segunda-feira, 21 de março de 2022

Ucrânia | "Quem brincou à roleta russa com Putin é um dos grandes culpados"

Raul Cunha [*] entrevistado por Ricardo Cabral Fernandes

Sabendo que será alvo de bojardas pelo que defende, o major-general Raul Cunha não se remete ao silêncio perante as críticas públicas de que tem sido alvo. Sentado num sofá em sua casa, argumenta que o presidente ucraniano se devia render para evitar mais perdas de vidas, responsabiliza a NATO pela guerra na Ucrânia, rejeita que Vladimir Putin queira alargar um império russo e defende que a realidade não é a preto e branco.

“Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora. É preciso um gajo ter cuidado com o que diz”, diz o militar na reserva em entrevista ao Setenta e Quatro. Mas, na verdade, o major-general não pareceu ter esse cuidado: “Se ser putinista for gostar do homem, não sou. Se ser putinista é compreender a motivação dele, então sou”.

O militar justifica as suas posições com a sua experiência na guerra da Jugoslávia, onde viu de tudo, e fala do que aí pode vir com a militarização da Europa e com o mundo dividido em dois blocos, entre Estados Unidos e União Europeia, de um lado, e China e Rússia de outro. Aborda tudo isto numa entrevista longa e, sobretudo, sem freios.


O alto-comando russo está a respeitar a doutrina russa nesta guerra?

Não há noção no público, nas pessoas – e isso faz-me um bocado espécie –, porque os militares sabem que se os russos quisessem o normal era arrasar. A doutrina militar deles não tem nada a ver com aquilo que sucedeu de início no conflito, porque a doutrina deles é massiva: artilharia, bombardeamentos, à frente da tropa e depois progredir com os carros de combate e com as viaturas blindadas em velocidade, e conquistar os objetivos. De início não foi nada disso que eles fizeram. Foram nitidamente moderados na maneira como aquilo foi feito.

Porquê?

Porque não era o sistema [russo]. O sistema é levarem à frente tudo, arrasar tudo, na frente deles e progredir. Nas cidades têm nitidamente evitado provocar baixas civis. As pessoas dizem: "mas já morreram 500 pessoas". Quinhentas pessoas face à quantidade de coisas que tem havido é pouco. É cruel dizer uma coisa destas, é, mas é verdade. Quer dizer, temos ideia da quantidade de civis que foram mortos na Síria, temos ideia no Iémen, onde a Arábia Saudita bombardeia.

Ou Grozny.

Na Chechénia, mas aí é diferente, é na Rússia. Mas a diferença está aqui: não estão a atuar na maneira convencional deles.

Mas isso já mudou.

Penso que mudou, penso que Lavrov [Sergei, ministro dos Negócios Estrangeiros russo] disse a Kuleba [Dmytro, ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano]:   "ou vocês aceitam as nossas condições ou a partir de agora o jogo vai ser outro". Há um sítio que sei que vai ser terrível: Mariupol.

Já está a ser.

Na minha opinião, não são os russos que não querem que os civis saiam. Quem não quer que os civis saiam são os defensores da cidade, porque sabem que no momento em que ficarem sem os civis aquilo é... Não têm a mínima hipótese de sobreviver. E por isso, enquanto estiveram lá civis, têm a esperança que a coisa não seja assim tão grave. Isto é a realidade, mas não se pode dizer. Qual o interesse dos russos em matar os civis que estão em Mariupol, que até são a maioria russos? É isso que não é dito. Os civis são ou russos ou russófonos. E são esses que querem sair e que têm fugido de lá, e não lhes acontece nada.

Situação em 17 de março

Parecia que os russos iam usar equipamento novo nesta guerra, como demonstração de força, e as armas não são assim tão cirúrgicas, ou então é intencional bombardear civis.

Não concordo. Estão a usar material militar normal: lança foguetes múltiplos, artilharia – nunca é uma arma de grande grande precisão. Os mísseis-cruzeiro sim. Os que são lançados de aeronaves são-no. Alguns dos objetivos atingidos – não foi falado por ninguém – foi um hotel onde estavam os internacionais todos. Ninguém fala disso. O hotel desapareceu e foi dito que mais um prédio foi atacado. Ficaram umas pedritas e ainda por cima chamava-se hotel Ukraina. Ainda não empregaram as bombas termobáricas, uma bomba de 44 toneladas de explosivos.

Já as usaram pelo menos uma vez.

Não é verdade.

Usarem-nas em massa seria uma escalada gigante.

Essa bomba é o patamar antes do nuclear.

Não é o químico?

O químico ali, não... Achei piada falarem do químico, mas deviam falar da parte biológica, isso sim. Porque foram apanhados dois laboratórios de biotecnologia em que os patogénicos que estavam lá, inclusive febre hemorrágica do Congo... Se aquilo é libertado... Claro que os norte-americanos estavam preocupados. A senhora Victoria Nuland reconheceu que havia esses laboratórios.

Mas esses laboratórios são médicos.

Ela disse que eram de pesquisa. A linha entra o laboratório de pesquisa médica e o laboratório de guerra biológica é muito fininha. Ainda por cima alguns daqueles laboratórios eram do tempo da União Soviética e foram só, digamos, melhorados. No tempo da União Soviética tinham ali armazenadas coisas mais violentas, digamos assim.

Não põe em causa que possa ser propaganda russa?

