domingo, 4 de dezembro de 2022

Angola | O DEZEMBRO QUE MUDOU ÁFRICA E O MUNDO -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Dezembro de 1987 foi crucial para mudar o panorama político em África. As tropas sul-africanas tinham recebido um ultimato da ONU para abandonarem Angola até ao dia 10 desse mês. O cerco diplomático ao regime racista estava cada vez mais apertado. Para silenciar as vozes críticas da comunidade internacional, Pretória negava a sua presença no Cuando Cubango e no Cunene. O governo sul-africano dizia que os combates no terreno eram com as forças de guerrilha da UNITA. A realidade era muito diferente. Com a “Operação Moduler”, as forças invasoras queriam aniquilar a 16ª, 19ª e 21ª Brigadas da FAPLA. Mas falharam rotundamente.

O alto comando das forças sul-africanas manifestava por todos os meios a sua desilusão. No livro “Guerra em Angola”, de Helmoed-Roemer Heitman, página 169, o autor escreve: “A Operação Moduler não foi suficiente para abalar as FAPLA e os militares angolanos ficaram espalhados pelo terreno, bem entrincheirados, pelo que não podiam ser derrotados apenas com artilharia”. E mais à frente, na mesma página, o autor revela que “os militares do alto comando sul-africano queriam vingar-se dos fracassos mais recentes”. 

As derrotas de Novembro de 1987 (há 35 anos) deixaram os invasores em estado de choque. Pensavam que iam fazer um passeio ao Sul e Sudeste de Angola e provaram o sabor amargo da derrota.

Os generais sul-africanos sabiam que as suas tropas tinham que abandonar Angola até ao dia 10 de Dezembro. Essa era uma imposição da ONU. Mas para vingar as derrotas de Novembro, decidiram ficar mais uns dias, até derrotarem as FAPLA e ocuparem o Cuito Cuanavale. 

Savimbi queria, a todo o custo, mostrar à imprensa internacional que estava a ganhar terreno dentro de Angola, beneficiando de um truque dos serviços secretos sul-africanos. As tropas de Pretória avançavam, tomavam as posições e quando elas estavam seguras, vinham tropas de Savimbi erguendo as armas em tom de vitória. Os operadores de imagem registavam as grandes “vitórias” para a posteridade. 

O coronel Ian Breitenbach, fundador das forças armadas da UNITA, conta como tudo se passava, no seu livro sobre os soldados do Batalhão Búfalo (The Buffalo Soldiers), obra com grande sucesso na África do Sul pois tem várias edições, sendo a última de 2002, ano da morte do criminoso de guerra Jonas Savimbi. Alguns episódios são caricatos. 

O alto comando sul-africano decidiu ficar em Angola para lá do dia 10 de Dezembro, arcando com as repercussões diplomáticas. Mas foi pior. Também teve que assumir novas e mais humilhantes derrotas. O mês de Dezembro de 1987 foi o início da libertação da Namíbia, da África do Sul e de Mandela. As FAPLA têm esse imenso crédito. Os angolanos que se bateram no Triângulo do Tumpo são autênticos Heróis de África. 

Savimbi pressionava os generais do alto comando sul-africano para que lhe entregassem o troféu do Cuito Cuanavale. Ele tinha na Jamba dezenas de jornalistas à espera de avançarem para a vila, que tinha sido base aérea portuguesa durante a guerra colonial. Os políticos portugueses esperavam ansiosamente as imagens da soldadesca da UNITA de armas no ar, dentro da vila. Era o pretexto que lhes faltava para ignorarem Luanda e promoverem a Angola da Jamba. A encenação nunca foi possível e o mês de Dezembro terminou com mais derrotas para as forças sul-africanas.

O Rabo Entre as Pernas

O general Liebenberg, citado por Helmoed-Roemer Heitman (página 169) teve este desabafo: “Ao não tomarmos o Cuito Cuanavale, tivemos de fazer como o cão e meter o rabo entre as pernas”. Mas foi pior. Ao prosseguirem a invasão militar para além do dia 10 de Dezembro, os generais sul-africanos tiraram a pele de cordeiro e ficaram apenas lobos.

