sábado, 7 de janeiro de 2023

ZECA BAILUNDO E AS ROSAS EM BOTÃO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Os amigos chamavam-lhe Zeca Bailundo. No mundo das artes plásticas é conhecido como José Rodrigues, escultor e desenhador. Um angolano prodigioso, de Luanda, que ganhou a alcunha porque seu pai era dono de uma serração e uma padaria chamadas “Bailundo”, na Estrada da Cuca. O guarda-livros das organizações comerciais do Velho Rodrigues era o poeta António Jacinto.

O Zeca Bailundo partiu sem que lhe pagasse uma extensíssima dívida que comecei a fazer quando me levou à Sé de Luanda (Igreja de Nossa Senhora dos Remédios) onde ia desenhar a santa que lhe salvou a vida por via de um milagre, quando era bebé. Ele ficava sentado num banco corrido olhando para as imagens daquela santaria toda e desenhava. Eu andava por ali, contemplando a luz coada pelos vitrais, em vários ângulos. Nunca mais apreciei tão belo espectáculo mas também é verdade que cortei relações perpetuamente com o dono da casa.

A vida dá muitas voltas, umas suaves outras tão violentas que nos fazem andar aos trambolhões. Quando fui trabalhar para o Porto e reencontrei Zeca Bailundo. Era um respeitado professor da Escola de Belas Artes, dinamizador da Cooperativa Árvore e tinha acabado de ganhar um prémio de escultura na Bienal de Veneza. Retomámos a amizade. Um dia propôs-me um projecto muito interessante. Percorrermos os caminhos da nossa infância, desde o Golungo Alto ao paraíso da Mamã Cagalhoça, no Bairro Operário.

Ele fazia desenhos e eu escrevia crónicas no final de cada etapa. António Jacinto tratava da publicação da obra e propôs que o produto da sua venda revertesse para um fundo de apoio a jovens artistas e escritores. Eu disse ao Zeca que preferia receber a massa e depois irmos os dois para Las Vegas derreter tudo na roleta. Fazíamos amizade com duas meninas simpáticas e amantes da noite. (Oiçam bem! As mulheres que amam as horas nocturnas não as estragam. Porque morrem entre o amanhecer e o meio-dia). Uma menina seria negra e a outra ruiva. A negra apostava no vermelho e a ruiva no preto.

Um festim de jogo e seus derivados viciosos.

António Jacinto não gostou dos meus devaneios viciosos e o Zeca resolveu logo a maka.

O dinheiro fica sim para apoiar jovens artistas e escritores. Mas organizamos uma exposição com os desenhos e o produto da venda é nosso. Vamos para Las Vegas.

Nunca fomos percorrer os caminhos das nossas infâncias nem fomos a Las Vegas.

Quanto à roleta, só a da vida. Meninas simpáticas, amantes da noite, não encontrei nenhuma disponível. Quanto ao Zeca, não sei.

Esta mania de percorrer caminhos já trilhados e depois escrever umas crónicas pegou à força toda. Comecei com o meu poeta favorito estrangeiro, Manuel Bandeira: “Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”. Propus ao Zé Saraiva, director do Jornal de Notícias, ir fazer uma reportagem no Recife, seguindo o roteiro da sua poesia. Chamou-me maluco e flautista. Pensam que desisti? Mal arranjei dinheiro embarquei com destino ao Recife. Numa grande avenida, com o porto à vista, estava uma escultura imponente que me era familiar embora nunca a tivesse visto antes. Era do Zeca Bailundo!

A reportagem nunca foi publicada. Chamei-lhe “Recife das Rosas em Botão”. Texto e fotos. Convidei uma moreninha anónima a posar para mim junto da escultura do José Rodrigues, fotografei-a de vários ângulos e muitas poses. Depois mergulhei na cidade antiga e gastei dez rolos! Poemas, fotos e texto davam um belo caderno central.

Ninguém lhes pegou.

O meu poeta seguinte foi o Luís Veiga Leitão. Quando a PIDE o prendeu, ele desenhou uma bicicleta na parede da cela. E quando os guardas pensavam que estava enclausurado, o bom do Luís montava na bicicleta e percorria o mundo em pedalada lenta. Subia e descia os socalcos do Douro. Os mialas desta vida nunca compreenderão que nos basta o desenho de uma bicicleta para sermos livres. Metem pena.

No fim da viagem escrevi uma crónica que foi publicada na última página do Jornal de Notícias. Chamava-se Cuidado com o Cão e tudo aconteceu no Clube da Maianga quando dancei o xaxado com a morena mais bela do bairro. Claro que fui na bicicleta do Luís Veiga Leitão desde o Porto até ao clube.

O meu poeta universal é Agostinho Neto. Passei dois anos imaginando como percorrer a sua poesia para depois publicar a reportagem. Fiz várias tentativas. Saíram pelo menos seis textos que depois de lidos, amarfanhava furiosamente. Tudo mal.

Um dia acertei. Chamei à reportagem “A Rota dos Poetas com Asas”. E o subtítulo era Nós Somos Angola Nós Somos. Comecei nos alicerces do mundo e acabei nas estrelas viajando agarrado ao pescoço ágil de uma impala, que conheci perto das montanhas rutilantes do Namibe. Também não foi publicada. Foi-me dito, amigavelmente, que aquilo deturpava a poesia de Agostinho Neto e vulgarizava o poeta.

Isto acaba bem. Em 1963, o poeta Mário António (o maior trovador de Luanda, sendo ele de Maquela do Zombo!) publicou na Imbondeiro do Lubango uma Antologia Poética Angolana onde figura Álvaro Reis, o meu mestre no Jornalismo Acácio Barradas. Um poema espantoso intitulado “O Meu Copo de Uísque” sugeriu-me, anos mais tarde, uma viagem pelos caminhos que ambos percorremos nas tertúlias literárias de Luanda e no Jornalismo.

Um dia fiz uma reportagem nesse percurso. Nunca a publiquei. Quando me convidou para colaborar no Livro “Agostinho Neto Uma Vida Sem Tréguas” fiz-lhe uma surpresa e entreguei-lhe o texto, dactilografado nas costas de panfletos de propaganda da agência de viagens ZEPA. Ele leu, deu-me um abraço e depois falamos de ópera.

Se hoje viajasse no copo de uísque do Acácio Barradas punha o Presidente João Lourenço a trocar as armas russas das FAA com as armas da NATO do Zelensky.

Desculpem-me alguma palavra mais maldita.

*Jornalista

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