A própria Victoria Nuland [subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos EUA] reconheceu que sim, senhor, existem esses laboratórios. Disse que eram laboratórios de pesquisa, mas, então, porque é que eram financiados pelo Departamento de Defesa norte-americano? Não soa assim um bocadinho estranho?

Em que fase é que acha que a guerra vai agora entrar?

A guerra agora vai ter outras caraterísticas. O meu raciocínio é: o que é que eu faria se fosse um general russo ou se mandasse ali na campanha? Nós temos visto os mapas que nos mostram na televisão e o mapa russo é um bocadinho diferente. Há muitas forças ucranianas retidas na zona de Kiev por causa dos avanços em direção à capital, depois há forças ucranianas retidas em Odessa e Melitopol. Mas o que vejo? Os russos têm forças bastantes para as fixar em Kiev, sem entrarem em grandes confrontos, e se conseguem da zona leste vir para baixo e de Mariupol para cima...

Cercam as tropas ucranianas de 40 mil a 100 mil homens [na linha da frente no Donbass]...

Ficam cercados sem reabastecimentos, munições, alimentação e sempre a serem bombardeados. Isto é aquilo que faria se fosse um general russo. E eles têm forças para isso e, neste momento, têm uma reserva, um segundo escalão, que está na Bielorússia na ordem dos 50 mil homens. Falo de russos, não de bielorrussos.

Mas o cerco às tropas ucranianas no Donbass não é suficiente para obrigar os ucranianos a capitular.

Com 50 mil homens [na Bielorrússia] depois, não têm a mínima hipótese.

Os Estados Unidos disseram que os russos não têm tropas suficientes para cercar e tomar Kiev.

Disso não tenho dúvidas, é muito mais complicado e por isso é que penso que toda a parafernália que está ali na zona de Kiev serve para fixar tropa. Tendo ali uma força razoável, na ordem dos 50 mil homens, não é suficiente para atacar, só com artilharia, mas aí arrasam. Se mandarem umas termobáricas acabou-se.

Mas a nível político-diplomático...

Seria subir o patamar. Por isso é que acho que ainda não empregaram nenhuma, mas se empregarem na sede do governo, onde está o Zelensky, fica tudo reduzido a pó e está o problema resolvido. Agora, penso que fixam ali e vão apanhar aquelas tropas [no Donbass], e aí acabou. Dnipro fica sem defesa...

Qual a solução para a guerra?

Estou convencido que a única solução é Zelensky aceitar as condições que lhe vão ser impostas. Se não aceitar, isto não acaba. Acho que o Putin não vai perder a face, mesmo que tenha de meter mais gente no terreno.

Mas as sanções estão a ser duras, a guerra está a durar mais do que ele estava à espera, a blitzkrieg de três a cinco dias...

Isso é o que as pessoas pensam. Será que ele queria fazer isso? Tenho algumas dúvidas.

Porquê?

Acho estúpido ele pensar que resolvia o assunto em cinco dias.

A guerra do Iraque demorou um mês, mês e meio, até os norte-americanos chegarem a Bagdade.

Cinco dias? Isto não é a Geórgia, que é logo ali ao canto da rua. O exército ucraniano é um exército bem treinado e equipado. Se ele pensava que ia fazer isso, alguém o enganou. E seguramente que não contava com esta vontade de resistir por parte dos ucranianos. Mas isto também é muito folclore no meio disto, não é? Vi-os sempre muito valentes, mas quando elas caem em cima um gajo apanha com cada susto. É humano e ter medo é humano. É tudo muito bonito, muito fortes e valentes, mas... Imaginar estar debaixo de um bombardeamento com os múltiplos foguetes e é bim-bim-bim. Mesmo que esteja deitadinho no chão ainda sobe um belo meio metro cada vez que rebenta uma.

Acha que a guerra vai durar quanto tempo?

Não sei. Tudo depende de os ucranianos compreenderem que, para evitarem ainda mais desgraças, o melhor é aceitar já as condições de Putin. Só que estão a ver se aguentam para ver se não perdem tudo. Ao Putin não interessa o império soviético, isso é tudo treta. Quanto a mim, a região do Donbass é se calhar muito importante, mas não percebo o porquê de ainda não ter feito muita força para Odessa, tirando o acesso ao mar.

Uma das críticas feitas aos generais que têm ido à televisão, e o senhor é um deles, é defenderem o capitulacionismo dos ucranianos.

Não estou a defender o capitulacionismo, estou a defender que não haja mais desgraças e, sobretudo, mais refugiados. As mulheres e as crianças é que estão a pagar a factura. Isto de haver sete milhões de pessoas que vão ficar sem as suas casas e andar pelo Deus dará pela Europa é inaceitável. Isto é inaceitável e por isso é que acho que quem brincou à roleta russa com o senhor Putin é um dos grandes culpados disto tudo.

E quem é que brincou?

Alguns líderes europeus e os Estados Unidos. Isto surpreendeu toda a gente, até a nós, analistas. Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, o senhor Holland, a senhora Merkel e o Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. "Agora não, os acordos assinados foram-no debaixo de pressão".

O que aconteceu foi que quando Poroshenko [Petro, antecessor de Zelensky na presidência] voltou a Kiev os amigos do Sector Direito [Pravy Sektor, milícia de extrema-direita] disseram-lhe que se cumpria aquilo levava um tiro na cabeça. Mas tem alguma dúvida de que foi isso que se passou? Eu não. Quem veio a seguir, o Zelensky, voltou com a mesma conversa e, portanto, apostou sempre que quem acabava por recuar era Putin. É não conhecer o animal, é brincar com coisas sérias, é não levar a sério uma pessoa que tem de ser levada a sério, que avisou. Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: "Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco". Esqueceram-se que é um gajo do all in, se jogasse póquer era sempre all in sem problemas.