Na grande ofensiva sobre o Cuito Cuanavale, Savimbi exigiu ser ele o comandante da operação. Os sul-africanos condescenderam. As tropas do Batalhão Búfalo, o batalhão mecanizado e a poderosa artilharia até conseguiram alguns sucessos. Mas quando foi preciso colocar Savimbi e os seus homens para a fotografia, ele fugiu apressadamente para a Jamba, deixando o posto de comando abandonado. O brigadeiro Renato, de repente, viu-se sozinho com as suas tropas e Ian Breitenbach pedia instruções a Savimbi mas ninguém lhe respondia.

No seu livro, Ian Bretenbach desabafa: “Savimbi fugiu apressadamente para a Jamba e não teve o cuidado de deixar ninguém no seu lugar”. Os comentários do velho militar não são nada lisonjeiros para ele e para “o cunhado de Savimbi, brigadeiro Numa”, que também fugiu do teatro de operações. Por isso é que hoje diz que a Batalha do Cuito Cuanavale é um mito. Para os que fugiram, foi mesmo um mito. Mas os que ficaram e deram a vida pela Pátria foi uma realidade cruel.

Os sul-africanos iam ocupar o Cuito Cuanavale para Savimbi fazer a sua encenação de grande chefe militar e ele fugiu. Os generais sul-africanos ficaram com um problema grave: Não podiam ser eles a aparecer, tinha que ser a UNITA. Caso contrário caía-lhes em cima a comunidade internacional e o céu em chamas. 

A Operação Hooper

Os sul-africanos decidiram pisar o risco e ao constatarem o fracasso da Operação Modulder decidem, de imediato, lançar a Operação Hooper. Esta nova investida sobre o Cuito Cuanavale começou no dia 13 de Dezembro de 1986. Mal começou já tinha o destino da anterior: Uma derrota em toda a linha. Os generais sul-africanos foram os primeiros a revelar pormenores que só podiam conduzir à derrota. 

Na Operação Moduler os soldados cumpriam o serviço militar obrigatório, cujas comissões eram de dois anos. Dezembro de 1986 foi o mês da desmobilização de grande parte dos soldados que já eram veteranos da guerra no Cunene, Cuando Cubango e Huíla. Chegaram novos soldados sem qualquer experiência e no mês do Natal, quando todos querem estar em casa. Por isso, os generais prometeram à tropa que a operação ia ser rápida e estava concluída antes do Natal.

Outro problema dos invasores vem descrito na página 174 do livro “Guerra em Angola”, de Helmoed-Roemer Heitman: “As nossas tropas tinham grandes dificuldades na recolha de informações detalhadas e precisas. Grande parte da informação vinha de fontes da UNITA, que não eram nada fiáveis”.

Do outro lado estavam as FAPLA, altamente moralizadas com os sucessos de 25 e 26 de Novembro de 1986. E sobretudo defendiam a Pátria, que era o seu mais amado lar. 

Plano da Operação

Ao decidirem continuar em Angola para além do dia 10 de Dezembro, data imposta pela ONU para a retirada dos invasores, os generais sul-africanos precisavam do biombo da UNITA, que por sua vez estava pouco disponível. Ian Breitenbach diz que os oficiais de Savimbi “tinham um verdadeiro pavor dos tanques das FAPLA”. 

Apesar deste quadro, o brigadeiro Smit foi ao Rundu para planificar as acções da Operação Hooper, que devia ser “relâmpago”. Ele e o general Liebenberg decidiram que em primeiro lugar era destruída a ponte sobre o rio Cuito e ao mesmo tempo era movimentada uma importante força para Oeste com o fim de ameaçar o Cuito Cuanavale, lá no alto da colina. Uma força a Leste do rio Cuito retinha as FAPLA.

Mas a decisão mais arriscada de Smit e Liebenberg foi esta: Manter todo o dispositivo no terreno, ignorando o ultimato da ONU, com a desculpa “não somos nós, é a UNITA”.

Mais uma decisão tomada no Rundu: A ponte sobre o rio Cuito devia ser destruída com uma bomba inteligente.

Antes do dia 13 de Dezembro, início da Operação Hooper, o general Libenberg mandou avançar rapidamente para o rio Chambinga, o Regimento de Pretória, equipado com os tanques Oliphant. Estava estacionado em Mavinga, muito longe do teatro de operações.

Os canhões G5 apoiavam as tropas da UNITA no ataque às posições das FAPLA no rio Cuatir. A artilharia de Savimbi era protegida pelo Grupo de Combate Alfa (tropa sul-africana), não fossem abandonar as peças nos lamaçais. A Bataria Sierra avançou para a nascente do rio Vimpulo. Os mísseis Stinger da UNITA, oferta do Presidente Reagan, ficaram com os grupos das tropas especiais para evitar que caíssem nas mãos das FAPLA.

