quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Angola | OS PRIMEIROS ANOS DO COMBOIO – Artur Queiroz

(Luanda foi o ponto de partida do caminho-de-ferro. Da capital para o Norte até Malange. Mais tarde para o Centro e Leste com o Caminho de Ferro de Benguela e para o Sul e Sudeste, Caminho-de-Ferro de Moçâmedes. Na festa de aniversário, que se comemora amanhã, envio esta reportagem)

Artur Queiroz*, Luanda

O projecto inicial compreendia o trajecto entre Luanda e a Funda mas a obra foi mais longe. O primeiro “esboço” de caminho-de-ferro em Angola é de Pompílio Pompeu de Carpo, que em 1848 decidiu ligar Luanda a Calumbo por comboio, um meio de transporte revolucionário e que na época dava os primeiros passos. O autor, natural da ilha da Madeira, era homem dado a revoluções. Foi preso por atentar contra a coroa portuguesa e veio cumprir pena na Fortaleza de São Miguel.

O madeirense era homem culto e teve um papel importantíssimo na Imprensa Angolana. Era proprietário da tipografia que imprimiu o Boletim Oficial, o primeiro jornal angolano. Para recuperar a liberdade, ele ofereceu-a ao governador Pedro Alexandrino da Cunha. Dinamizou o Teatro Providência, foi panfletário e polemista. Falava fluentemente o inglês e tornou-se agente comercial com ligações privilegiadas à praça de Londres, que na época era o primeiro mercado de matérias-primas. Por isso fez fortuna fácil e rápida.

Em 1848, apresentou o projecto do caminho-de-ferro aos comerciantes de “Loanda” Silvano Francisco Luís Pereira e Eduardo Germak Possolo. Pompílio de Carpo ainda conseguiu incluir na sociedade “herr” Shut que era o cônsul honorário de Portugal em Hamburgo e facilitava a aquisição de locomotivas “Henchel” e as carruagens. As locomotivas inglesas ficavam por conta do autor do projecto. Quem fizesse melhores condições, fornecia o material circulante.

Pompílio Pompeu de Carpo era mais dado ao teatro e ao jornalismo, por isso o projecto do caminho-de-ferro entre Luanda e Calumbo ficou para segundo plano. Os sócios também se desinteressaram, porque os custos das locomotivas e vagões eram elevadíssimos.

O governador-geral José Baptista de Andrade retoma o projecto em 1862. Mas pouco adiantou porque não conseguiu atrair capitais privados e os cofres públicos estavam depauperados. Em 5 de Agosto de 1873, o então ministro do Ultramar e da Marinha, Andrade Corvo, ordenou ao governador-geral de Angola que iniciasse de imediato a execução de projectos que dotassem Angola de “viação pública”. Em Luanda nada aconteceu. 

O ministro insistiu em 5 de Fevereiro de 1874. O governador ignorou as ordens. Pressionado por Lisboa, em Dezembro assinou um decreto que aprovava o contrato para construção do caminho-de-ferro de Calumbo, entre o Governo-Geral de Angola e um consórcio formado por poderosos comerciantes e industriais de Luanda: Augusto Garrido, Alberto da Fonseca Abreu e Costa, José Jacinto Ferreira da Cruz, proprietário da Fábrica de Tabacos Ultramarina, Ângelo Prado, Matoso da Câmara e Isaac Zagury.

Em 1877, o ministro Andrade Corvo veio a Luanda, viajando no navio “Índia”, da Marinha de Guerra. Foi acompanhado por uma equipa de engenheiros liderada pelo major Manuel Rafael Gorjão. Faziam parte do grupo Arnaldo de Novais, Gualberto Bettencourt Rodrigues, Henrique Santos Rosa, Neves Ferreira, Domingos de Figueiredo e Frederico Torres. 

Os técnicos, por ordem do ministro, recebiam salários muito acima do normal e eram pagos por um “saco azul” e não pela folha de vencimentos da administração colonial. Nada lhes faltava. Eles tinham que “desencalhar” o comboio a todo o custo. O objectivo agora era levar o comboio até ao Lucala. E o projecto mudou de nome: Caminho-de-Ferro de Ambaca.

Com Destino à Funda

Os técnicos perderam muito tempo a discutir o traçado da linha. Uns defendiam que ela devia ser complementar aos transportes fluviais através do rio Cuanza. Outros queriam que a linha fosse autónoma. Face às desinteligências, a construção efectiva da linha apenas começou em 31 de Outubro de 1886. O director das obras era João Burnay, um experimentado engenheiro em ferrovias. Era tão competente que em 31 de Outubro de 1888 foi inaugurado o percurso de 45 quilómetros entre Luanda e a Funda.

O governador decretou feriado e o comércio de Luanda fechou para todos irem à Estação da Cidade Alta ver partir o comboio, puxado por uma moderna máquina Armstrong. Em seguida, arrancou a construção do Caminho-de-Ferro de Malange e ao mesmo tempo o Ramal do Golungo Alto.

No Dombe Grande começou a ser construída a linha de 17 quilómetros, para o posto do Cuio. No sul arrancaram as obras do Caminho-de-Ferro de Moçâmedes em direcção ao Lubango, vencendo a serra da Chela, considerada intransponível. Mas para as famosas máquinas alemãs Henchel e Koppel não havia impossíveis.

Do Lobito ao Cubal

O inglês Robert Williams descobriu as minas de cobre do Katanga e percebeu que só podia retirar o minério por mar, no Lobito. Propôs ao governo português a construção de um caminho-de-ferro até à fronteira com o então Estado Independente do Congo ou Congo Belga. Em 1902, foi assinado o contrato de concessão por 99 anos. Portugal, de imediato, criou o distrito da Lunda e nomeou seu primeiro governador o então major de infantaria, Henrique de Carvalho, profundo conhecedor da região. Bruxelas e Lisboa travavam uma renhida disputa fronteiriça. Os portugueses respondem com a extensão da autoridade do Estado a todo Leste de Angola.

Em 1 de Março de 1903 começaram os trabalhos na linha, a partir do Lobito cujas obras do porto de mar também começaram. A saga da construção do CFB é um romance! Operários europeus, desde portugueses a gregos e italianos, trabalhavam de sol a sol no assentamento dos carris. Milhares de angolanos derramavam o seu suor no canal ferroviário. Em 1908, aconteceu história: Foram inaugurados os primeiros 197 quilómetros entre o Lobito e o Cubal.

Em 1908 a linha avançou para o Cuma (Ukuma). E em 31 de Julho de 1911, há 112 anos, o comboio saiu do Lobito, todo engalanado, só parando na estação do Lepi. Estavam construídos 360 quilómetros de linha!

Os que Rasgam Caminhos

Os operários da via-férrea trabalhavam noite e dia para levar o comboio até à fronteira, que naquele tempo ainda não estava estável nem definida. E em 4 de Setembro de 1912, o comboio chegou ao Huambo, nesta altura ainda uma espécie de acampamento dos ferroviários.

Em 18 de Outubro de 1913 o comboio do CFB puxado por uma moderna e potente Armstrong, apitava no Chinguar. As quitandeiras ofereciam aos viajantes cestinhos de morangos e loengos. Os registos marcam até aqui, 519 quilómetros de linha, desde o Lobito.

Logo a seguir rebentou a I Guerra Mundial. Os portugueses mobilizaram todos os seus recursos para combater os alemães que na época ocupavam a Namíbia (Damaralândia). Os ingleses fizeram um esforço financeiro gigantesco para combater o inimigo alemão. Os trabalhos da via-férrea pararam. Os que rasgam caminhos ficaram sem trabalho e fixaram-se nas estações ao longo do canal ferroviário que já funcionava. Foi assim que o Huambo cresceu e se fez cidade.

Quando foi assinado o armistício no palácio de Versalhes (Paris) a Europa estava destruída e sem dinheiro. As obras do CFB estiveram paradas dez anos. Mas em 1923 (há 100 anos!) recomeçaram, com uma força de trabalho mais reduzida. Em 31 de Janeiro de 1924, o comboio chegou ao Cuito (Sila Porto). Mas as obras continuavam. Em Setembro de 1925 o comboio chegou ao rio Cuanza e passou para o outro lado, através de uma ponte em ferro com 160 metros! O registo revela que estão construídos 725 quilómetros de linha. A fronteira está cada vez mais perto. Mas ainda não se sabe qual é.

A ponte foi projectada para o comboio. Mas o Governo-Geral de Angola fez um acordo com o CFB e pagou à parte os trabalhos que permitiram que a ponte servisse também para peões e automóveis.