Porque é que a NATO se expandiu ignorando Putin?

[Suspiro] Estarmos convencidos que ele metia a viola no saco. É uma irresponsabilidade.

Há interesses por detrás, como a indústria do armamento com a reestruturação das forças armadas de um Estado quando adere à NATO?

Não, penso que não. Ir-se-ia fazer uma guerra por isso? Acho que há irresponsabilidade e convenceram-se que não havia problema nenhum.

São milhares de milhões de dólares em jogo.

Claro que são.

O senhor general sabe melhor que eu que é preciso mudar a estrutura das forças armadas, do fuzil às telecomunicações.

Não. Repare no que aconteceu com a Polónia: começou lentamente a equipar-se, ainda lá tem MiG-29. Nós até acabámos por conseguir vender uns F-16 à Roménia, porreiro. É claro que o complexo militar-industrial precisa de clientes e de vender armas, é um facto. Arriscar uma guerra só por isso? Não me faz sentido.

A ideia da irresponsabilidade não faz muito sentido tendo em conta que não é de apenas uma pessoa. São líderes europeus, líderes da NATO, assessores. Ou seja, tem de haver interesses, não pode ser apenas irresponsabilidade não refletida.

Há sempre interesses, mas não sei qual o interesse. Por exemplo, não podemos dizer, mas é um facto: os ucranianos escandinavos têm a mania que são a raça superior no local e, para eles, os russos que vão para a Rússia [antes da invasão], mas deixem o território para a gente. Vimos que até os portugueses tiveram dificuldade em sair – primeiro vão os loiros, tu vais para o fim da fila.

Não tem medo que as suas palavras sejam mal-interpretadas ou descontextualizadas?

Pois, porque o problema é serem descontextualizadas, mas as verdades deviam ser ditas mais vezes, acho eu. Não é a generalidade – o povo é o povo, o trabalhador honesto do melhor que conheci – mas há lá gente muito má na sociedade ucraniana, temos de ter essa noção. Há racistas, xenófobos, supremacistas, neonazis.

Os seus críticos vão pegar nesta entrevista e dizer que o major-general está a favor da narrativa da “desnazificação” de Putin.

Desnazificação da sociedade é um bocado exagerado, mas que esta gente existe na sociedade ucraniana... Ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov. As pessoas não querem ouvir estas coisas. Não é que a sociedade ucraniana seja nazi, mas há lá gente muito má, e isto é um facto. Agora, desnazificar? Esta gente tem de perder pelo menos o poder que tem. Não sou contra haver partidos de esquerda ou de direita, de extrema-esquerda ou de extrema-direita, desde que respeitem as regras do jogo.

Mas ali não é isso que se passa. Zelensky, quando publicou esta última lei dos autóctones, alienou oito milhões de pessoas esquecendo-se que também há minorias importantes que também são tratadas abaixo de cão. Em todo o leste europeu todos os roma são maltratados, no Kosovo, até os albaneses [os maltratam], e a isso assisti. O que aconteceu aos estudantes africanos que estavam na Ucrânia? Sabia que ficaram vários dias sem os deixarem sair dos campus universitários? Até fizeram manifestações a dizer "Let us go home".

Disse várias vezes que as pessoas não querem ouvir e que as verdades têm de ser ditas. Acha que há uma certa “caça às bruxas” contra quem tenta ir contra a narrativa dominante?

Não tenho dúvidas. Repare, na SIC exprimi a minha opinião de que Putin tinha ficado encurralado e nem consegui dizer mais nada. Como tal e à maneira dele, Putin deu o salto em frente: "Estou preso, só tenho uma maneira, é atacar". Mas nem me deixaram acabar. O Ricardo Costa, que estava ao meu lado, disse logo "nem pensar, aquilo é a ideia dele, é o discurso dele, o que ele quer é a antiga União Soviética". O Putin afinal o que queria era alargar o império russo, voltar às suas fronteiras e atacar os países bálticas e a Polónia. Epá, não é, acho que não é. E tenho direito a ter a minha opinião, as pessoas devem poder pensar sobre qual a lógica disto. Porque é que o Putin ia ter uma lógica destas de conquistar terreno para alargar? Não faz muito sentido. Atacar um país com 44 milhões habitantes, dos quais há logicamente 30 e tal milhões no mínimo que não o vêem com bons olhos, e mesmo que os derrote grande parte vai-se transformar em guerrilheiros, a nível internacional vai ficar completamente desgraçado. Acha que ia fazer isto?

Então porque é que atacou?

Atacou porque ficou sem saída. Pôs ali as suas forças e disse "quero no mínimo isto e isto" e disseram-lhe que não. "Ai é? Então ataco". Para mim, a pedra de toque para ele atacar foi quando Zelensky disse que queria armas nucleares. Não foi bem assim que ele disse, mas foi quase, quando disse que ia pôr de lado o Memorando de Budapeste. Zelensky pensava que não ia haver problema, ele chegou até a condenar os norte-americanos por estarem a ser alarmistas. Convenceu-se também que não havia problema nenhum, que tinha ali forças bastantes e que aguentava perfeitamente com a Rússia. Mas quem é que lhe meteu isso na cabeça? Como é possível um presidente de um país aceitar entrar numa guerra sabendo que a vai perder? E mesmo agora não está convencido que a vai perder – umas vezes parece que sim, outras que não, já não se percebe.

Nesta "caça às bruxas" os generais também não estão a dar o flanco?

O que nos pedem é que digamos aquilo que pensamos e a verdade e eu, em termos de análise geoestratégica – aquela que não querem que façamos, querem que só falemos militarmente assim, militarmente assado, mas militarmente também temos de pensar. Um general já pensa ao nível da geopolítica e da geoestratégia e eu gosto de pensar sobre quais são as causas das coisas, porque é que acontecem e quais as possíveis variantes no meio disto. Um bom governante, uma pessoa que se preocupa com o seu povo, deve pensar no que é melhor para o país: se eu seguir por esta via, o que vai acontecer? Se seguir aquela, o que vai acontecer? O facto de aceitar estas imposições é assim tão grave? Será?

Os seus críticos dizem precisamente isso, que o senhor e os restantes militares defendem a agenda de Putin. É putinista?

Se ser putinista for gostar do homem, não sou. Se ser putinista é compreender a motivação dele, então sou. Porque eu compreendo porque é que ele agiu como agiu. Não concordo, atenção. O grande problema é que se calhar ele não teve outra solução face à maneira como a situação evoluiu. Temos uma crise e o patamar vai subindo: aconteceu isto, subiu mais um degrau, aconteceu aquilo e subiu mais um degrau. E há um momento em que há um detonador do conflito, e quando aconteceu [Zelensky dizer que a Ucrânia poderia vir a ter armas nucleares no seu território]... Putin também deve ter pensado que Zelensky acabava por ceder e os outros o faziam ver responsavelmente que se ia ver sozinho contra o bicharoco. Ou Zelensky se convenceu que aguentava, ou então alguém lhe prometeu uma ajuda que depois não podia dar.

O próprio Zelensky disse não acreditar nos relatórios dos Estados Unidos sobre uma possível invasão, mas também por causa dos danos económicos que a especulação estava a causar.

Todos nós desvalorizámos, porquê? Ele talvez tivesse garantias de que alguém o ajudaria, não sei.

Mas a NATO não pode entrar. Há vozes fortes a pedirem uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia apesar de o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, já ter posto essa opção fora da equação.

Já ouvi pessoas com responsabilidades, deputados a pedirem isso. As pessoas não percebem que se houver zona de exclusão aérea vamos para a guerra? Acabou. Ou pensam que Putin vai voltar atrás? Esta malta não se enxerga? Se aplicamos uma ZEA entramos em guerra, só se houver um milagre e nenhum avião for abatido, nem russo nem da Aliança. Basta haver um e acabou-se. Fiquei preocupado quando o MiG-21 romeno foi abatido, só que felizmente foi a defesa aérea ucraniana que o abateu.

E este bombardeamento a dez quilómetros da Polónia?

Foi a 25 quilómetros, depois já é dez.

Não, houve uma vila que foi bombardeada a dez quilómetros.

Era onde estava o quartel. Combatentes internacionalistas de extrema-direita, lamento, mas não tenho pena nenhuma deles. E de extrema-esquerda também não, atenção.

Como viu a notícia do Expresso sobre os três generais?

Aquilo faz parte de uma campanha, obviamente. Antes disso já o Milhazes... É um triste, não sei porque razão ganhou ali uma ultra raiva à Rússia, quando a gente sabe que até foi para lá enviado pelo Partido Comunista estudar, esteve casado com uma russa. Não sei o que a Rússia lhe fez que o homem veio de lá virado do avesso. Tudo bem, está no seu direito, mas é uma pessoa rancorosa. Um comentador não pode ter estados de almas, tem de tentar ver e perceber as coisas e, sobretudo, cada vez que contrariam as ideias pondo tudo num lado só... Dou um exemplo. Estava numa mesa [na SIC] e o senhor Nuno Rogeiro estava noutra e ele disse que os russos conquistaram Chernobyl, coisa má. E eu, que estava noutra mesa e tinha recebido um SMS – também fui comandante de russos – de um militar russo a dizer:  se não conquistássemos Chernobyl, os Azovs tinham rebentado com aquilo. É outro ponto de vista.

O próprio José Milhazes disse, ao reagir à tomada de Chernobyl pelos russos, que era um bom sinal, que estamos todos mais seguros.

Foi a mesma coisa em Zaporizhzhya. Os russos ocuparam aquilo e depois foi lá uma patrulha ucraniana tentar desalojá-los, quem abriu fogo foi a patrulha ucraniana. É giro como se dá a volta ao texto: os russos atacaram a central, perigo, podiam ter rebentado com aquilo tudo.

A Sputnik e a RT foram proibidas, há muita desinformação russa e propaganda ucraniana, onde é que o senhor major-general vai buscar essas informações?

Aos dois lados. Vou buscar à Internet.

Mas a que fontes?

Televisões, ITV, MOATS [The Mother of All Talks Shows], há montes de coisas.

Também está em contacto com militares russos?

Já estive, de vez em quando lá me mandam umas coisitas. Uma das últimas coisas que me mandaram foi há uns dias, disse que ficou sem 80% do seu dinheiro e que tem dois cartões [de débito] que agora não servem para nada.

Esse artigo do Expresso referia que o sector militar não estava a ver os generais com bons olhos. Já recebeu reações?

Por acaso as reações que tive foram todas positivas e de pessoas que respeito e que têm opiniões contrárias. Porque a nossa interpretação nem sempre é a mais válida, mas coincidentemente ou não aqueles que tentam analisar um pouco como eu são aqueles que estiveram na ex-Jugoslávia, no Afeganistão ou no Iraque. Foi onde percebemos que a verdade tem sempre duas caras, sempre.

Viu uma campanha mediática semelhante?

No Kosovo e fazer dos sérvios bandidos na Bósnia, quantas vezes. Na própria Croácia, logo no início da guerra, os craina [milícia croata] eram todos uns bandidos e os croatas todos uns anjinhos, mas quem estava no terreno sabia que não era bem assim. Se eu dizia – e aconteceu – "atenção que vocês também não são nenhuns anjinhos, têm aqui grandes bandidos", diziam-me "ah, você é pró-Sérvia". É impressionante. No Kosovo, tudo o que havia de mau eram os sérvios, tudo o que havia de bons eram os albaneses.

Acha que esse debate de polarização do bom e do mau domina?

É como nos habituámos a ver os filmes de Hollywood, de que as coisas são preto/branco e bom/mau. Há uns dias, num debate, disse que não percebia: então a NATO, que bombardeou a Sérvia, agora acha mal que a Rússia bombardeie a Ucrânia. No debate disseram que a NATO tinha que bombardear a Sérvia por o Milosevic ser um facínora. E eu disse ao outro comentador: o senhor está a raciocinar como Putin, há que bombardear a Ucrânia porque o Zelensky é um palhaço e há fascistas no governo. Bombardeia-se um país só porque não se gosta do governo desse país? Isto é o que um académico, um professor, pensa: fez-se bem em bombardear o Milosevic porque ele era muito mau.

Mas o Milosevic foi responsável por massacres.

Quais massacres? Isso foi a resposta que o académico disse. Srebrenica?

Por exemplo.

Quem foi massacrado em Srebrenica? Os muçulmanos. E os sérvios? Metade dos corpos encontrados – são as tais histórias mal contadas – em valas comuns eram de sérvios, porque o anterior comandante das forças muçulmanas em Srebrenica chacinou todas as aldeias sérvias que havia à volta da cidade.

E os sérvios retaliaram?

Claro. E mais: aqueles que ficaram e que se entregaram ao exército safaram-se. Quais foram os que morreram, limpos a pouco e pouco? Aqueles que tentaram fugir, a maioria, praticamente duas divisões, 20 mil homens. Isto é assim. Havia ali contas antigas a ajustar.

E quem teve interesse em desmembrar a Jugoslávia?

Para mim é mais que óbvio.

Quem?

A Alemanha.

Porquê?

Porque era um rival. A Jugoslávia era uma potência, caramba. Ainda sou do tempo em que a Jugoslávia era o nosso inimigo, porque o nosso exército reforçava a NATO no Norte de Itália face ao exército jugoslavo. Estudei muito a Jugoslávia e era uma potência em termos militares, mas dividida é uma maravilha.

E os Estados Unidos? A Alemanha dentro da NATO não tinha assim tanta força.

A Alemanha tinha muito interesse, deu o toque inicial fundamental: reconhecer a independência da Eslovénia e da Croácia. Os Estados Unidos, que no início até tinham sido um bocado renitentes ao desmembramento da Jugoslávia, deixaram de o ser a partir daí. É quando eles lixam o acordo de Lisboa, o Plano Cutileiro, e vão dizer ao Izetbegovic [Alija, presidente da Bósnia-Herzegovina] que tirasse a sua assinatura. 20 anos depois e 100 mil mortos depois, o território foi dividido quase como estava previsto em Lisboa. E esta gente consegue dormir sem ter a consciência bem queimadinha?

O que viu na sua missão no Kosovo?

Não estive só no Kosovo, estive na Croácia, na Bósnia, na Sérvia. Vi de tudo e vi coisas que não quero que ninguém veja.

Como o quê?

[Suspiro] Homens empalados e assados, já viu? Um gajo empalado e assado.

Em que circunstância?

Eu fazia a supervisão da troca de corpos entre os croatas e os sérvios na região de Zadar. Vinham os caixotes com os indivíduos mortos e eu tinha que os abrir. Na maior parte das vezes vinham com o sexo enfiado na boca e tínhamos de tirar. Isto foi em 1991/1992. Então vi um gajo empalado, ainda trazia o pau, porque não lho conseguiram tirar. Cortaram o pau na zona do rabo e a outra ponta da boca. Devem ter estado a assar o gajo, porque estava todo queimado de um dos lados. Gajos com o sexo na boca vi vários, sem orelhas vi n, era normal os croatas andarem com colares de orelhas de sérvios.

Como lidou com isso?

Dormi um bocadinho pior durante algum tempo, mas pronto. Tenho bom estômago. Impressiona-me, como é óbvio. Um camarada meu, também dos duros e que tinha andado na guerra em África, quando entrou com os sérvios em Vukovar passou o dia a vomitar, diz o gajo. Viu gajos pendurados no talho, já viu o que é? A malta que andou lá viu coisas muito complicadas e sabemos a maldade, sobretudo dos tais extremistas. Esta história de só uns é que são maus sempre me fez espécie. Só o Putin é que é um filho da mãe? Então e o resto? E quem andou a prometer ao Zelensky coisas? E o próprio Zelensky?

É por isso que a Estónia tem tanto medo da Rússia?

Claro. Como é óbvio: se eles tratassem bem a população russófila não teriam medo. E nós, na União Europeia, aceitamos isso. Aceitámos como membro, sem discutir e pedir condições mais exigentes, a Croácia, que fez a maior limpeza étnica da guerra jugoslava. Foram 250 mil sérvios expulsos da Croácia. Viviam lá 450 mil, agora são cerca de 150 mil. Os outros são sempre maus, criminosos. Nós, não. Aqui em Portugal alguém se importou durante oito anos,com aquilo que se passava no Donbass?

Disse que a Estónia tem medo, porque tem 25% de população russa ou russófila. Acha que o Putin vai avançar contra os países do Báltico? É algo que já se tem ouvido, que avançou para Ucrânia e a seguir vem o Báltico, em linha com a ideia do "expansionismo russo".

Não. Qual é o interesse de Putin nisso? Não entendo porque é que ele haveria de provocar uma guerra. A partir do momento em que ataque um membro da NATO entra numa guerra mundial. Qual é o interesse da Rússia em entrar numa guerra mundial? Ninguém tem interesse nisso. Vamos ser honestos e pensar um bocadinho. Agora o homem "é doido", "está doente", "vai morrer". As coisas que eu já ouvi. Tudo para justificar que ele quer tudo e mais alguma coisa. Ele não é o dono daquilo. Não se entra assim numa guerra.

Chamo à atenção para o facto de na Duma estar o Partido Comunista Russo, que é contra [Putin], o [Vladimir] Jirinóvski, que é o líder dos partidos nacionalistas, e mais uma série de gente, votaram unanimemente pelo reconhecimento das repúblicas separatistas.

É verdade, mas também Putin tem mão-de-ferro na Rússia.

Mas o que é que acontece ao Jirinóvski se votar contra Putin? Um voto mudaria alguma coisa? Não. Votação unânime.

Houve um deputado comunista que já se arrependeu de ter votado a favor, porque não previa uma invasão.

Sim, "votei, mas não estava a contar com isto". Outra coisa é colocar-se o Navalny [Alexei, opositor de Putin e denunciador da corrupção do Kremlin] nos píncaros. O maior democrata que Deus deitou ao mundo. O Navalny era do partido do Jirinóvski, é um dissidente.

Navalny disse em 2007 que os imigrantes eram como baratas e deveriam ser esmagados.

Não me espanta, sinceramente. São estas coisas. Quando vejo a Ana Gomes, que nos chamou [aos generais] "escroques", dizer que o Navalany era o melhor dos homens da oposição ao Putin fico logo elucidado. Vejo uma ex-deputada do PS dizer que "tem que haver imediatamente uma zona de exclusão aérea". Mas o que é que ela quer? Vai para a guerra? Vai mandar os filhos dela para a guerra? Vamos ser vaporizados à conta do seu espírito crítico?

Olhando também para o futuro. Diziam que a NATO estava adormecida. Os EUA, depois da saída do Afeganistão, viraram-se ainda mais para o Pacífico, para se focarem na China, pressionando desde 2014 os Estados-membros da NATO a investir na militarização. Isto parece ter revitalizado a NATO e a Alemanha disse que iria investir mais de €100 mil milhões em defesa. Nós também vamos avançar para os 2%. Como vê esta militarização da Europa?

É irrelevante. Para já, porque qualquer investimento leva uma boa meia dúzia de anos a ficar em condições e daqui a seis anos pode já não fazer diferença. Isto implicou foi uma mudança de paradigma. Quanto a mim, havia duas hipóteses de lidar com a Rússia. Uma era o modo Merkel.

Interdependência económica?

Exatamente. Puxar a Rússia para a Europa. A outra seria hostilizá-la, cortina de ferro. "Vocês estão desse lado e nós deste" e não há mais conversa. O que é que isso faz? Atira a Rússia para os braços da China. Em termos de geopolítica e geoestratégia dividimos o mundo em dois blocos poderosos e tenho dúvidas sobre o que será mais poderoso. Mesmo com a Austrália e o Japão, mas e o resto, como é?

Mais um movimento de não-alinhados que se formará?

Precisamente. E para que lado é que esses vão pender? Preferia, sinceramente, o modo Merkel. Mas os EUA não queriam isso. E isso também entra nas causas do conflito na Ucrânia. Os EUA pensam curto, enquanto os chineses pensam a 50 anos. O Deng Xiaoping, que já morreu, quase que previu isto tudo. O Xi Jinping andou nos campos de reeducação. O Putin fez o "caminho das pedras". Foi um espião militar, que não é bem aquele espião em que nós pensamos do KGB, tipo James Bond. Era um analista, um cerebral. Não é parvo nenhum, por isso chegou onde chegou.

Agora, este pensamento americano foi um bocado a curto prazo. Queriam vender mais armas; precisavam de vender mais gás líquido e não tinham maneira do o fazer enquanto a Rússia tivesse o mercado alemão nas mãos, agora vendem eles aos alemães. Quem é que perdeu nisto? Perdeu a Rússia. Em termos de prestígio, de armamento, de pessoas.

A economia…

Nisso tenho algumas dúvidas, porque eles prepararam-se bem. Depois, perdeu a Ucrânia. Não há quem os safe agora [aos ucranianos]. Talvez daqui a uns 20 ou 30 anos e para isso é preciso a Europa abrir os cordões à bolsa. A Europa, está-se a ver. Não há gasolina, não há gás, não há milho, não há rações para gado, não há trigo, não há óleo de girassol. Quem ganhou? Os EUA e a China.

Toda a narrativa de independência militar europeia esbate nessa dependência crescente da Europa para com os EUA.