De Fracasso em Fracasso

O fracasso começou com o falhanço da “bomba inteligente” que não destruiu a ponte sobre o rio Cuito. A Operação Hooper foi desencadeada para impedir que as FAPLA tivessem capacidade de lançar uma ofensiva a partir do Cuito Cuanavale. Falhou. 

Os invasores queriam consolidar posições anteriormente conquistadas nas quais os soldados da UNITA posaram como vencedores. Falharam. Mas o mais importante era colocar as tropas da UNITA, com Savimbi e o seu cunhado Numa, no Cuito Cjuanavale. Perderam. Os dois “maninhos” acabaram por fugir. O coronel Breitenbach conta como foi, com muitos e caricatos pormenores.

O alto comando sul-africano autorizou “acções secretas” do 32º Batalhão, comandado pelo coronel Ian Breitenbach, que eram depois “creditadas” a Savimbi. Não foi possível fazer nada porque ele fugiu para a Jamba e depois para parte incerta. 

Um pormenor importante: Os oficiais sul-africanos no terreno estavam proibidos de revelar o número de baixas sul-africanas até ao dia 21 de Dezembro, data em que previam estar concluída a Operação Hooper.

O coronel Breitenbach ao ver tudo ir por água-abaixo, teve um desabafo: “Os tanques e armas pesadas da UNITA de nada servem porque os seus homens não sabem usá-las”. Equipamento militar de primeira, só atrapalhava.

Ataque ao Tumpo

No dia 13 de Dezembro de 1987, às 7h50, os canhões G5 sul-africanos começaram a disparar sobre o Triângulo do Tumpo. O mito de que fala Abílio Camalata Numa, começava a vomitar morte sobre os angolanos. Às 12h00, a base aérea do Cuito Cuanavale foi bombardeada pela aviação (aviões franceses Mirage). Às 14h35 a ponte sobre o rio Cuito foi bombardeada. Ficou intacta. O inimigo errou o alvo.

Nessa noite, os generais Geldenhuys, Liebenberg e Meyer, chefe do estado-maior da inteligência militar, formaram o posto de comando táctico. Pela UNITA estava o general Ben Ben, da UNITA. Geldenhuys disse-lhe: “A situação internacional exige que as forças sul-africanas sejam o mais discretas possível”. Tiveram a discrição de um elefante numa loja de vidros.

Os resultados foram desencorajadores e a 19 de Dezembro saiu de Mavinga o 61º Batalhão Mecanizado. No dia 21 de Dezembro, data em que devia terminar a operação, as coisas estavam tão tremidas que avançou para o triângulo do Tumpo a Artilharia Anti Aérea. Os generais do regime de apartheid passaram o “Dia D” para 26 de Dezembro. Estavam a jogar na roleta e de dia para dia subiam as apostas à medida que perdiam cada vez mais. Mas a guerra não é um jogo de casino.

O “Dia D” só podia ter sucesso se as operações secretas do Batalhão Búfalo tivessem sucesso. Era esta força que tinha a incumbência de cortar os abastecimentos às unidades das FAPLA, que se batiam no Triângulo do Tumpo. Falharam. As tropas da UNITA fugiam dos combates. O melhor que os invasores conseguiram foi atingir uma coluna de abastecimentos das FAPLA, com bombardeamentos de quatro Mirage. Mas a Força Aérea Nacional entrou em acção com os Mig 21 e 23 e nesse dia 15 de Dezembro de 1987 bombardearam o comando táctico sul-africano.

Diário do Fracasso  

Os sul-africanos registavam todos os pormenores da Operação Hooper. Por eles sabemos que às 18h50 do dia 15 de Dezembro, as tropas invasoras atacaram a 25ª Brigada das FAPLA a norte da estrada entre o Cuito Cuanavale e Chambinga. Foram recebidos com fogo pesado de 23 milímetros. O inimigo fugiu espavorido.

No dia 16 de Dezembro, a Companhia A do 61º Batalhão Mecanizado disparou contra posições das FAPLA a Oeste do Cuito Cuanavale. No dia seguinte, de manhã à noite, os canhões G5 dispararam sobre o Triângulo do Tumpo. Durante a noite de 17 de Dezembro, o comando táctico juntou-se às tropas de Ben Ben, a noroeste da nascente do rio Cunzumbia.