Os que rasgam caminhos passaram rapidamente o Munhango e Luena (Vila Luso). Seguiram em direcção à fronteira. Portugal e Bélgica discutiam o traçado exacto da fronteira Leste.

Em 1927, foi assinado o Tratado de Loanda. Portugal conseguiu incluir em Angola a chamada “Bota do Dilolo”, uma área de 3.500 quilómetros quadrados, entre o Luau e um pouco mais abaixo do saliente do Cazombo. Imediatamente ficou definido o ponto de chegada do comboio: Luau, até àquela data território do Congo Belga.

No dia 11 de Janeiro de 1929, o comboio saído do Lobito entrou triunfante na estação do Luau. Tinha acabado de percorrer 1.347 quilómetros. No Tratado de Loanda está incluída uma Convenção sobre livre a circulação de pessoas e mercadorias belgas através do CFB. Afinal o comboio é estratégico para os dois lados.

De Luanda a Malange

Nesta altura (1929) a linha de Ambaca (de Luanda à margem direita do rio Lucala) estava a funcionar. A linha de Malange e o ramal do Golungo Alto estavam em construção. O “comboio malandro” imortalizado pelo poeta António Jacinto em breve começava a circular entre o Xen za do Itombe e Golungo Altto. O poema de Jacinto (Castigo para o Combnoio Malandro) vale por toda uma literatura universal. Eu viajei muito nas “grazine” do ramal.

A linha do Lucala a Malange arrancou em força, numa extensão de 148 quilómetros e os primeiros 140 quilómetros, até Matete, foram inaugurados em 8 de Setembro de 1907.

O percurso entre Matete e Malange abriu ao tráfego em 1 de Setembro de 1909.

O ramal do Golungo Alto, tem 31 quilómetros. Os primeiros 14, entre Canhoca e Cambondo, ficaram concluídos em 28 de Agosto de 1913. A linha ficou completa, em 20 de Outubro de 1915.

Em 1918, todas as linhas foram integradas numa nova empresa: Caminho-de-Ferro de Luanda. Foi construído nesse ano, o ramal de Calumbo. Estava realizado o sonho de Pompílio Pompeu de Carpo. O CFL também integrou a antiga linha do Bengo, até Catete e a chamada bolsa de Cassoalala. A nova empresa ficou a gerir 617 quilómetros de via-férrea.

Do Namibe ao Lubango

A “febre” do caminho-de-ferro chegou ao sul de Angola. Os alemães tinham um projecto de ocupação do território até pelo menos à margem sul do rio Cunene. E depois construir uma via-férrea que nascia num porto a construir na Baía dos Tigres ou Tombwa e penetrava o interior de Angola até ao Cuando Cubango, descendo depois para a Namíbia e África do Sul.

Os portugueses, conhecedores dos planos alemães, em 28 de Setembro de 1905 começaram a construir uma linha entre o porto do Namibe e o Lubango, numa extensão de 248 quilómetros. Em 19 de Fevereiro de 1907 estavam construídos os primeiros 67 quilómetros. Em Maio de 1916 o comboio estava na Bibala (Vila Arriaga) numa extensão de 186 quilómetros. E aí ficou durante sete anos.

O comboio só chegou ao Lubango em 31 de Maio de 1923. A empresa ainda construiu alguns quilómetros de linha em direcção à Chibia, mas o projecto foi abandonado. O canal ferroviário para o Cuando Cubango, arrancou muito mais tarde.

Comboio do Café

A região da Gabela começou a marcar pontos na produção de café. Um grupo de fazendeiros e comerciantes, liderado pelos proprietários da fazenda CADA, decidiu construir uma linha férrea até Porto Amboim, numa extensão de 106 quilómetros. Os primeiros 80 quilómetros, até Carlaongo, foram inaugurados em 1 de Julho de 1925.

A linha do Caminho-de-Ferro do Amboim ficou concluída em 1931. Em 1933 transportou 985 passageiros e 6.780 toneladas de café.

Cada passageiro que viajava nos comboios de Angola pagava 0,01 tostão por quilómetro, em terceira classe. Em segunda, 0,03 e em primeira, 0,05. Cada tonelada de carga geral custava 0,06 tostão. Mas produtos como o café, milho e sisal tinham uma redução de 50 por cento, o que fazia do caminho-de-ferro um meio de transporte muito barato.

*Jornalista

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