Nós somos os criados de quarto dos norte-americanos. Tenho o curso de Ranger feito nos EUA. Não há muitos em Portugal, uma dúzia, talvez. Por muito que goste dos norte-americanos, por muito que os russos tenham sido sempre o meu inimigo.

Mas faz sentido um rearmamento da Europa neste prisma? Se basta um caça ser abatido numa hipotética zona de exclusão aérea para haver a III Guerra Mundial nuclear, faz sentido investir biliões em telecomunicações, tanques, fuzis, uniformes, formação militar? Isto tendo em conta que existe a dissuasão nuclear.

Faz. Daqui a quatro anos podemos ser autónomos em termos de defesa. Mas só isso. E não estaremos completamente dependentes e ao serviço da política americana.

Mas se vamos ficar ainda mais dependentes em termos energéticos e político-diplomáticos, qual é a independência que teremos? É a política que orienta as armas.

[risos] Boa observação. Pelo menos fazemos uma coisa que nos comprometemos: os 2% [de orçamento na Defesa]. E não tratamos miseravelmente as forças armadas, como temos tratado até aqui. Eu ainda comandei um regimento com 500 homens, depois outro com 1200 homens. Sinto que agora é difícil arranjar tanto homem. Comandei depois a brigada de reação rápida: tinha um batalhão de Comandos e dois batalhões de paraquedistas, mais o centro de operações especiais, mais um grupo de operações especiais em Lamego e um grupo de artilharia em Leiria, uma bateria anti-aérea. Tudo junto ainda fazia uns três mil homens que conseguia ter prontos para o combate em 15 dias. Onde é que está isso tudo agora?

Porque vamos apostar em militarização quando acabámos de sair de uma pandemia? Não há dinheiro para o Estado Social, mas há dinheiro para armas?

Neste momento não vamos comprar armas. O armamento nem é o nosso problema. Em termos de equipamento onde há mais dificuldades é na Marinha e na Força Aérea, que são coisas mais caras. Ao nível do Exército a coisa não está assim tão má em termos de equipamento. Onde está muito mal é em pessoal. Paga-se miseravelmente aos soldados. Quanto é que pensa que ganha um soldado?

Salário mínimo.

Pouco menos, salário mínimo com os descontos em cima. Onde é que eles ganham algum dinheiro? Nas missões, lá fora. No fundo quem tem ido muito às missões são as tropas especiais. Os teatros são perigosos e aqueles que a gente tem a certeza que se aguentam à bronca são os homens dos Comandos e dos Paraquedistas. Por isso é que foram para o Afeganistão e para a RCA [República Centro-Africana]. Para a Roménia [para fortalecer agora a frente leste da NATO] vamos mandar pessoal de Braga, uma força convencional bem equipada mais ao nível das viaturas.

O novo conceito de estratégia nacional não estava adaptado a esta nova política de blocos.

Passando a haver blocos temos de dar a volta ao texto. Mas não temos hipótese de fazer muito mais do que aquilo que temos. Por exemplo, em termos do exército - e eu estou, como é óbvio, mais à vontade para falar do exército - o conceito de ter três tipos de forças como temos é um bom conceito. Temos uma brigada pesada, em Santa Margarida, e depois temos uma média e uma ligeira, que é a Brigada de Reação Rápida. E parece-me que temos de andar por aí, não podemos mexer em muito mais que isso. Em termos da Marinha e, sobretudo, da armada e da Força Aérea, temos que melhorar. A Força Aérea vai receber um avião brasileiro para transporte de pessoal.

Mas voltando à política de blocos, tendo em conta a história, a China já considera a Rússia a sua principal parceira estratégica. Com este isolamento internacional a Rússia aproxima-se da China. É possível que tenhamos uma guerra "a sério" daqui a uns anos com esta política de blocos?

Se formos a acreditar no terceiro segredo de Fátima, é em 2025. [risos] Ainda temos três anos.

As pessoas estão com medo.

Até eu fico com medo quando oiço responsáveis a falar. O ministro Santos Silva virou um falcão. Ouvi a Ana Gomes: "se a NATO não serve para ajudar a Ucrânia, então não serve para nada". Para já, a NATO é uma organização defensiva.

A Sérvia mostra que não é bem assim.

Pois, claro, aí foi ofensiva e de que maneira. O meu colega Agostinho Costa disse "a NATO é os Estados Unidos e o resto é paisagem", e caíram-lhe em cima. É paisagem, porra! Quem é que fez os bombardeamentos [na Sérvia?]? Os norte-americanos e os ingleses. O que é que faziam os nossos caças? Escolta aos que iam bombardear. Não andámos a bombardear. Agora toda a gente percebe de tropa, o que é fantástico. Eu que estudei isto toda a vida às vezes continuo sem perceber. Há pessoas que leram agora duas coisas na Wikipédia e pronto, já percebem tudo sobre guerra e tropas.

Qualquer indivíduo que tenha chegado a major-general teve que estudar estratégia, fez o curso de estado-maior, em que novamente a estratégia e a geoestratégia são uma parte importantíssima. Depois no curso para general voltou outra vez a levar com aquilo em cima. E novamente teve de apresentar trabalhos, análises nesse âmbito. Anos, anos e anos a pensar. E agora um qualquer doutor que leu duas tretas já sabe de geoestratégia e percebe tudo. Eu não percebi que o Putin ia atacar.

