Caro Otelo
A esta hora estás na capela da Academia Militar. Ainda pensei juntar uns cobres, comprar a passagem e ir despedir-me, mas lembrei-me que estou de relações cortadas com o dono da casa, a viagem seria inútil. Em igrejas não entro desde que acompanhava o José Rodrigues (Zeca Bailundo) à Sé de Luanda, onde ele ia desenhar sua madrinha, Nossa Senhora dos Remédios. Aqueles vitrais, aquela luz coada, deixavam-me com vontade de ser pássaro. Um perigo tremendo, porque me faltavam as asas robustas que hoje tenho.
Otelo, vê a merda que fizeste! Os portugueses, 47 anos depois do 25 de Abril, são guiados pelo beijoqueiro insanável. Antes de ti, eram alegremente servis. Hoje os senhores estão a castrá-los e eles gostam. Vão voluntariamente à castração. E quando ouvem falar de liberdade vão logo a correr para as igrejas batendo com a mão no peito enquanto pedem perdão, pela sua máxima culpa.
Conheci-te em Julho de 1974, pedi-te ajuda. Os esquadrões da morte dos mentores da Independência Branca matavam todas as noites dezenas de angolanas e angolanos nos musseques de Luanda. Arranjámos uns quantos camaradas especializados em guerrilha urbana que tu tornaste imprestáveis com o 25 de Abril e ajudaste a levá-los para Angola, sem ninguém dar por isso, embarcaram e desembarcaram em bases aéreas militares. Alguns tiveram um papel decisivo no sinuoso percurso até à Independência Nacional.
Voltámos a encontrar-nos em Alvor, no Hotel da Penina. Tu apareceste de surpresa, pedi-te para ires ao estúdio da Emissora Oficial de Angola no Hotel D. João II e aceitaste. Foste entrevistado pelo Aquino de Bragança, Francisco Simons, Horácio da Fonseca e por mim. Até Humberto Jorge, o homem dos botões, te fez perguntas. O Aquino era nosso comentador e teu velho amigo. Depois da entrevista, quiseste sair logo do local, porque foste assediado por todos os jornalistas presentes. Tu, o Aquino de Bragança e eu fomos no teu carro para local mais arejado, uma taberna e casa de pasto, perto dos luxuosos hotéis.