias de Viagens”. Aquilo acabava sempre com um milionário a morrer. Numa crónica, a minha vítima, depois de comer lagosta à Thermidor, começou a contorcer-se e dos seus buracos saíam aviões de papel, coloridos, que voavam em círculos à sua volta. Os mais coloridos saíam do ânus e os maiores, da boca. Do nariz e dos ouvidos saíam avionetas. 

À medida que os objectos voadores identificados se multiplicavam, o milionário esvaía-se. Até que ficou reduzido a um montinho de cinzas. Podia ter acabado ali a crónica, mas não. De repente, dos restos do milionário começou a sair uma menina muito bela, muito elegante, muito menina. Fui apresentar-me e ela respondeu: Deixa-te de apresentações e vamos para a cama que se faz tarde. Foi assim que herdei os restos do milionário, sem o mínimo remorso.

É assim que vão acabar os accionistas visíveis e invisíveis do Grupo Carrinho. Mas sem a menina elevando-se das cinzas.

Então por que razão eu não condeno os nossos milionários multi, multi, multi? Porque o sistema capitalista é assim. E sei de fonte limpa que a esmagadora maioria dos angolanos aplaudiu o fim do socialismo e exultou com a democracia representativa e a economia de mercado. Só isso.

Uma amiga diz que eu devia condenar o capitalismo selvagem que se instalou entre nós. Como é possível fazer fortunas colossais em tão pouco tempo? Na Europa as grandes fortunas só apareceram ao fim de séculos da acumulação de capital.

Calma minha amiga. As grandes fortunas fazem-se de um dia para o outro. As pequeninas é que levam tempo. Vamos ao princípio do mundo. As Cruzadas foram uma forma rápida de enriquecer. Tremendas fortunas se fizeram roubadas aos “sarracenos”. Atenção às fortunas que nasceram na Reconquista Cristã. Alguns cruzados chegaram a reis!

Mais à frente temos os piratas. Falo-vos do inglês Henry Morgan ou Capitão Morgan. Em pouco tempo acumulou uma fortuna colossal. O rei de Inglaterra fez dele fidalgo e governador da Jamaica. Os piratas holandeses enriqueciam de uma viagem à América do Sul e Caraíbas para outra. Jan Janszoon van Haerlem foi o mais bem-sucedido. Roubou tanto que fundou um país no Norte de África onde hoje é Marrocos. Por favor, leiam o livro Piratas da América, de  Alexandre Exquemelin, o médico dos piratas, holandês dos sete costados ele também pirata e multimilionário.  

Depois temos os corsários. Piratas que roubavam por conta dos reis. A pirataria de Estado que ainda hoje se pratica no Reino Unido, EUA, França, Holanda e outras potências mal frequentadas. O mais famoso de todos os corsários foi Sir Francis Drake. Roubou tantos tesouros para os cofres de Inglaterra que foi agraciado com um título de nobreza pela rainha Isabel I 

Não resisto a chamar aqui Sir Thomas Cavendish que também atulhou os cofres de Inglaterra de riquezas infinitas. Os espanhóis das colónias da América Latina e das Caraíbas chamavam-lhe O Dragão. Fortunas que se faziam de um dia para o outro, à custa de muitas vidas sacrificadas, muito sangue derramado das populações indefesas ou das tripulações de caravelas e galeões. Os piratas e corsários eram particularmente violentos e assassinos cruéis. Quase tão terríveis como os sicários da UNITA. 

Hoje a técnica continua mas a pirataria faz-se nos “mercados” financeiros que são muito nervosos e tudo lhes serve para roubar os mais fracos. Respondam-me por favor: Os nossos milionários não são mais limpos, mais simpáticos, mais civilizados, mais generosos? Se querem o capitalismo, se amam a “economia de mercado” têm de gramar a exploração de quem trabalha, a corrupção e o roubo que pode ir até às formas violentas de latrocínio. Eu não quero. Mas como a maioria quer, quem sou eu para desmanchar prazeres?  

Como já devem ter percebido, tenho alma de escuteiro. E decidi que devo fazer uma boa acção por mês. Este Dezembro sai já a que me compete. Informo o senhor general Pita Grós que quando sair do cargo de PGR vai responder por falsificação de documentos, participação económica em negócio e gravíssimas violações do segredo de justiça. O melhor é reservar já um apartamento de luxo no Dubai, ao senhor engenheiro Manuel Vicente. A alternativa é uma cela em Viana. Avisei.

*Jornalista

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