Três dias antes perguntaram-me na SIC e disse "acho que não". Porque sempre me convenci que o Zelensky aceitaria as condições impostas, que me pareciam lógicas. As repúblicas separatistas já estavam separadas. A Crimeia já estava anexada. Eram situações de facto que ele nunca iria conseguiria reverter. Para isso tinha de ter poderio militar, que não tinha.

Mas esse era o medo de Putin quando o Zelensky começou, em novembro, a concentrar 40 a 100 mil homens na linha de Donbass.

Jogou à roleta russa com um russo. Não se faz isso. E depois a entrada para a NATO. Aí é que a NATO procedeu mal ao dizer que a Ucrânia teria todo o direito de entrar para NATO. Depois já diziam "não, ele nem podia, afinal, entrar para NATO". Isso é tudo treta. Não é assim que as coisas se passam. O que é que custava ao indivíduo dizer "sim senhor, não quero entrar para a NATO" e declarava a neutralidade como a Finlândia.

Os seus críticos dizem que todas as nações têm o direito à sua autodeterminação.

Digam isso a Cuba e ao México. Vão lá e digam-lhes: "vocês têm o direito de serem os aliados de quem quiserem". Treta, não têm. Porque é que somos hipócritas? Escrevi um livro sobre o Kosovo. O meu título inicial era "A hipocrisia de uma independência inédita", porque foi hipócrita. Agora achamos mal a independência das repúblicas separatistas. Essas estão mal, a do Kosovo está bem. Expliquem-me lá. A Transnístria? "Não pode ser." O Nagorno-Karabakh?" Nem pensem nisso." A Ossétia e a Abecásia? "Ah, isso são pró-Russos, não podem ser independentes". O Kosovo? "Pode, até vai entrar para a NATO e tudo." Um bocadinho menos de hipocrisia. Farto-me de dizer isto: eu pensava que era do lados dos "bons". Que só fazíamos coisas boas.

E o quando é que percebeu que não era?

Já há algum tempo. Não foi preciso muito. Foi quando começaram as missões internacionais, quando comecei a ver que as coisas não são a preto e branco, quando começaram estas missões de paz e percebi que não era bem assim. Não era assim tão bonito. Sobretudo ao ver que nós é que fazíamos as maldades.

Essa opinião é partilhada por outros militares portugueses?

Penso que sim. Aqueles que forem honestos consigo próprios e que tenham assistido a coisas como aquelas a que assisti. Agora, isso não me impediu de fazer as coisas que me mandavam fazer. Eu fiz um juramento, temos de o cumprir. Somos da NATO, sou português. A gente na tropa aprende a cumprir uma ordem. Se não concorda, diz. Se mandarem de novo, temos que fazer.

Uma ordem é sagrada.

É. Em princípio, é. A menos que seja uma coisa perfeitamente disparatada. Há limites. Se me mandarem matar prisioneiros não aceito, como é óbvio. Se me mandarem fazer uma coisa que vá contra a Convenção de Genebra, não aceito fazer. E, claro, arrisco-me a ser fuzilado, mas cada um atua com a sua consciência. Mas nunca me eximi de dar o meu ponto-de-vista. E fui sempre conhecido por isso. Quantas vezes eu disse que não estava de acordo com uma ordem. E também mo disseram a mim. Não estou para ter gajos que dizem "ámen" a tudo. Se toda a gente me diz que sim a tudo eu não sei se estou a agir bem ou não.

Parece ser esse o problema de Putin.

Pode ser, perfeitamente.

Uma das reações nos media, e vou citar uma, é que "militares não têm que ter opiniões políticas, têm que honrar as alianças políticas que o país tem".

É verdade, temos que honrar as alianças que o país tem, mas acho que ao dar a minha opinião estou precisamente a valorizar a informação daqueles que têm que decidir. Tenho que honrar as alianças. Se me disserem, ou a um oficial no ativo, "atira-te de cabeça contra os russos", eu atiro. A ordem é para atacar? Ataco. Mas antes digo "mas isso é capaz de ser uma loucura". Tenho o direito de dar a minha opinião. Os militares têm esse direito. Posso depois ter de cumprir uma ordem de que não gosto. Mas antes de a cumprir tenho o direito – e até o dever – de dar a minha opinião para que quem toma a decisão esteja bem informado.

Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora. É preciso um gajo ter cuidado com o que diz. Se eu disser que nos corredores humanitários quem tem interesse em que os civis saiam são os russos e que os ucranianos têm interesse que os civis fiquem, para se protegerem, dizem logo "este gajo é putinista". Se digo que o prédio foi deitado abaixo porque eles tinham, seguramente, gajos com o javelins ou stingers no topo do prédio, que é o normal, e os russos passam lá com um helicóptero e vêem lá o stinger, mandam para lá uma bojarda, como é óbvio.

Onde é que estavam os lança-foguetes múltiplos quando caíram aquelas [bombas] em Kharkiv, no meio da cidade? Os lança-foguetes estão nas traseiras de carrinhas. São lançados e depois vão-se embora. E quando chega o troco já lá não estão. Mas o sítio onde eles estavam fica reduzido a entulho. É assim que se criam incidentes. Era isto que se fazia constantemente na guerra da Jugoslávia. Morteiros ao pé de hospitais, de um lado e de outro. Os sérvios faziam isso e os croatas faziam isso. Os morteiros mais pesados estavam ao lado de um hospital.

17/Março/2022

[*] Major-General

O original encontra-se em setentaequatro.pt/entrevista/major-general-raul-cunha-quem-brincou-roleta-russa-com-putin-e-um-dos-grandes-culpados-e

Esta entrevista encontra-se em resistir.info

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