Raul Cunha [*] entrevistado por Ricardo Cabral Fernandes
Sabendo que será alvo de bojardas pelo que defende, o major-general Raul Cunha não se remete ao silêncio perante as críticas públicas de que tem sido alvo. Sentado num sofá em sua casa, argumenta que o presidente ucraniano se devia render para evitar mais perdas de vidas, responsabiliza a NATO pela guerra na Ucrânia, rejeita que Vladimir Putin queira alargar um império russo e defende que a realidade não é a preto e branco.
“Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora. É preciso um gajo ter cuidado com o que diz”, diz o militar na reserva em entrevista ao Setenta e Quatro. Mas, na verdade, o major-general não pareceu ter esse cuidado: “Se ser putinista for gostar do homem, não sou. Se ser putinista é compreender a motivação dele, então sou”.
O militar justifica as suas posições com a sua experiência na guerra da Jugoslávia, onde viu de tudo, e fala do que aí pode vir com a militarização da Europa e com o mundo dividido em dois blocos, entre Estados Unidos e União Europeia, de um lado, e China e Rússia de outro. Aborda tudo isto numa entrevista longa e, sobretudo, sem freios.
O alto-comando russo está a respeitar a doutrina russa nesta guerra?
Não há noção no público, nas pessoas – e isso faz-me um bocado espécie –, porque os militares sabem que se os russos quisessem o normal era arrasar. A doutrina militar deles não tem nada a ver com aquilo que sucedeu de início no conflito, porque a doutrina deles é massiva: artilharia, bombardeamentos, à frente da tropa e depois progredir com os carros de combate e com as viaturas blindadas em velocidade, e conquistar os objetivos. De início não foi nada disso que eles fizeram. Foram nitidamente moderados na maneira como aquilo foi feito.
Porquê?
Porque não era o sistema [russo]. O sistema é levarem à frente tudo, arrasar tudo, na frente deles e progredir. Nas cidades têm nitidamente evitado provocar baixas civis. As pessoas dizem: "mas já morreram 500 pessoas". Quinhentas pessoas face à quantidade de coisas que tem havido é pouco. É cruel dizer uma coisa destas, é, mas é verdade. Quer dizer, temos ideia da quantidade de civis que foram mortos na Síria, temos ideia no Iémen, onde a Arábia Saudita bombardeia.
Ou Grozny.
Na Chechénia, mas aí é diferente, é na Rússia. Mas a diferença está aqui: não estão a atuar na maneira convencional deles.
Mas isso já mudou.
Penso que mudou, penso que Lavrov [Sergei, ministro dos Negócios Estrangeiros russo] disse a Kuleba [Dmytro, ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano]: "ou vocês aceitam as nossas condições ou a partir de agora o jogo vai ser outro". Há um sítio que sei que vai ser terrível: Mariupol.
Já está a ser.
Na minha opinião, não são os russos que não querem que os civis saiam. Quem não quer que os civis saiam são os defensores da cidade, porque sabem que no momento em que ficarem sem os civis aquilo é... Não têm a mínima hipótese de sobreviver. E por isso, enquanto estiveram lá civis, têm a esperança que a coisa não seja assim tão grave. Isto é a realidade, mas não se pode dizer. Qual o interesse dos russos em matar os civis que estão em Mariupol, que até são a maioria russos? É isso que não é dito. Os civis são ou russos ou russófonos. E são esses que querem sair e que têm fugido de lá, e não lhes acontece nada.