Dia 18 de Dezembro. A tropa e os tanques não se conseguiram mover das suas posições. A Força Aérea Nacional não deixava. Os invasores só usaram a artilharia. No dia 19 de Dezembro, às 6h10, quatro Mirage atacaram a 21ª Brigadas das FAPLA. Às 8h47 os Mig atacaram as tropas sul-africanas a nordeste da nascente do rio Vimpulo. As tropas da UNITA fugiram em pânico.

O livro “Guerra em Angola”, de Helmoed-Roemer Heitman, revela na página 187 o que foi notícia entre as tropas invasoras, no dia 19 de Dezembro: “Registaram-se os primeiros casos de malária e no dia seguinte, de hepatite, um grande problema para o sucesso da Operação Hooper”.

No dia 20 de Dezembro de 1987, o comandante do 61º Batalhão Motorizado, Koos Libenberg, e o comandante do “4º SAI”, Jan Malan, foram identificar o terreno à volta do Cuito Cuanavale: “Ficou claro que não era possível lançar uma grande operação contra as FAPLA a Leste do rio Cuito, durante a última semana do ano” (página 187 do livro “Guerra em Angola”, de Helmoed-Roemer Heitman).

Os Pântanos da Derrota

O alto comando sul-africano, na noite de 22 para 23 de Dezembro, mandou avançar o “4º SAI” de Mavinga para o Triângulo do Tumpo. Tinha chovido muito nos últimos dias e os tanques não passaram os pântanos. Os Ratel ficaram enterrados na lama. O “General Pântano” estava a derrotar os invasores. A noite de 24 para 25 de Dezembro foi passada a desenterrar os tanques!

A Força Aérea Nacional obrigou o inimigo a movimentar-se apenas de noite. Alguns pilotos angolanos deram a vida pela Pátria nesses dias de Dezembro, durante a Operação Hooper. O Batalhão Búfalo também só se mexia durante a noite.

Na noite de 23 para 24 de Dezembro houve a primeira dissidência. O general Libenberg visitou o posto de comando táctico e exigiu mais determinação às tropas. O coronel Fouché ficou furioso e disse-lhe: “Há grande risco de termos muitas baixas”. Apagou-se naquele momento o “espírito de Natal”. Mas o general insistiu: “O máximo entre 2 e 5 de Janeiro, temos de colocar a UNITA no Cuito Cuanavale”. Perderam.

Na página 192 do livro “Guerra em Angola”, de Helmoed-Roemer Heitman, está escrito: “Os comandantes da UNITA tomaram conhecimento das áreas onde deviam juntar-se às tropas sul-africanas. Depois do general Meyer ter sido informado sobre o plano, ordenou que fosse dada prioridade a um ataque aéreo sobre Nancova e a destruição da ponte sobre o rio Cuito. O general Demóstenes Chilingutila, em nome da UNITA, concordou”.

 De um lado estavam os Heróis da Batalha do Cuito Cuanavale. Do outro os invasores do regime racista de Pretória e os matadores do Povo Angolano às suas ordens: UNITA. Alguns matadores andam por aí à boa vida e falam grosso!

Dia 25 de Dezembro de 1987. Os helicópteros sul-africanos não conseguiram levar a “ceia” de Natal às unidades invasoras. Mas tiveram uma prenda: Às 14h30 dois Mig bombardearam as tropas sul-africanas e da UNITA na nascente do rio Chambinga.

O mês de Dezembro terminou com a chegada do general Liebenberg ao posto de comando táctico com “pelo menos mais cinco generais”. Decidiram que no dia 2 de Janeiro de 1988 as FAPLA iam conhecer o inferno. Mas foi o contrário. Em 23 de Março de 1988 os invasores sul-africanos foram clamorosamente derrotados na Batalha do Cuito Cuanavale. O regime de Pretória foi obrigado a assinar o acordo tripartido de Nova Iorque (Angola, África do Sul e Cuba). Uma espécie de capitulação.

O comandante Ngueto (José Domingos Baptista Cordeiro) e seus companheiros de armas libertaram a Humanidade do regime de apartheid, no Triângulo do Tumpo. Libertaram a Namíbia. Libertaram o povo sul-africano. Libertaram Nelson Mandela. Libertaram Angola. Libertaram África. O comandante-em-chefe era o Presidente José Eduardo dos Santos. 

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana