João Moreira | Diário de Notícias
| opinião
Sou filho de um homem velho, e
esse homem velho chama-se Adriano Moreira. Quando era pequeno - já o meu pai
era velho -, o meu pai explicou-me, com a frontalidade trasmontana que lhe era
característica, que eu ia deixar de ter pai muito cedo. Cresci marcado por este
medo, que condicionou muitas decisões que tomei.
Em 2011, aceitei a
inevitabilidade (da falta de controlo sobre o momento) da sua da morte, e
decidi ir viver para Moçambique, consciente de que lhe poderia acontecer alguma
coisa enquanto lá estivesse, ou de que já pouco o gozaria no meu regresso.
Voltei em 2013 e, depois disso, tive ainda mais nove anos de pai. Este homem
velho viveu até ser mesmo muito velho.
No dia em que parti para
Moçambique, concebi esta carta. Guardei-a na minha memória até este momento em
que, de certa forma, a imprimo.
É esmagador ser-se filho da
figura pública do Adriano Moreira, por boas razões, mas esta carta é sobre o
meu pai, e não sobre o Académico que teve duas passagens pela política.
O casamento dos meus pais é uma
das histórias mais bonitas que pode haver sobre compromisso - entre meios
sociais, interesses e gerações.
Este compromisso teve dois
motores: a inteligência do meu pai (sempre e em tudo na vida, racional e
institucionalista) e, antes disso, a pujança emocional e força interior da
minha mãe, que se projeta em tudo o que faz.
A minha mãe é apaixonada -
literalmente, apaixonada - pelo meu pai desde os tempos da faculdade. E dedicou
a vida a este amor, que tem muito pouco paralelo. Foi esta mãe que, sobretudo
na minha adolescência, funcionou como a lente que me permitiu ver melhor o pai
que tinha. Nesse processo, apercebi-me de que a dimensão pessoal do meu pai era
ainda superior à dimensão da figura pública.
Neste momento em que se
multiplicarão os escritos e as homenagens à figura pública, sinto necessidade
de trazer a público o meu testemunho sobre o meu Pai, o que acaba também por
ser a minha forma de homenagem. Faço-o a título pessoal.
O meu Adriano Moreira:
O meu pai nasceu pobre. Era filho
de um polícia e de uma costureira e lutou muito para chegar onde chegou. Era,
literalmente, um self made man. Esta origem teve consequências e
manifestações várias, que são o ponto de partida da minha admiração.
O meu pai encarava com
naturalidade o facto de ter nascido pobre. Descrevia as limitações com que
vivia e a vida na aldeia, e até as dinâmicas rico-pobre ali vigentes, de forma
absolutamente factual/sociológica - sem lamentar a pobreza; sem invejar a
riqueza. Mais importante, orgulhava-se da sua origem. Era trasmontano de
coração, e sempre lembrou - a nós e ao mundo - de onde vinha.
A relação que o meu pai tinha com
a sua origem teve impacto na vida pessoal, mas teve também um impacto decisivo
no seu pensamento político, com tradução em ideias muito simples: não é preciso
limitar o sucesso de cada um, mas sim compensar as diferenças entre os vários
pontos de partida, para que todos tenham oportunidade de sucesso; meritocracia,
temperada com humanismo cristão. Lembro-me bem da primeira vez em que o meu pai
me falou sobre a diferença entre igualdade à partida e igualdade à chegada...
Não tendo tido sorte no meio
social (do ponto de vista do poder de compra, etc.), teve, no entanto, sorte
nos pais: os meus avós, apesar do tempo em que viveram e do meio a que
pertenciam, incentivaram e suportaram os estudos do meu pai (e da irmã...) até
à faculdade. O meu pai não perdia uma oportunidade para lembrar - novamente, o
orgulho na sua origem - que devia tudo aos meus avós, sem conseguir perceber,
quando olhava para trás, como isso tinha sido possível. Passou os últimos
tempos de vida preso a este pensamento e admiração, insistindo connosco para
que não nos esquecêssemos que devíamos tudo ao meu avô, "António Moreira,
sub-chefe da Esquadra de Campolide".